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SILVESTRE PESTANA
12/01/2025
“Para manter a minha renovada vitalidade não me envolvo no tentar recolher o cabelo que há muito dispersou”
O artista visual, poeta e performer Silvestre Pestana, natural do Funchal, recusa-se a falar do passado, que no caso foi extremamente criativo, irreverente e pleno, brincando até connosco com o facto da própria queda de cabelo: “Não me envolvo no tentar recolher o cabelo”, vendo-se “sempre confrontado com uma grande dificuldade em elaborar verdadeiras ou falsas memórias”. Melhor dizendo: o que faz hoje em nada se relaciona com o que fez ontem, tendo unicamente a ver com a atualidade e com o seu pensamento face à sociedade, política e factos do dia a dia.
O seu próprio percurso académico reflete a experimentação multidisciplinar na vida artística e a sede inerente de saber. Licenciado em Artes Gráficas e Design pela ESBAP (atual Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto), mestre em Ensino de Arte e Design pela De Montford University em Leicester, Reino Unido. Foi professor da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Coimbra. Estudou Televisão e Música Electrónica na Universidade de Estocolmo, Suécia, no que foi o seu exílio entre 1969 e 1974, regressando a Portugal num pós 25 de abril de 1974.
A exposição retrospectiva no Museu de Serralves em 2016 e a mostra no Museum of Contemporary Art Santa Barbara em 2017, na Califórnia, deram mais recentemente um grande protagonismo a este que se mantém um dos artistas mais radicais do panorama artístico português. Já em 2020 foi agraciado com o prémio português nas Artes Visuais AICA/ MC/ Millennium BCP 2019, pelo seu longo percurso artístico multidisciplinar que abarca a poesia experimental, multimédia e performance desde meados dos anos 60.
Se nos anos 1960 e 1970, utiliza material gráfico diverso, na década de 1980, recorre ao vídeo e meios informáticos, sendo que a sua poesia para computador abriu novos rumos à poesia experimental. Porém, a energia e intensidade da sua obra experimental renova-se constantemente, impondo-se pela singularidade e radicalidade das intervenções sejam em forma de performance, poesia experimental, vídeo, fotografia, escultura, instalação ou intervenção no espaço público.
Os trabalhos mais recentes dão continuidade às suas reflexões sobre a sociedade e a cultura estendendo-se a tecnologias como os drones ou a criação digital de avatares no Second Life, fundamentais para o entendimento das práticas experimentalistas como percepção das práticas sociais em que se articulam.
Entre setembro e outubro passado, Silvestre Pestana participou no filme denominado "A Santa Joana dos Matadouros" de João Sousa Cardoso, a partir da obra de Bertolt Brecht, que estreou a 29 de novembro na Cinemateca Portuguesa em Lisboa, e a 13 de dezembro no Batalha Centro de Cinema no Porto.
Por entre ciclos e contraciclos, confessa-nos: “A ideia dos contraciclos é interessante por fugir à ideia de ego”.
Por Helena Osório
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HO: Para o Silvestre Pestana é crucial a ‘pertinência’ da introdução do novo na prática artística. Como a gere?
SP: Até à data, como e bem nos informa os registos dos estudos antropológicos, a prática artística apresenta-se como uma constante na produção cultural das sociedades e acompanha o exercício da sua autorrepresentação. Esta constatação dificulta uma apressada definição dos modos da Arte e da sua singularidade no social. Na cultura ocidental, a arte nas suas múltiplas prestações, foi profundamente reorganizada perante a imergência da nova sociedade tecnológica. Esta, viu-se imbuída na tarefa de ter de se fazer acompanhar por uma nova sincronia metafórica validada pela inovação e pela invenção.
Assim, podemos compreender o valor insubstituível das propostas artísticas que acompanharam e mesmo mimetizaram as intensas mudanças exercidas pela reorganização das estruturas tecnológicas e de poder.
HO: De que forma mantém viva a ‘pertinência’?
