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CATARINA CUBELO
CATARINA REAL
27/01/2022
Catarina Cubelo (Fão, 1991) tem uma prática baseada na dimensão experiencial, alicerçada em possibilidades imaginadas e equívocos que daí poderão surgir, expectativas falhadas, projectos inacabados e comunicação interrompida. A dimensão participativa - quer na vertente de colaboração com autores assim declarados, como na inclusão de reacções fruto de interacções espontâneas - dá-me a ver a sua figura de artista enquanto proponente de inícios ou de catalisadores. Por essas características, a pergunta que orienta grande parte da nossa conversa, mas poderia dizer também grande parte da prática de Catarina, é: Onde nos leva a sopa, Catarina?
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Catarina Real: Tens uma prática que é relativamente complexa ao nível conceptual (mas também técnico, por extensão e profundidade) - e digo-o como uma característica e não como qualidade ou defeito - por isso achei que podíamos começar a falar a partir de uma coisa concreta, estou certa que derivaremos para lugares menos concretos.
Escolhi o C.H.O – Very Beautiful, 2019. Pedia-te que me desses um bocadinho de referências do contexto em que o apresentaste, para podermos depois falar sobre as várias implicações desta peça.
Catarina Cubelo: Posso começar por falar da minha metodologia, porque às vezes sinto que não estou a fazer muita coisa.
O contexto de apresentação; um festival procurava propostas cujo requisito era terem envolvência local e a execução de uma exposição num raio de 2km da estação de comboios. Candidatei-me ao festival porque tinha ido jantar a um restaurante na rua principal onde este acontecia, e havia qualquer coisa de bonito ali... No espaço. Não sei bem explicar porquê, mas entrei lá e senti-me mesmo bem. Sabia que queria traduzir essa questão afectiva que não sabia explicar. Enquanto jantava, nesse restaurante, comecei a perceber que as pessoas descartavam os guardanapos. Usei imensos enquanto comia, mas só no final da refeição me apercebi disso. Ou seja, havia qualquer coisa na acção repetitiva de usar um guardanapo, que fazia com que não estivesse aware do seu uso.
Estava interessada em olhar para esse ritual e trazer-lhe alguma espécie de consciência. Pensei que o mecanismo que podia usar para trazer consciência ao uso dos guardanapos seria transformá-los numa coisa estranha. O estranhar foi trazer um elemento que não fizesse parte do restaurante. Trouxe um kebab. A referência do kebab vinha de um trabalho anterior, que fiz na Turquia. No lado oposto deste restaurante asiático onde expus havia um restaurante de kebabs, então estabeleci essa ligação. Misturei o kebab com uma flor que faz parte do menu e tentei criar uma espécie de espaço desterritorializado, trazer essa sensação de não teres as coisas no sítio certo. Queria também usar o texto como forma de activar esse acto de alguma coisa não estar no seu lugar.
Falei com o dono do restaurante com as minhas sugestões, e no início ele disse que não podia ser. As pessoas iam ficar confusas, dizia ele, porque raio é que havia um kebab no guardanapo? Ele não vendia kebabs, e assim as pessoas iam achar que ele vendia kebabs... Eu disse-lhe que tinha a certeza que isso não ia acontecer, que ninguém ia pedir kebabs num restaurante asiático e ele acabou por ceder. Aí começou a pesquisa sobre o tipo de frases que podiam trazer esta sensação que eu sentia quando estava neste restaurante.
Há sempre esta associação com a comida, a um sentir-me bem com outra pessoa. As frases foram escolhidas assim, com um pendor romântico. Estavam relacionadas com certas dinâmicas.
Os guardanapos foram impressos com as técnicas de serigrafia e xilogravura e eram distribuídos durante o jantar. A ideia era criar interacção e as pessoas poderem começar a conversar sobre o que é que eram aquelas frases. Não sei se isso aconteceu, mas sei que o senhor do restaurante ficou muito satisfeito, porque toda a gente queria os guardanapos.
Disse-me que não só ficou surpreendido, como também que e no final percebia porque é que o kebab estava lá. Para mim isso foi o que resultou melhor: uma pessoa, que inicialmente não compreende a intenção de algo existir de certa maneira, deparar-se com as interações das pessoas e abrir-se à possibilidade de os guardanapos serem importantes assim como aqueles elementos que não estão lá, como o kebab.
CR: Era anunciado como um evento artístico?
