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MIGUEL PALMA
LIZ VAHIA E CARLOTA LLORET
“Todos os dias devíamos ser obrigados a repensar o nosso trabalho”, comenta Miguel Palma a meio da visita que a Artecapital fez ao seu atelier, no centro de Lisboa. Uma deambulação generosamente comentada pelo artista e onde se falou dos espaços em si, das peças em construção, da ideia de maquete, da prática regular, mas oculta, do desenho, da vivência diferenciada dos vários espaços físicos, de curiosidades mecânicas, de aviões e automóveis, garagens e pontes. Miguel Palma define-se como um “agregador” e não coleccionador: “tenho uma espécie de enciclopédia esquizofrénica, mas sei perfeitamente organizar as páginas dessa enciclopédia”.
Por Liz Vahia e Carlota Lloret
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LV: Uma coisa que queria falar era sobre esta questão de usares muitas maquetes e réplicas.
MP: Esta peça chama-se "Electronic Human Scale", não está acabada, queria construir uma urbanização e ao mesmo tempo gostava que fosse um espaço de todas as possibilidades. Falo de sonho, de luz, de alguma actividade, por exemplo aquela miniatura da terra que anda à volta do sol negro. Chama-se a isto um layout, diorama, ou uma maquete. É um espaço intimamente relacionado com os dioramas que construía em miúdo. As temáticas andavam primeiramente à volta de comboios, mais tarde, pelas guerras. A Segunda Guerra Mundial já foi um assunto que me interessou muito. Esta peça será híbrida, desvinculada de uma única temática e poderá ser vista pelo público a partir de dia 11 de Novembro, no Projeto MUTE.
É uma instalação em que trabalho já há algum tempo. Tempo esse que está directamente casado com a obra através de pormenores tais como o temporizador de xadrez: tem uma peça encravada e de vez em quando trabalha autonomamente. Estes reguladores do tempo que tens para o teu discurso e eu tenho para o meu. São de alguma forma, medidores daquilo que temos como tempo para falar, para ouvir.
LV: Mas ele está a funcionar sozinho?
MP: Como está encravado de vez em quando funciona e isso torna-o para mim mais interessante. Obviamente neste caso, sendo um temporizador de corda, haverá um dia em que todo este processo terminará.
LV: Sim, porque isto é uma coisa que é accionada e neste caso é ele que decide.
MP: Pois, porque está avariado. Mas essa avaria confere todo um universo de novos sentidos e possibilidades. No entanto ainda não sei como se vai desdobrar, que mais sentidos vai integrar. Para onde cresce. Existem vectores, mas a utopia não está completa. As sinapses, os eixos de ligação, são outros conceitos que me interessam: e de alguma forma esta peça acaba por o reflectir... a ambição de construir ligações perfeitas que unam esta - aparente, parafernália electrónica.
LV: [A placa de electrónica] é já em si uma espécie de maquete.
MP: Sim, vejo nas placas, cidades. Torna-se quase uma maquete de condomínio, uma zona de construção de uma cidade. Há efectivamente sempre uma maquete para vender a um cliente, mas isto dificilmente se vende a um qualquer cliente. É uma linguagem que pode ser bem aceite ou compreendida por um arquitecto, mas não serão todos...
LV: Daí esse lado de sonho que estavas a dizer.
MP: Sim, este é claramente um trabalho que me agrada muito tanto pelos aspectos de ligação ao passado, à própria arquitectura. Hoje tenho uma relação diferente com a arquitectura, apesar de em miúdo querer ter sido arquitecto, mas mesmo antes dos exames, dei uma curva de 90º e decidi ir para Belas-Artes.
LV: A exposição em que participaste no Colégio das Artes tinha uma maquete dum aldeamento turístico.
MP: Sim, esse meu trabalho tratou de retomar e re-interpretar um sonho de uma outra pessoa. O arquitecto francês, Jacques Couelle, viveu em Portugal antes da revolução e tinha um projecto para a zona da costa vicentina. Couelle construía espaços contemporâneos dentro de grutas. “Homeless Monalisa", foi o nome dessa minha exposição.