SP: A Arte de acordo com as necessidades de cada momento da dinâmica social, pode assumir um exercício de representação simbólica e mesmo espiritual (ARS) ou se reorganizar numa continua atualização formal enquanto modo laico de exaltar o Mundo. (Tecno).
Ultrapassada esta dicotomia, que para alguns é intransponível, foi reconhecida à Arte e aos seus artistas, um novo estatuto que legitima a maravilhosa afirmação de que pertence ao domínio da Arte o que os Artistas fazem (de acordo com o Nam June Paik).
Ora se tal for verdadeiro, um artista que se eleve e se proponha ultrapassar o enquadramento do artesão ou do exímio executante talentoso; encontra-se obrigado a ter de se atualizar continuamente, ao estudar, refazer os seus modelos conceptuais de modo a poder validar as novas e imergentes perceções metafóricas ao seu artístico e sincrónico exercitar.
HO: É considerado um artista único, e "de contraciclos", lembra Serralves. Como interpreta a própria persistência e irreverência que aliás mantém desde sempre, independentemente do correr do tempo hoje tão distante dos anos 1960 que viram a sua obra dar os primeiros passos? E não apenas como artista mas como pessoa, rumando contra a maré...
SP: Eu não quero falar do passado. Aprendi na vida uma coisa importante: apercebi-me desde cedo da queda sistemática do meu cabelo, e como costumo afirmar, que, para manter a minha renovada vitalidade não me envolvo no tentar recolher o cabelo que há muito dispersou.
Encontro-me sempre confrontado com uma grande dificuldade em elaborar verdadeiras ou falsas memórias. Por essa razão, digo-me muitas vezes, que devo evitar deixar cair na armadilha narcisista promovida por esse tipo de ideias. Desde então, tenho mantido a reorganização das prioridades relativas ao que tenho elaborado e avanço para uma outra questão que me ajude a situar num mundo em alta aceleração.
Os amigos nomearam este processo de contraciclo. Desde muito cedo aprendi a selecionar os meus temas, a estar preparado para suportar os seus custos económicos e sociais. Este modo de agir tem-me assegurado alguma validade na seleção temática aos surpreendentes movimentos sociais.
HO: E como nomeia o Silvestre Pestana este processo?
SP: A ideia dos contraciclos é interessante por fugir à ideia de ego.
A identificação de que existem contraciclos relativos aos modos da cultura apresenta-se interessante e libertadora. Possibilita questionar a persistente ideia de que existe um poderoso e inato Ego Artístico. Este modo avaliativo é muito valorizado quando enquadrado por uma assinatura reconhecível e promovido enquanto estilo.
HO: Diz-nos entrelinhas que ‘é o que a malta jovem tem de fazer hoje’, porque não o faz? Teme a atualidade nos caminhos da arte?
SP: Em Portugal, a produção artística é, em certos casos, muito padronizada apresentando-se no entanto muito elaborada e conceptual. Sabemos que os artistas mais autónomos, exercitam e propõem ideias, elaboram e estudam. Por exemplo, quando visito um grande número de exposições, subsidiadas ou não, que se apresentam nas agendas como recomendáveis constato que estas se encontram maravilhosamente bem concebidas a nível técnico. No entanto, consigo discernir que exaltam grandemente um continuado e desatualizado RETROVISOR CULTURAL.
Quando tal acontece, não me limito a ver o que está a acontecer. Sou cometido muitas vezes por um desajusto percepcional. Sensação, essa, que advém de uma reflexão inquisitiva e cultural. Aparentemente, esta atitude torna-me, para muitos, num artista difícil por assumir este tipo de abordagem e apreciação crítica.
HO: Quer exemplificar?
SP: Vejamos um caso muito atual, relativo ao tratamento e estudo historicista relativo à Performance. Esta, quanto a nós, é filha direta da socialização exercida pela televisão ao democratizar intensamente a presença do cidadão até então invisível e enclausurado na denominação depreciativa generalizada de que era um “ZÉ Ninguém” cultural. Presentemente, devido à pressão historicista e do reconhecimento do seu valor, esta reavaliação apresenta-se, muitas vezes, como inovadora ao promover a produção de ‘remakes’ relativas a performances e a AÇÕES, ao bom modo das indústrias culturais. No entanto testemunhamos, porque fizemos parte destes acontecimentos, que estes foram maioritariamente exercidos na altura como ações vincadamente espontâneas. Ações, essas, que vincadamente se distanciavam o mais possível dos modelos teatrais baseados estruturalmente por num argumento, desenvolvimento e conclusão.