CC: Eu não pude estar presente na inauguração. O Olivier [colaborador neste projecto] fez um pouco esse trabalho, explicava o contexto. Havia pessoas a tirarem fotos... mas nunca tive acesso a essa documentação. O que na verdade faz parte do meu trabalho, a não documentação. [riso]
O facto de serem eventos, o facto de alguma coisa poder ou não ser percepcionada, faz parte de muitos dos meus projectos, em que eu não anuncio as obras e depois vejo o que é que acontece.
Às vezes não acontece nada.
CR: E às vezes também não vês...
CC: Há uma certa invisibilidade ligada a muitos dos meus projectos.
CR: Tem alguma coisa a ver com a indistinção do que fazes como um projecto e do que fazes fora desse âmbito?
CC: Sim.
Acho que a vida é um pouco isso. Lembro-me que quando expus a minha peça sonora para o meu degree show, ela só era activada de 15 em 15 minutos. O meu professor chamou-me a atenção para o facto de que se uma pessoa viesse à exposição e só lá passasse dez minutos, nunca iria saber que o meu trabalho existia. E eu respondi-lhe: “Pois, é o que acontece na vida”. Passamos por coisas e às vezes não as vemos se não estamos nos lugares certos, na altura certa. Quero que haja a possibilidade de alguém dizer: ouviste aquilo? Não, não ouvi. E talvez depois esse alguém retorne para ouvir, ou simplesmente decida não o fazer.
CR: Não sei se era o mesmo que perguntava. Tal como tens nos guardanapos estas metáforas, emotivas e relacionais...; achas que o trabalho de construção dessas metáforas - na vida! - já é o teu trabalho? Se já o vês dessa forma.
CC: Nunca tinha pensado nisso, para ser honesta. Há muitas coisas que faço que não mostro. Muito rapidamente, quando deixas de mostrar, há a sensação de que não o estás a fazer. O que não é que eu ache que isso é verdade, mas é um sentimento que não pode ser apagado.
Há muitas coisas que faço que não mostro e continuo a achar que é trabalho.
CR: Isso tem a ver com alguma insegurança quanto à institucionalidade dos formatos que usas?
CC: Acho que sim. Até porque eu não gosto de acabar uma coisa. Não gosto mesmo. Se crias um objecto, a duração dessa coisa acabou, fechou-se. O que é muito diferente do que eu faço, em que me parece que todo o trabalho é uma constante duração. E então finalizar alguma coisa, dizer que isto é isto, é difícil para mim.
Por outro lado, quando não o fazes, quando não cortas, não pode ser consumido. E quando as coisas não têm limite, e não podem ser consumidas dessa forma, têm dificuldades em existir nos dias de hoje. Tem de haver esse consumo do objecto. Acho que isso é uma das partes dessa insegurança. E provavelmente a outra parte da insegurança é a de não conseguir decidir-me quanto ao que estou a fazer; o que é que o que faço é? Não gosto desse acto de definição.
CR: Porque é que sentes que isso é uma exigência?
CC: Se não souberes falar sobre o que estás a fazer, se a coisa não tiver um formato definido e partilhável, é muito difícil de compreender. Para existir [a coisa] tem de ser vista. Quando não é vista, existe, mas talvez seja só para ti.
Gostava muito que as minhas coisas fossem compartilhadas, que não existissem só para mim, embora depois crie formatos em que as pessoas não têm acesso... Há sempre uma contradição implícita.
CR: No caso da obra de que falávamos, não há difícil acesso, nem difícil consumo. Tens é uma espécie de continuidade narrativa-emocional, que faz com que não haja uma delimitação das coisas; porque elas estão ligadas. Não me parece que isso torne mais difícil o acesso.
CC: O consumo é difícil no sentido em que para mim o trabalho é o processo de chegar aos guardanapos, às palavras que estão impressas nos guardanapos... É difícil consumires esse processo. E depois de acontecerem esses eventos, em que te podes relacionar com as coisas, podes fotografar os resíduos. Se o fizeres tens acesso aos objectos, mas não tens acesso às pessoas, às conversas... podia ter feito um recording de tudo isso também, mas isso parece-me....
CR: Falso.
CC: Sim.
Essa foto, esse registo, não é válido para o que faço. O que eu fiz foi uma experiência.
Como é que mostras essa experiência?