LV: Como é a genealogia dos teus espaços de trabalho até agora?
MP: Já tive contentores como lugar de trabalho. Neste momento, para além deste atelier, existe um armazém que recebe as peças de maiores dimensões. Tenho sempre esta ambição de tornar o atelier num lugar mais "limpo"... No meu processo, que junta a acumulação à agregação, tem como capítulo seguinte a construção e fabricação de peças que ganham rapidamente uma dimensão que precisa de um espaço considerável.
LV: Isso é uma coisa que te agrada?
MP: Há um lado que me interessa no processo de mudança. Quando mudo de lugar, a minha cabeça muda um bocado com ele. A esse nível será qualquer coisa parecido com o integrar uma residência. Quando sais da tua zona, começas a pensar diferente e sentes-te mais curioso, menos confortável, faz-te repensar discursos menos óbvios.
Em 2018 vou ter uma exposição individual no MAAT. Serão mostrados desenhos, que são uma parte do meu trabalho menos vista, mas extremamente complementar à minha escultura e instalação. Desde há 14 anos que o Desenho ocupa um lugar significativo na forma de eu trabalhar, não só como meio de passar as ideias à prática, mas também enquanto fim em si mesmo. Os desenhos ganharam uma autonomia. A exposição vai viver muito dessa bidimensionalidade.
A exposição ainda está muito embrionária, mas já estou a trabalhar. Embora existam muitos desenhos, gostava de exagerar, para o visitante sentir a impossibildade de ver a exposição. Este processo de hipotético cansaço é comum a muita gente, pelo menos comigo sei que acontece.
LV: Vão ser tudo trabalhos inéditos?
MP: A maior parte serão inéditos, mas vão co-existir com outros pela pertinência do que os vai ligar. 70% serão desenhos que nunca saíram do atelier, ou que estão guardados.
LV: E estes outros materiais que vemos aqui?
MP: Aqui, estamos numa sala de construção. Estou a trabalhar num projecto com chapas de metal e comecei a dobrá-las, pois queria construir a partir daqui uma realidade mais reciclada, como se fossem bairros de lata, mas com uma ligação mais à arquitectura contemporânea. Gostava que tivesse luz e som, mas não sei exactamente o que vai acontecer, estou no início do processo.
Estou também a coleccionar modelos de garagens em kit de madeira pintada dos anos 60 e a partir daqui constrúo edifícios com influências do Gerrit Rietveld e do Construtivismo. Todos os pisos inferiores são pisos quase de impossibilidade de habitabilidade. Gostava de fazer um modelo de uma cidade, ou de uma rua, com uma escala quase humana.
LV: E como é que as procuras? Procuras activamente ou vão surgindo?
MP: Alguns sítios conheço, outros surgem durante a procura, outras vezes batem-me literalmente à porta. Pessoas que me fornecem material aeronáutico, revistas, livros, um pouco de tudo. Conheço uma série de fornecedores que eu considero como assistentes, porque são pessoas importantíssimas para a construção das minhas obras.
O que se vê aqui no atelier são muitas peças de diferentes projectos.
[Estas pontes são] um projecto de 2015, [produzido] numa residência na Califórnia em que só fiz pontes dos E.U.A. Então construí uma enorme instalação, que pertence ao MAAT hoje em dia.
“Orange Skin” (2012) foi feito durante uma residência no Deserto do Arizona, onde estive um ano. Construí este fato para poder andar, com o apoio do departamento aeroespacial. Tive oportunidade de estar com astronautas e de estar nos campos onde treinam. Há um lado performativo no meu trabalho.
“Aeroporto” (2016) é uma peça que quis construir pobre, quis que fosse tal como um projecto urbanístico dos anos 30. Esta peça podia ter sido feita na altura, pois decidi usar intencionalmente apenas a madeira. Os aviões também são da altura. Tentei criar aqui uma ideia do que seria uma cidade e um aeroporto daquele tempo.
