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JOANA FRANCO
CATARINA REAL
Joana Franco (Viana do Castelo, 1999) começou a dançar aos três anos. Pela aprendizagem técnica mas também pela impactante experiência das regras e códigos do ballet, pode dizer-se que o seu percurso artístico aí se iniciou, e continua agora, vinte anos volvidos, em projectos que equacionam a “coreografia sem dança”. Uma obsessão pela decomposição do corpo leva-a à identificação de pontos e blocos articuláveis de acordo com um sistema finito, que “também dança”, mas que muitas das vezes toma a forma partilhável de performance por instrução. Pela activa inquietação - muitas vezes com uma formulação expressa enquanto interrogação - ? - que a vai dirigindo a um registo interdisciplinar, diz que ainda não sabe qual o termo certo para se referir ao que faz.
Por Catarina Real
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Podemos abrir esta conversa com uma introdução do teu percurso, tendo em mente esta frase muito sincera que introduzes na tua biografia pública, de não saberes ainda qual o termo certo para te referires ao que fazes.
Comecei a dançar com três anos, numa pequena escola de formação com foco em dança clássica, onde permaneci até aos dezassete. Esta era a minha actividade central e prioritária e foi aí que se iniciou a minha relação com a dança. No ensino secundário enveredei pelo Design de Comunicação na Escola Artística Soares dos Reis e a ele seguiu-se a licenciatura na Escola Superior de Dança. Terminei a licenciatura em 2019 e em 2020 entrei no Mestrado em Arte Multimédia nas Belas Artes de Lisboa, que não cheguei a terminar por causa do registo em que a situação pandémica exigia que o curso fosse leccionado. Acabei por prosseguir para o Mestrado em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais, também na Escola Superior de Dança, que agora estou a terminar.
Falar do percurso traz depois outras camadas...
E quais são elas?
Traz os porquês; o porquê de realizar uma licenciatura em dança, ou um mestrado...? Tudo foram decisões e caminhos pelos quais fui saltitando, assim como entre linguagens artísticas.
Agora escolhi este mestrado porque senti vontade de me reaproximar da dança.
Nunca trabalhaste enquanto intérprete de criações alheias, apenas nas tuas próprias, e a isso junta-se a nomenclatura “criação coreográfica” do mestrado na ESD. Interessa-te seres coreógrafa-intérprete?
Essa palavra composta também não me satisfaz.
Neste momento, não me imagino a coreografar para outras pessoas, ou ser intérprete para outras pessoas. Talvez seja uma nomenclatura transitória que me pode definir.
E como se ligam concretamente e no teu processo de criação, este percurso entre o design, práticas de movimento vindas do ballet, e a actualização de movimentos e técnicas contemporâneas de dança e criação coreográfica na licenciatura e no mestrado na ESD...?
Creio que tenho vindo a usar todas estas ferramentas para criar coreografia e propor a dança sem utilizar o meu ou outros corpos humanos. Talvez usá-las dessa forma seja uma fuga da experiência do corpo, e talvez isso seja a reacção a todos estes anos de formação em dança.
O ballet é uma técnica muito codificada, que requer um corpo específico. Tratam-se de posturas e utilizações do corpo muito restritivas, às quais nem sempre o meu próprio corpo correspondeu.
Posso dizer que sempre houve uma paixão pelos códigos de movimento, que eu entendia e que conseguia processar muito bem. Era na passagem para o corpo que as coisas ficavam turvas.
Aprendi a dançar e a entender a dança a partir desse sítio de abstracção do corpo, e de incapacidade de cumprir regras que o corpo gostava de cumprir, onde gostava de se encaixar.
Também no excerto de apresentação de que falamos anteriormente, sublinhas a colaboração com a Lara Maia. Qual a importância e expressão desta colaboração?
Conheço a Lara desde a altura em que entrei naquela escola de dança, aos três anos, e somos amigas desde aí. Começamos essa nossa relação com a dança quando esta não era ainda uma linguagem artística, mas a aprendizagem dos códigos de que falava. Mais tarde estudamos juntas na licenciatura em Dança, que aí se tornou para ambas uma linguagem artística. Foi na licenciatura que fizemos a nossa primeira co-criação e desde aí temos vindo a criar vários projectos juntas.
