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MARIANA MAIA ROCHA
LIZ VAHIA
Mariana Maia Rocha (Porto, 2000) é artista plástica e investigadora. Licenciada em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), onde foi distinguida com o Prémio de Melhor Aluna da Licenciatura. Actualmente, frequenta o 2.º ano do Mestrado em Artes Plásticas na FBAUP. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) no programa Gulbenkian Novos Talentos 2023/2024, e Embaixadora Bolseira Gulbenkian da FCG. Em 2024, foi premiada com uma bolsa de doutoramento pela FCG para dar continuidade à sua investigação artística, com um enfoque internacional. A sua prática artística, que abrange desenho, fotografia e instalação, centra-se na exploração das relações entre corpo, ruína e performatividade na arte contemporânea. O seu breve percurso já foi distinguido com diversos prémios e reconhecimentos, destacando-se o Prémio Aquisição Millennium BCP no Prémio Arte Jovem Millennium BCP CARPE (2023) distinção que para a artista marcou um momento decisivo na sua ainda jovem carreira artística, incentivando a ambição em continuar.
Por Liz Vahia
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LV: Até 12 de Abril podemos ver a tua exposição individual, Cartografias de Ausência, na Galeria Art Lab 24 em Espinho. Podes fazer-nos uma apresentação do que encontramos lá, contextualizando essas obras dentro do teu percurso artístico?
MMR: Cartografias de Ausência é um ensaio visual sobre a relação entre o corpo e o espaço, explorando a dialética entre presença e apagamento, memória e ruína. A exposição, com curadoria de André Lemos Pinto e Paulo Moreira, texto crítico de Óscar Faria e apresentada a convite de Jorge Marques, propõe um mapeamento poético da ausência, tomando como matéria de trabalho fragmentos arquitetónicos, resíduos e vestígios corpóreos.
O conceito subjacente parte da ideia de que o corpo não é apenas um suporte físico, mas um palimpsesto de experiências que dialoga com a arquitetura e a paisagem. As obras expostas operam dentro desta tensão: Pavimentum Fragmentum (2025), por exemplo, instaura um solo instável, composto por tijolos e resíduos vegetais, evocando tanto um território devastado como a precariedade da própria existência. Já Memento Mori (2025), numa abordagem fotográfica, convoca a iconografia do luto e da efemeridade, explorando a posição fetal como metáfora do ciclo da vida.
Outros trabalhos, como Fragmenta Lacu (2025) e Confessio Silentis (2025), incorporam vidro e inscrições textuais, problematizando a relação entre linguagem e matéria, entre visibilidade e silêncio. A transparência do material permite um jogo de perceções que convida o espectador a interrogar os limites entre o que se vê e o que se intui.
O meu percurso artístico tem sido marcado por uma investigação contínua sobre a corporeidade e a sua inscrição no espaço. Interesso-me pelos lugares em transição, por aquilo que neles resiste e se dissipa. Cartografias de Ausência é, assim, um convite à reflexão sobre a impermanência e a inscrição do corpo na memória dos territórios. Acredito que a arte tem o poder de interrogar o tempo e de reinscrever as ausências no tecido sensível do presente.
LV: A relação do espaço construído com o corpo permeia o teu trabalho. Há impressões da matéria, apropriação plástica da forma do espaço (uma porta, um muro, o chão), e também uma activação dessas formas através do corpo, que resultam muitas vezes numa espécie de vontade de camuflagem com o espaço. Podemos ver isso em obras como A Path I Traverse (2023) e Until the Door Separates Us (2023), ou mesmo no sapato que parece percorrer a parede nesta exposição. Como surge esse encontro entre o espaço e a sua potencial plasticidade?
MMR: A relação entre o corpo e o espaço construído configura-se como um processo dinâmico de interação e transformação mútua, onde o espaço se revela não como um simples recipiente, mas como um agente ativo que responde à performatividade do corpo. Nesta lógica, o espaço não é apenas ocupado, mas ativado, remodelado e reconfigurado constantemente pelo corpo, que, ao interagir com ele, revela as suas potencialidades plásticas. A matéria do espaço, quer seja uma porta, um muro ou o chão, deixa de ser estática, tornando-se uma forma que, ao ser atravessada pelo corpo, ganha uma nova dimensão sensorial e simbólica.