HO: Não aprendemos nada com o passado?
SP: Na arqueologia enquanto ciência o que conta é o que é realmente encontrado.
Desde a revolução iluminista que se começou a atribuir aos artistas o mesmo estatuto então grandemente reclamado pelos investigadores. Estatuto, esse, que valoriza a liberdade de escolha da temática e a sua materialização.
Quando começamos a refletir, perguntamos como é possível em pleno século XXI, detetar uma subtil, mas persistente promoção que desvaloriza o interesse insubstituível e exaltante de um Maravilhoso Mundo N_OVO? = desvalorização da inquietação?
Os artistas devem obedecer primeiro a eles próprios e depois às circunstâncias.
HO: O que está realmente a acontecer nas artes?
SP: O que está realmente a acontecer nas artes? Para minha grande surpresa só há dois dias consegui encontrar a revista ArtForum que não existe na maioria dos quiosques por ser cara. Tem na capa uma pomba, não um falcão, para grande surpresa minha. A arte pode dar representações de situações globais.
O número da ArtForum de dezembro de 2024, tem na capa UMA POMBA (sabendo que um FALCÃO vai voar de novo em Breve)!
... A Resistência à invenção do novo ...
Também para surpresa minha, o meu trabalho figura aí por iniciativa de um crítico brasileiro que considerou a minha exposição de Leds importante e que é a reflexão de quem pensa como intelectual e como vê o mundo.
HO: Participou num sem fim de exposições, coletivas e individuais, a nível nacional e internacional. Quer enumerar as que o marcaram mais pela positiva (ou negativa)?
SP: Sem descrever a cronologia das minhas participações artísticas ao longo da minha vida, refiro especialmente a apresentação da obra performática “VERTIGEM 04: sociedade Aberta” integrada na Bienal da Maia de 2015 e na exposição CÓDIGO ABERTO, no C.A.C.G.M. 2021, constituída por quatro portas deslizantes e interativas, quatro robots e um drone em interação ativa à aproximação do público. Esta obra valorizava, desse modo, a ideia de circulação livre dos cidadãos europeus de acordo com o espaço Schengen. No entanto, já nesta altura, se verificava o aumento do exercício de clausura, que posteriormente pudemos testemunhar com o número crescente de vítimas a tentar entrar no solo europeu.
HO: E mais recentemente?
SP: Destaco a inclusão da minha obra TANKER I LISSABON na revista ArtForum de dezembro 2024, que foi apresentada no espaço ‘Uma Certa Falta de Coerência’, integrada nas comemorações dos 50 anos de abril (Porto de 24 de Abril a 18 de Maio). Esta exposição mereceu a nona posição no TOP TEN pelo curador internacional Raphael Fonseca. Destaco que nesta edição a capa oferece como reflexão a reprodução de uma maravilhosa Pomba. Sendo uma revista americana com reconhecimento internacional na área das Artes, esta belíssima obra de Sofia Córdova nos adverte em relação a um crescente fascínio pelo ressurgimento valorativo do militarismo.
HO: Tem agenda marcada para próximas exposições?
SP: Agora fazem a programação para dois anos e só tenho contactos para 2026. Para uma pessoa com 75 anos, um ano e meio é uma eternidade.
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Helena Osório
Nascida em Benguela, Angola, é jornalista cultural, editora e escritora doutorada em Estudos sobre a História da Arte e da Música pela Universidade de Santiago de Compostela, com reconhecimento da Universidade do Porto; mestre e pós-graduada em Artes Decorativas pela Universidade Católica Portuguesa. Investigadora no Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (i2ADS / FBAUP).