Posso dizer que a minha criação artística começou em colaboração com a Lara. Na verdade trabalhar sozinha em projectos mais volumosos é muito recente.
Gostava que conversássemos em torno das interacções com as obras escultóricas do António Bolota e do Hugo Canoilas.
A primeira interacção, com a escultura do António Bolota, surge no contexto de um projecto colaborativo que acontecia na Culturgest, com reuniões semanais de um grupo de jovens, onde se discute arte com visitas às exposições.
Eu e a Lara participamos em dois anos seguidos deste projecto, o que fez com que a Culturgest deixasse de ser este edifício gigantesco para ser uma pequena casa. Passamos a estar confortáveis com o espaço. Ao mesmo tempo, isso trouxe-nos esta questão: porque é que não se está à vontade em espaços em que a arte é mostrada, galerias ou museus? Porque é que não se toca, e não se interage fisicamente com as obras? Não esquecendo, claro, o respeito e a conservação das mesmas... Mas porquê toda esta distância?
Na exposição do António Bolota, na Culturgest, foi-nos dito oficiosamente que ele era um artista que apreciava esse contacto directo com as obras que fazia, apesar de a Culturgest ter de divulgar institucionalmente que não era permitido tocar nelas.
Pensando nessa frase, dita na nossa primeira visita em grupo à exposição, e já fora deste grupo, eu e a Lara fizemos uma nova visita. Ambas a pensar com e sobre o corpo, decidimos arriscar no toque e interagir com as obras sem pedir autorização, mas também sem sermos impedidas de o fazer.
Depois desse primeiro contacto táctil, decidimos ir uma terceira vez visitar a exposição e fazer um registo da nossa relação com as esculturas do António Bolota. A Ana Frias fez o registo fotográfico.
O que vos trouxe de diferente, à compreensão destas esculturas, acrescentar o toque?
Recordo-me bastante bem de sentir a temperatura. É uma coisa que não se consegue ver. O metal e a pedra têm temperaturas diferentes... E também as texturas, sendo que estas também são visuais, no entanto tocar nos materiais dá-nos a percepção da textura de outra maneira...
Também houve interacções com dinâmicas de peso; colocamos o corpo em lugares onde existiu uma aproximação à possibilidade de esmagamento, ou à sensação dessa possibilidade. Essa experiência criou uma nova intensidade com as relações escultóricas de peso.
E quanto à relação com as peças do Hugo Canoilas?
Essa interacção foi consentida. Fizemos, eu e a Lara, um workshop com o artista, na Fundação Calouste Gulbenkian, que ocorreu durante a montagem dessa exposição. Durante dois dias conversámos e discutimos as obras com o artista, enquanto ainda tomava as últimas decisões quanto ao posicionamento das peças. Foi o próprio artista que nos lançou a proposta de criarmos alguma interacção com as obras, enquanto a exposição estivesse aberta. Eu e a Lara tínhamos a intenção de criar uma performance de longa duração a partir dessa interação. A performance acabou por não acontecer, mas aconteceu a interacção com as obras.
Nesta interacção foi aberta uma porta, na qual decidimos entrar e ver o que aconteceria.
Existir ou não convite, altera o modo de relação?
Neste caso não tínhamos de arriscar e não houve uma aproximação espontânea. Tínhamos um desejo de criação em torno da figura da sereia, e não só a vontade de sentir as esculturas, como no caso da obra do António Bolota. Aqui queríamos pensar um corpo híbrido, porque a exposição envolvia também as figuras do fundo do mar. Queríamos deixar de ser seres humanos ou evocar texturas que não fazem parte do nosso corpo humano. Imaginar que o conseguiríamos.
Já procuravam imagens dessa relação.
Certo.
A relação era importante por si só, mas era acompanhada da expectativa de um evento performativo por isso tínhamos a preocupação da partilha. Queríamos agir com alguma subtileza, porque a exposição funcionava no escuro e queríamos jogar com a permanência no escuro e o deslocar à luz pequenos fragmentos de corpo. O projecto acabou por ficar a meio.