A ideia de camuflagem surge como um movimento que dissolve as fronteiras entre o corpo e o espaço, criando uma fusão que questiona a separação entre sujeito e ambiente. O corpo, ao integrar-se no espaço, não se limita a adaptá-lo, mas transforma-se nele, criando uma interacção que ultrapassa a visibilidade e a mera ocupação física. Em A Path I Traverse (2023), por exemplo, o gesto de percorrer o espaço não se reduz a um simples ato físico, mas configura-se como uma experiência emocional e simbólica, carregada de memórias e significados. O corpo, ao percorrer o caminho, transforma o espaço num território de recordações, activando-o não apenas enquanto elemento material, mas como um espaço de vivência e afetividade.
Em Until the Door Separates Us (2023), a porta, tradicionalmente concebida como um limiar entre dois espaços, é desconstruída na sua função simbólica e prática. A transparência da porta elimina a sua opacidade, tornando-a uma forma fluida que dilui as fronteiras entre o interior e o exterior, entre o visível e o invisível. Esta subversão da porta enquanto elemento de separação gera uma reflexão sobre a dualidade da existência — vida/morte, presença/ausência — e questiona a natureza do espaço como um ponto fixo, propondo-o como um espaço de transição contínua.
A utilização dos sapatos, que percorrem a parede, inscreve-se neste mesmo campo de investigação sobre a camuflagem e a reconfiguração do espaço. O sapato, enquanto “segunda pele”, não apenas responde à funcionalidade do corpo, mas estabelece uma relação simbiótica com o espaço arquitetónico. Ao interagir com a parede, o sapato transforma-se numa extensão da superfície, tornando-se uma manifestação subtil de uma fusão entre o corpo e o espaço que transcende a sua função prática. Esta apropriação do espaço sugere uma transformação, onde o corpo e o ambiente se tornam interdependentes, dissolvendo as fronteiras que os separam.
Assim, o encontro entre o corpo e o espaço constrói-se como uma contínua negociação, onde o corpo não se limita a ocupar o espaço, mas transforma-o, moldando-o e sendo moldado por ele. O espaço, por sua vez, adquire uma plasticidade que se revela e se ativa através da performatividade do corpo, tornando-se um território de transformação e reinterpretação constante.
Vestigium Interruptum, 2024. Sapatos de couro n.42. Dimensões variáveis. Vista da exposição Cartografias de Ausência, na Galeria Art Lab 24, Espinho. © André Lemos Pinto
LV: O uso do látex, com características semelhantes à pele, faz aqui a ponte entre o espaço e o corpo. Conceitos como superfície, fragmento, toque ou segunda pele vêm-nos à cabeça quando vemos as tuas obras. Num dos teus textos falas em exoesqueletos e pós-animal, queres desenvolver essas ideias dentro deste contexto?
MMR: A utilização do látex nas minhas obras estabelece uma relação de profundo simbolismo e reflexão sobre a intersecção entre o corpo e o espaço. Ao imitar a pele humana, mas ao mesmo tempo transcendê-la, o látex insere-se na dialética entre o material e o imaterial, o visível e o invisível, operando como uma ponte entre o mundo interior do corpo e o mundo exterior que o circunda. Esta aplicação não se resume a uma mera representação da carne, mas evoca o conceito de segunda pele, uma camada protetora que, ao mesmo tempo que nos separa, estabelece um vínculo com o que está além de nós. A pele, enquanto superfície que é simultaneamente um limite e um meio de conexão, surge, assim, como um lugar de tradução entre a individualidade e o coletivo, entre o efémero e o duradouro.
A ideia de ecdise, termo biológico que designa o processo de muda de certos animais, adquire aqui uma dimensão filosófica e existencial. Este processo, que implica a perda e renovação contínua da pele, funciona como uma metáfora da transformação permanente do ser humano, tanto no plano físico como no psicológico. Ao evocar a ecdise, a obra não só alude à vulnerabilidade e à fragilidade do corpo, mas também à sua capacidade de reinvenção. Como os animais que se despojam da sua pele velha para poder crescer, o ser humano, ao confrontar-se com o próprio corpo, enfrenta um ciclo ininterrupto de mudança, renovação e adaptação. O ato de abandonar a antiga pele, no entanto, não implica um fim, mas uma transição, um momento de transformação e evolução.
A noção de exúvia é central neste processo. Tradicionalmente, entende-se por exúvia o vestígio deixado por um organismo após a sua transformação, seja no âmbito biológico, como no caso da muda de certos animais, ou no domínio simbólico, enquanto marca de um passado que cede lugar a um novo ciclo. A exúvia, assim, não é apenas um fragmento de abandono ou decadência, mas sim um signo de uma metamorfose que transcende a noção de finitude, operando como um vestígio que preserva a memória e a transformação. O resíduo de uma exúvia, longe de ser um simples abandono, é um testemunho de um processo radical e criativo, uma prova de que, no ciclo da vida, a perda é sempre acompanhada pela promessa de renovação.