CR: Da mesma forma que o teu objecto artístico não é uma coisa controlada, no sentido em que envolve o teu processo de chegares a certas palavras, como também a própria reacção das pessoas e a utilização desses guardanapos, talvez esse teu registo [do que fizeste no passado, para partilha futura] deva ser apenas uma enunciação do que são os trabalhos. Se voltasses à apresentação desse trabalho ele também já não seria o mesmo.
CC: Sim, completamente. Tudo depende do contexto.
Parece haver uma tendência; o restaurante ou o espaço onde como, como um lugar propício para o pensamento, por causa dessa dimensão de conforto e de contacto. Também o trabalho que desenvolvi na Turquia - e que faz com que apareça o kebab nestes guardanapos - começou comigo sentada a comer uma sopa de lentilhas num restaurante.
Parece ser um espaço muito produtivo em termos de ideias, para mim.
CR: Onde te levou essa sopa?
CC: Fiz uma residência de duas semanas na Turquia, onde continuar a trabalhar em algo que vinha de uma outra residência que fiz no Brasil; um recording das minhas actividades e passeios. O trabalho começou a ganhar forma depois de um encontro aleatório com um entomologista, enquanto andava na cidade. Na Turquia comecei com uma abordagem semelhante, a explorar a cidade, andando e estabelecendo uma espécie de rotina pelos espaços.
Havia uma paisagem gráfica espalhada pela cidade, que era muito intensa, e eu fiquei muito interessada nos cartazes publicitários.
Neles as pessoas diziam “procuro trabalho”, “vendo isto”, anunciavam postos de trabalhos. Comecei a pensar que podia ser uma boa plataforma para anunciar o meu próprio trabalho. Inicialmente íamos fazer uma exposição na galeria, mas o acesso à cultura não é muito promovido onde eu estava, por isso queria um formato onde a audiência encontrasse efectivamente o trabalho.
Comecei a pensar também que o trabalho, quando é exposto num espaço público, ganha um descontrolo muito maior do que na galeria, porque as pessoas não têm um só contexto. São vários. E o se o teu trabalho for vago o suficiente, as pessoas podem lê-lo de muitas maneiras, e surge uma linha de partilha de autoria com o público.
A cidade é muito complexa politicamente, havia várias partes onde não podia entrar sozinha. Fui com um dos miúdos com quem estava a viver, ele passeava comigo enquanto trocávamos mensagens via google translator. Ele falava em turco e eu traduzia, e tínhamos conversas dessa forma. Classicamente eram impossíveis, mas aquilo funcionava. Ele ria-se. Eu pedia coisas, ele não sabia o que fazer, então oferecia-me chocolates... havia uma troca muito orgânica, mas sem compreensão.
A compreensão não era o primeiro estágio da conversa.
Nesses passeios acabei por encontrar este café das lentilhas e passei a ir lá todos os dias comer uma sopa.
Os posters derivaram de uma amálgama de referências a conversas que tive com este rapaz e com outras pessoas, e que compus numa espécie de haikus “Fui comer um kebab/ Senti-me mal”, “Entrei na igreja / vi isto / saí e bebi um sumo”. Outros eram muito mais díspares e abstractos. Comecei a colá-los pela cidade, juntando-os à paisagem gráfica que já existia.
Entretanto, um senhor viu um dos meus cartazes e queria muito usá-lo para o restaurante dele. Fui para o restaurante com ele, segui-o, e ele começou a falar comigo em turco. Como tinha a câmara, comecei a gravar. No dia seguinte queria saber o que ele me tinha dito, porque tinha ficado com o meu trabalho e eu não sabia o que ele ia fazer com ele. Fui para o café das lentilhas e os senhores que lá estavam perceberam que o outro senhor me tinha roubado o cartaz. Ligaram para um rapaz que falava inglês e ele veio de mota lá ter ao café das lentilhas. Eu, o rapaz da mota e mais três rapazes do café das lentilhas, fomos ao restaurante do senhor que ficou com o meu cartaz, para descobrirmos porque é que o senhor tinha ficado com ele. O senhor não estava lá, mas estavam outros senhores, que pararam de trabalhar para tentarem perceber porque é que o cartaz tinha sido roubado.
Isto deu origem a um segundo trabalho, quando voltei, um vídeo onde tens essas cinco pessoas a falar sobre um objecto que não conhecem e que não sabem o que é. Avançam possibilidades sobre o que aconteceu. Aí tens um objecto a criar acção, sem um objectivo muito claro. O objecto nem está presente e estas pessoas já estão a ter conversas sobre ele.