Estas duas interacções têm repercussão na tua relação, presente e futura, com a escultura?
Talvez acentuem o que era a minha relação com a escultura até ao momento. Há algum tempo pensei que fazia sentido pensar a dança como escultura mais cinema e que a escultura pode ser entendida como composição de um corpo. E composição com o corpo é exactamente o que tenho vindo a fazer, por isso sempre senti um paralelo entre o meu corpo que vê e o outro corpo escultórico. As interacções, sobretudo estas, são o aproximar real destes dois corpos.
Gostava de falar sobre as coreografias de bolso [que podem ser solicitadas aqui ], para abrir caminho para o projecto em que estás a trabalhar agora. Peço-te para seres tu a descrever o processo de acesso a estas coreografias e como funciona o pedido de coreografias individualizadas.
A nível de pedido, está disponível no meu site, onde há um formulário que terá de ser preenchido.
Depois disso, e do meu lado, é gerado um número aleatório. É esse número que gera a coreografia, por ordem de pedido. O que esta partitura contém é a data de apresentação, hora e local. Dita também a forma de divulgação, a quem será divulgada a apresentação da coreografia de bolso e com quanta antecedência. A partitura decide qual a relação do público com o espaço performativo e sugere cores para o figurino. Gera-se também uma partitura musical através de algumas notas e de um som de um oscilador, que faz a leitura da partitura como acompanhamento musical.
São definidos também o número de movimentos para a coreografia e descritos a nível de duração, de qual a parte do corpo se move, de que forma, e com que dinâmica. Depois as interacções da parte com o todo, do corpo no espaço. São também designados o número de movimentos.
É dado com a partitura, um esquema de deslocação espacial e uma imagem que se trata de uma composição gráfica de todas estas indicações.
E como alimentas este procedimento? Qual é o material de base para gerar estas junções, mais ou menos aleatórias, como são designadas por ti?
Para cada um destes parâmetros, e designo-os como mais ou menos aleatórios porque fui eu quem concebeu as aglomerações; os grupos de coisas, a inserção de determinados factores, a listagem dos itens e das categorias...
Nalgumas categorias recorri como referência ao estudo que o Laban fez do corpo, como na listagem de partes do corpo, ou listagem de dinâmicas, ou mesmo a nível de termos. Talvez me tenha inspirado vagamente na sua codificação. O resto... Nas datas designei um limite temporal, e considerei todas as horas. O tipo de divulgação foi o que me fui lembrando.
Como tem sido a recepção deste projecto? Tens tido aderência, enquanto pedido, criação e partilha de coreografias de bolso?
Na altura em que partilhei o projecto - sendo que era novidade mas que continua disponível e activo - recebi bastantes pedidos e enviei bastantes coreografias. Não sei se alguma vez alguma foi feita, nunca assisti a nenhuma.
Eu também fiz a que me calhou! Na versão de teste e de preparação, pedi a mais duas pessoas que as fizessem.
Escolhi este projecto das coreografias de bolso para transitarmos suavemente para o projecto em que estás agora a trabalhar, o Kaput!, porque me parece uma continuação desta investigação. Do aprofundamento das lógicas de pesquisa, codificação, previsão e funcionamento maquínico.
O Kaput! são várias coisas ao mesmo tempo...
É o meu projecto final de mestrado na ESD, em Criação Coreográfica e Práticas Profissionais, com especialização em Coreografia, portanto está inserido no meio académico e no âmbito da investigação em coreografia.
É um objecto coreográfico que se dança em 324 movimentos.
Esta é a frase de apresentação mais curta.
De onde aparecem os 324 movimentos?
O nome, Kaput!, apareceu logo no início, desde a primeira ideia e questionamento. Kaput! começou por ser uma tentativa de conceber uma peça de dança a solo, e como resposta à minha dificuldade em decidir quais os movimentos que queria usar nesta criação.
Precisei de parar a expectativa da peça de dança para pensar quais são os movimentos que posso fazer, ou como consigo conhecer a linguagem com a qual estou a trabalhar. No início era dança e portanto fui tentar perceber quais eram as suas componentes.