Neste contexto, o toque adquire um caráter fundante e quase ritualístico. O contacto físico com o material, a manipulação da superfície do látex implica uma relação de profunda intimidade e intensidade entre o corpo e a matéria. Tal como o toque é a interação sensorial primordial que estabelece a relação entre o indivíduo e o mundo, o processo artístico transforma-se numa experiência de conexão direta e visceral. Ao submeter os materiais a forças físicas, como o rasgo e a pressão, o corpo não apenas interage com a matéria, mas imprime nela um vestígio de sua própria transformação, de sua própria ecdise. O toque, portanto, funciona como um meio de transitar entre o corpo e a obra, entre a matéria e a memória, materializando, assim, as cicatrizes e os vestígios de uma experiência sensível e temporal.
A exploração da fragilidade do corpo humano, da sua vulnerabilidade e da transitoriedade da existência, encontra uma ressonância particular na utilização de materiais como o látex. Ao se prestar à mutabilidade e à transformação, faz eco da efemeridade do ser humano e da inevitabilidade do seu desgaste.
O conceito de pós-animal surge neste contexto como uma reflexão sobre a condição humana e o seu afastamento da animalidade original. No entanto, o pós-animal não significa uma negação da corporeidade, mas uma transcendência das suas limitações, uma tentativa de entender o corpo não apenas como um elemento biológico, mas como um território simbólico, mediador entre o passado e o futuro, entre o animal e o humano. Ao explorar a relação do ser humano com a natureza, com os seus resíduos e com os vestígios da sua passagem, a obra questiona a permanência e a transitoriedade da identidade, e sugere que, na transformação, há sempre um eco do passado, uma memória latente que não pode ser apagada.
Deste modo, o uso do látex e do couro, a referência ao exoesqueleto e à ecdise, e a presença da exúvia enquanto resíduo de transformação, revelam-se não apenas como uma investigação estética, mas como uma reflexão profunda sobre a condição humana, a sua vulnerabilidade e a sua capacidade de renovação. Através dessa interação com a matéria e com o tempo, busca-se compreender as possibilidades de transcender a efemeridade do corpo, de recriar-se a partir dos fragmentos da memória e da experiência, e de, assim, dar forma a um novo entendimento da identidade e da temporalidade.
LV: Isto está muito patente na obra Exoskeleton and the Corporality of Touch (2024). Queres comentar esta obra e falar sobre a importância do desenho e da grafite para a revelação destes processos de certo modo “invisíveis”?
MMR: Na obra Exoskeleton and the Corporality of Touch (2024), o desenho e a grafite desempenham um papel central na materialização de processos que se situam entre o visível e o invisível. Utilizando a técnica de frottage, com grafite sobre papel vegetal, proponho uma investigação estética e fenomenológica do toque, da memória e da efemeridade, revelando dimensões da experiência humana que muitas vezes escapam à perceção imediata.
A grafite, com a sua aparente simplicidade, carrega uma profundidade simbólica que a torna uma metáfora para o efémero e o transiente. A técnica de frottage, tal como Max Ernst a utilizou no surrealismo, não se limita à reprodução de superfícies, mas procura revelar imagens e formas que transcendem a representação visual convencional, aproximando-se da poética do acaso e do inconsciente (Foster, 1993; Hopkins, 2004).
O papel vegetal, pela sua translucidez, remete à fragilidade da pele, ao toque humano e à interação entre o corpo e o mundo. A utilização do grafite, ao capturar texturas e marcas dos objetos, inscreve a memória e o afeto no papel, funcionando como uma impressão direta das superfícies. Este processo remete à ideia de ecdise, associando a transformação da superfície do corpo ou do objeto à memória e à identidade. Como Merleau-Ponty sublinha, o corpo não é apenas o recetáculo da experiência, mas também o meio de expressão da nossa relação com o mundo (Merleau-Ponty, 1964).
Ao selecionar objetos familiares, propus não apenas a preservação material desses objetos, mas o reavivamento da memória que eles carregam. A grafite, ao captar as superfícies e texturas, revela uma ausência: os objetos não estão fisicamente presentes, mas suas marcas permanecem como vestígios de uma vivência passada. Como Marc Augé afirma, o esquecimento é uma necessidade para a continuidade da identidade e presença (Augé, 2001). A prática de frottage reflete a contínua reconstrução do passado, onde a ausência do objeto torna-se parte da memória e da sua interpretação (Ricoeur, 2000).