Outra das coisas que aconteceu com estes cartazes; um deles era uma espécie de apontamento sobre eu ter ido à costa de autocarro, numa viagem de cerca de 5h. Nessa viagem senti-me mal e o motorista, a determinado momento, depois de eu lhe dizer que queria sair na praia, continuou a conduzir e levar-me para a montanha. Comecei a ficar assustada. Estava a cinco horas da cidade, não falava turco.. Houve uma tensão associada a não saber onde estava... Comecei a chorar... Até que percebi que ele me tinha levado a um médico na montanha, porque achava que eu estava doente. O texto fala sobre essas assunções que tiras quando a compreensão não é clara.
O cartaz está escrito em turco, e eu levei-o para a zona curda, com o rapaz da mota. A princípio, num bar com muito velhotes envolvidos em actividade política, não queriam o cartaz porque tinham medo que o governo descobrisse. Eles não sabiam o que é que o cartaz dizia. O rapaz da mota explica que o cartaz não diz nada... Que não faz sentido nenhum, e que por isso eles podem ter o cartaz exposto. Eles ficam muito contentes e começam a celebrar o facto de lhes oferecer um presente que não diz nada, e que não tem simbologia nenhuma. Disseram que o poster era muito bonito e que iam colocá-lo na parede do bar deles.
Foi também assim que se sucedeu no café das lentilhas. Eles gostavam do cartaz porque diziam que havia muita pressão ideológica em todos os documentos que as pessoas tentavam colar nas paredes, mas que este cartaz era sobre nada, e que isso era extraordinário. E que era engraçado, que olhavam para o cartaz e se riam.
Eram várias as reacções a estes cartazes.
O senhor do restaurante, acabei por descobrir mais tarde, queria o poster porque ele estava em turco, e então achava que os curdos não visitariam o restaurante porque se iriam sentir excluídos. Era a forma como alguém pode usar o teu trabalho como ferramenta de exclusão. Não controlas a forma como esse objecto é utilizado.
A outra parte do vídeo, essa outra peça que fiz a partir destas histórias, era eu a levar com o rapaz da mota um dos cartazes a uma sede política curda. Não aceitaram, porque só podiam aceitar objectos que tinham mensagens políticas. Tentaram perceber o que é que eu queria dizer com o que estava escrito nos cartazes e no fim achavam que era um espia da Inglaterra. Achavam estranho que lhes oferecesse um bocado de papel com uma mensagem que não dizia nada em concreto, não percebiam qual o objectivo.
Essa é a forma como os trabalhos se articulam.
Quando voltei da Turquia fiz este vídeo onde todas estas coisas acontecem e onde são relatadas todas as acções geradas por este objecto.
Esta longa história para dizer que …
CR: Para sabermos onde a sopa te levou.
CC: Há ainda uma outra dimensão do trabalho que não foi ainda desenvolvida. Incluí o meu e-mail nestes cartazes, e acabei por receber muitas respostas a perguntarem-me o que significavam. E respondi-lhes. Talvez venha a fazer uma publicação a partir dessas conversas.
O curioso é que todos tinham visto o mesmo poster, um que coloquei ao pé do multibanco. Acho que quando as pessoas estão à espera olham para a parede e perguntavam-se quanto ao que as coisas são. Não esperava que ninguém me escrevesse.
O que estava a tentar dizer antes é que há uma espécie de aleatoriedade, e de oportunidade, que pertence ao próprio trabalho. Acho difícil traduzir estas coisas que acontecem, este processo, em objectos. Eu filmei estas coisas, mas havia questões como: peço permissão?, como mostro?
Não desejo que o meu trabalho seja uma fetichização das minhas experiências. É complicado para mim partilhar a dimensão experiencial que todo o processo é.
CR: E também dentro disso, entra a dimensão colaborativa?
CC: Gosto sempre de envolver pessoas no processo. Tenho essa necessidade de partilhar com alguém, e esse alguém poder fazer algo a partir do que partilho. Para o trabalho poder ser alguma coisa.
Não tenho interesse em levar, eu mesma, coisas a cabo. Gosto de produzir coisas que tenham uma reacção de alguém. Interessa-me esse depois.
Fazer algo que sou apenas eu no processo parece-me o oposto da vida.
CR: Porque os outros introduzem também a aleatoriedade.
CC: Sim, senão estás sempre em controlo.