Percebi que eram muitas e demasiadas, portanto tive de escolher de entre elas, para tentar perceber a dança a partir de um ponto de vista. O ponto de vista que escolhi foi o de pensar que o corpo está inscrito no espaço e que ocupa espaço, e que essa ocupação no espaço pode ser mapeada. Comecei a pensar no corpo como uma abstracção geométrica, a pensar que o meu corpo é uma combinação de pontos que posso mapear, assim como posso mapear as relações entre esses pontos, num número finito de combinações e transições.
Neste processo apercebi-me que estava a pensar em coreografia e não em dança propriamente dita. Estava a pensar na decisão do movimento. 324 vem de um protótipo, de escolha de três pontos específicos do corpo, de atribuição de, a um deles, duas coordenadas espaciais, e de atribuição, aos outros dois, três coordenadas espaciais cada um. Combinar todas as transições possíveis (4x9x9=324) e é um plano de todos os movimentos que posso fazer, tendo escolhido estes pontos no meu corpo e estes pontos no espaço.
Depois de chegar a esta sintetização do movimento e depois de ter feito todo o trajecto puramente coreográfico, queria dançar. E aí reapareceu a dança, ao activar esta coreografia com o meu corpo.
Nesse momento de activação com o corpo, a precisão geométrica e as combinações matemáticas tornam-se frágeis. A memorização da sequência dos 324 movimentos tem erros e adequações. A dança coreografada em Kaput! aparece do erro, da possibilidade de erro destes 324 movimentos.
Onde estabeleces a linha de distinção dança/coreografia?
É uma pergunta que estou a procurar resolver.
No Kaput! é mais ou menos claro que a coreografia pode existir sem a dança, porque ela existe nos gráficos, nos desenhos e nas ideias. A dança só existe a partir do momento que eu a danço.
Parece-me que existe uma sobrevivência da coreografia sem a dança. No entanto há também uma parte da dança que não consegue fazer a coreografia, e ao não a atingir ou corresponder, a dança está a criar-se fora da coreografia, e de alguma forma isto diz que ela pode existir sem coreografia.
É aqui que percebo que elas não são a mesma coisa e que podem existir de formas diferentes.
Com a expressão Kaput!, que foi acompanhando todo o desenvolvimento do projecto, e num determinado momento, pensei que Kaput! significava exactamente: Kaput à dança! Que Kaput! tinha matado a dança pelo controlo.
Então seria Kaput! como ideia da morte da morte da dança, porque ela continuava a existir.
Sabes onde queres chegar com Kaput! ou para onde queres ir, depois dele?
Apesar de a minha vontade inicial ter sido a de entender como criar uma obra coreográfica, ou um objecto coreográfico, e de este projecto ser, neste momento, a única forma de lhe responder, agora, após a existência do modelo de criação de movimento Kaput!, começo a pensar que este projecto envolve outros desejos, e que há certas coisas a apontar para fora dele, e que não foram previstas inicialmente.
A codificação do corpo é uma grande questão. E é também uma forma de poder restringir o meu corpo. Parece-me a partida feita a partir de um lugar de privilégio, em que posso decidir quais os movimentos do meu corpo, ou posso restringir-me a mim mesma, ou tenho essa possibilidade de me restringir a mim mesma. Por outro lado, a forma como entendi o movimento, parece-me a recuperação do poder sobre o meu corpo, e onde dirijo o olhar de quem me vê a dançar para um aspecto muito específico, e que por aí posso ganhar mais liberdade naquilo que é o meu corpo, inserido num tecido social. Estas linhas de divergência a partir de Kaput! são pensamentos novos, ainda muito frágeis e confusos. A codificação do corpo, com estas possíveis variações, será sem dúvida o caminho por onde quero continuar. Tenho estado dentro do Kaput! e apetece-me sair dele para perceber melhor o que é que ele é. Como pode ecoar noutras coisas.
No entanto sinto que criei uma ferramenta coreográfica e que gostava também de a experimentar com outras coisas. Ver até onde esses materiais conseguem ir. Talvez até abrir a possibilidade de trabalhar com outros corpos, e de usar esta ferramenta coreográfica de forma mais alargada.