“Safety Haven” (2016) é uma colagem de objectos de segurança da aeronáutica, desde os cintos de segurança para os viajantes a uma peça que é responsável pela medição do vento e altitude num avião (foi exactamente esta peça que falhou e congelou aquando da queda do avião da AirFrance vindo do Rio de Janeiro). Este tipo de objectos interessam-me pelo lado da sobrevivência, da tecnologia e da vontade de controlo, e do seu potencial falível e recurso à emergência. Isso interessa-me como erro, como desenhar e o lápis resvalar para aquele lado.
LV: A própria estrutura já contém em si a possibilidade de erro.
MP: É bom estarmos a dar esta volta porque estou a pensar no meu trabalho. Amanhã já há coisas que vou mudar. Todos os dias devíamos ser obrigados a repensar o nosso trabalho.
LV: Guardas coisas sem nenhuma ideia específica para as usar? Ou só tens o que vais usar para os projectos em que estás a trabalhar?
MP: É um bocado de tudo. Tenho aqui coisas que sei que vou usar, mas também há muito outro material que aguarda o tempo certo. Admito que me seja necessária essa envolvência. Algum excesso no lugar onde trabalho constroi uma abstração e uma liberdade de escolha de objectos e ideias que integram quando considero necessário o trabalho em causa. É como um banco de imagens e ideias.
O meu processo é muito um trabalho de agregador, não sou coleccionador. Tenho uma espécie de enciclopédia esquizofrénica, mas sei perfeitamente organizar as páginas dessa mesma enciclopédia.
LV: Há muita circulação entre os espaços aqui?
MP: Sim. Isto podia ser só um espaço amplo. E já tive ateliers em openspace, mas concentro-me melhor em lugares com mais divisões, para criar diferentes polos e focos. Doutra forma, num espaço muito grande começo a fazer muita coisa ao mesmo tempo.
O meu atelier agora é assim, mas não significa que daqui a uns meses não seja outra coisa. Está em constante mudança.
LV: Mas não gostas de ver as peças regularmente?
MP: Não tenho uma grande necessidade de estar em contacto com as coisas que já fiz há muito tempo.
Gostava de ampliar o meu espaço de trabalho, no entanto, sempre que tenho uma sala pronta para trabalhar ao fim de um tempo volta o caos. Há um loop de esvaziamento e enchimento.
LV: Se calhar é o ciclo normal do atelier.
CL: O facto de uma sala do atelier ser mais pequena, influencia a dimensão das peças?
MP: Sim, sem dúvida. Se forem esculturas e instalações maiores não são feitas aqui, mas sim em fábricas, por uma equipa. No entanto, outras vezes, existe uma necessidade maior de manipulação completamente pessoal de peças.
LV: Eu percebo, há um lado de pensar com as mãos que só acontece quando estás efectivamente a mexer nas obras. As peças que não são feitas por ti, são pensadas aqui neste espaço?
MP: São pensadas e desenhadas por mim aqui.
Acho que nunca se tem o atelier ideal. Acho que é verdade que quando temos um espaço mais pequeno adaptamo-nos ao espaço e as coisas também não podem crescer mais do que isso. Por isso também é importante quando as peças têm uma determinada dimensão serem delegadas para espaços e condições muito diferentes.
A minha primeira residência foi em 2007 em Nova Iorque, e a peça que construí era muito grande, era do tamanho da sala onde trabalhava. A opção que tomei foi utilizar parafusos e porcas para desmontar a peça como um kit, para poder entrar e poder ser construída dentro do espaço. Isso, de alguma maneira, teve repercussões na forma de projectar o meu trabalho.
LV: Têm esse lado mecânico sempre presente e não tanto um lado de desenho mais compacto.
MP: Sim. Passa por um processo de agregação de componentes.
CL: Em relação ao processo artístico, é individual mas também trabalhas com engenheiros e mecânicos. Como se dá esse diálogo?
MP: Trabalho com várias pessoas. Trabalho com um engenheiro há muitos anos, e juntos resolvemos determinados problemas. É um esfoço de equipa, não é um trabalho individualista. Quando acontece este diálogo, surgem problemas e impossibilidades que nos fazem reorganizar a forma de pensar o objecto e acontecem alterações provocadas pela impossibilidade e possibilidade da construção.