Portanto, o desenho e a grafite na minha obra vão além da mera representação, sendo ferramentas para ativar a memória e expressar a transitoriedade da existência humana. A grafite, pela sua natureza efémera, evoca a vulnerabilidade da memória, tornando o toque e a lembrança inseparáveis da substância da obra. Exoskeleton and the Corporality of Touch propõe uma reflexão sobre a interconexão entre corpo, memória e tempo, utilizando o desenho e a grafite para revelar os processos invisíveis que constituem a nossa experiência de existência, transformação e esquecimento.
Tempus edax rerum, 2025. Impressão s/PhotoRag Ultrasmooth 315g. 77 x 112 cm. © Mariana Maia Rocha
LV: A fotografia também parece ter um papel importante no teu trabalho. Através dela acedemos a esse habitar do espaço pelo teu corpo. Mas ela não é apenas documental. Por exemplo, a rotação da fotografia por cima do entulho, nesta exposição Cartografias de Ausência, introduz todo um caminho de potencialidades à instalação. Qual o papel da fotografia no teu processo criativo?
MMR: A fotografia no meu trabalho não se limita a uma simples documentação, mas é um meio de explorar a efemeridade e a transformação. Através dela, consigo capturar e materializar a interação do meu corpo com espaços em ruína, onde a destruição e a recriação coexistem constantemente. A fotografia é uma extensão do meu próprio processo criativo e pessoal, um espaço onde o corpo se torna simultaneamente sujeito e objeto, onde cada imagem é uma reinterpretação do lugar e da memória.
Na obra Memento Mori (2025), por exemplo, a rotação da fotografia e a posição fetal que nela aparece não são apenas uma representação do nascimento e da morte, mas uma forma de questionar o conceito de tempo e existência. A rotação desconstrói a ideia de uma imagem estática e sugere que a transformação é contínua, que a morte e a vida estão sempre em fluxo, que a destruição e a renovação são partes de um ciclo eterno. O uso da fotografia em preto e branco realça ainda mais essa dimensão, associando a obra a uma tradição simbólica, como o enterro dos mortos em posição fetal, uma prática que reflete o desejo de renascimento e a reconciliação com a finitude.
Na exposição Cartografias de Ausência, a fotografia assume uma função ainda mais dinâmica, como uma chave para abrir o significado dos espaços em ruína. A rotação das imagens, como no caso da fotografia sobre os tijolos e resíduos vegetais, não se limita a um mero gesto estético, mas insere uma dimensão performativa na obra, onde a ruína não é mais um objeto estático, mas um espaço vivo que interage com o corpo. Essa performatividade da imagem é um convite à reflexão sobre o espaço como uma paisagem em constante mutação, e o corpo como um agente que reconfigura e dá novos sentidos ao que parece estar em ruína.
A fotografia, portanto, no meu trabalho, não é um simples registo, mas um ponto de encontro entre o tempo, a memória e o corpo. Ela permite-me dar voz a uma experiência íntima, onde a ruína do espaço se mistura com a fragilidade do corpo humano, e onde a imagem se transforma num campo de possibilidades infinitas, em que a destruição e a criação coexistem de maneira indissociável. A fotografia é, assim, um veículo de transformação e reflexão, uma forma de registar não apenas o visível, mas o invisível, o efémero e o permanente.
LV: Estás a trabalhar em projectos que possamos ver em breve?
MMR: Atualmente, encontro-me a preparar diversas exposições para o decorrer deste ano. Uma das mais relevantes ocorrerá n’ O Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende, um espaço de destaque no contexto artístico português, onde terei a oportunidade de apresentar uma parte significativa do meu trabalho mais recente. Paralelamente, estou a desenvolver um projeto para uma Residência Artística que terei entre julho e agosto em São Tomé e Príncipe (STP), a qual culminará numa exposição na Bienal XI de STP, em 2026. Este projeto representa uma ocasião ímpar para a exploração de novas linguagens e a expansão da minha prática artística, estabelecendo um diálogo profundo com o contexto cultural e natural do arquipélago. Acredito que esta experiência trará contribuições valiosas, proporcionando novas perspetivas e influências ao meu trabalho.
Simultaneamente, encontro-me a trabalhar no Atelier, onde estou a preparar novas obras que serão apresentadas nas exposições em questão. Este processo envolve uma contínua experimentação e reflexão, que me permite consolidar e aprofundar os conceitos e as técnicas que nortearão os projetos em desenvolvimento. O trabalho no Atelier tem sido essencial para a materialização destas ideias, sendo um componente fundamental para a evolução e consolidação da minha prática artística.
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