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Namalimba Coelho
Assessora de imprensa
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Qual a última boa exposição que viu?
É difícil enunciar apenas uma, mas a retrospetiva de Bill Viola, apresentada no Grand Palais, é uma das que destacaria, sem dúvida.
Era uma segunda-feira, 21 de julho, quando aterrei em Paris, no início de tarde do último dia em que a exposição estava patente. Não pude deixar de sorrir quando avistei as longas filas de pessoas que aguardavam no exterior do palácio, traduzidas em horas de espera, na ânsia de conseguir visitar a exposição antes do encerramento. Ainda no jardim, ouvia-se o burburinho gerado pelos comentários de quem saía, não se poupando a exclamações elogiosas ao trabalho deste mestre americano da videoarte, elevando ainda mais a expectativa de quem esperava a sua vez no roleta russa que se anunciava a fila de entrada.
Já no interior, considerando que esta era uma mostra exclusivamente composta por novos media, a cenografia pautava pela simplicidade, com salas muitos escuras e sem bancos, sugerindo que o público circulasse espontaneamente no espaço ou que se sentasse no chão, para uma maior proximidade e interação entre o espetador e a obra. Cada projeção transportava-nos para uma experiência quase metafísica, conduzindo-nos numa incursão pelas quatro décadas da carreira do artista, ao longo da qual íamos sendo remetidos para grandes questões como “Quem sou eu? Onde estou? Para onde vou?”. O próprio percurso expositivo ia-nos imergindo numa viagem sensorial intensa, superando-se e superando-nos, na forma como íamos sendo confrontados com temas tão complexos como a vida, a morte, a água, o fogo, a transcendência, o renascimento, aqui dimensionadas pela genialidade artística de Bill Viola. Entre as cerca de vinte obras apresentadas, das mais intimistas às mais monumentais instalações, recordo a sala em que, em simultâneo, eram projetadas as cinco narrativas que compõem “Going Forth By Day” (2002), a par de outros momentos culminantes da exposição marcados por obras como “The sleep of reason”, (1988), “Fire Woman” (2005) ou “Tristan's Ascension” (2005).
Bill Viola au Grand Palais, Ascension (teaser) by Rmn-Grand_Palais
Bill Viola au Grand Palais, Fire Woman (teaser) by Rmn-Grand_Palais
Que livro está a ler?
O retorno a um clássico…
« Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas. J’ai reçu un télégramme de l’asile : «Mère décédée. Enterrement demain. Sentiments distingués. » Cela ne veut rien dire. C’était peut-être hier. (…)» Memorizei esta frase introdutória de “L’Étranger”, de Albert Camus, no mesmo instante em que o li, pela primeira vez, na biblioteca do Liceu, tinha eu dezassete anos. Há pouco tempo, deparei-me com a versão traduzida do livro (em português do Brasil), e, a estranheza que senti ao ler a tradução desta mesma frase foi tão imediata, quanto o apelo para reler a sua versão original.
Que música está no topo da sua playlist atual?
Gosto de ouvir música em modo aleatório, sem filtros de critério, pelo prazer de ser surpreendida com uma sequência musical espontânea, pelo que, no topo do meu repertório podemos encontrar uma seleção que vai dos clássicos intemporais às referências mais recentes, que inclui uma compilação que vai de Nina Simone a Nástio Mosquito, passando por Pj Harvey, Banks, FKA Twigs, Tricky, Sade, Zola Jesus, Tom Barman, Buraka Som Sistema, Maria Callas, Róisin Murphy, Depeche Mode, Devendra Banhart, Serge Gainsbourg, Maxwell, Massive Attack, Morphine, Jacques Brel, Blood orange, The Legendary Tigerman, Kanye West, Kelela, SBTRKT, Sampha, Regula, Arcade Fire, Stevie Wonder… Aqui partilho algumas das músicas que terão sempre um lugar de topo na minha playlist intemporal.
Um filme que gostaria de rever?
Confesso que não sou adepta de rever filmes. Gosto de preservar a pureza das emoções que se despertaram na primeira vez que os vi, mas a ter que eleger referências, aqui ficam as minhas…
O mítico Le Mépris, do mestre Godard, pela envolvência dos diálogos, dos cenários, da fotografia, da esplendorosa Bardot, de Vila Malaparte, a par da monumental composição instrumental de Georges Delerue.
The Shining, pela inebriante e meticulosa mise en scène ao estilo Kubrick, tão magnética quanto a banda sonora e o trailer do filme.
África Minha, por todo o ritual que recordo da emoção que senti na minha primeira viagem de metro, a caminho da minha primeira sessão de cinema, na imponente sala principal do São Jorge, de mão dada com a minha mãe, tinha eu dez anos, acabada de chegar de Luanda.
O que deve mudar?
É urgente refletir, reagir ao imediatismo e à efemeridade da atualidade. Tanto ao nível das relações humanas, como da produção e do consumo. Estamos a ser engolidos por uma dinâmica de sociedade quase irreversivelmente voraz e paradoxal. Nunca estivemos tão próximos uns dos outros e, ao mesmo tempo, cada vez mais distantes da essência. Temos ao nosso alcance ferramentas que podem ser as nossas maiores aliadas, mas para isso é preciso reagir a esta espiral. Chegámos a um ponto em que é urgente tomar consciência do que devemos inverter e salvar, no sentido de não nos perdermos na inconsistência, nem na volatilidade deste imediatismo. E todos devemos ter um papel ativo nessa mudança, porque é em nós que ela começa e se efetiva, através de cada decisão tomada perante e arbitrariedade das nossas escolhas no quotidiano.
O que deve ficar na mesma?
Vai ao encontro da minha resposta anterior... é tempo de questionar o ritmo das coisas, aprender a estabelecer prioridades, agindo em conformidade com estas, e em sintonia e coerência com os valores que apregoamos. O que deve ficar na mesma é a essência do que nos define, em cada uma das nossas dimensões, lutando pelo que nos acrescenta. Fazer do tempo o nosso aliado, vivendo no presente, em pleno, e de forma consistente e consequente. E uma vez mais, é em nós que tudo isto deve prevalecer. E é em sintonia com estes princípios que procuro agir no quotidiano, tentando passá-los aos meus filhos, para que, em conjunto, vivamos intensamente a essência dos momentos deste tempo presente que temos ao nosso alcance.
Qual foi a primeira obra de arte que teve importância real para si?
A elencar uma obra teria que transcrever uma lista... e, a conclusão a que chego, é que a primeira obra foi tão importante quanto todas as que, na minha condição de espetadora, me despertaram para uma nova dinâmica de perspetivar arte e conceito. Obras que, através da sua essência, me ensinaram a aceitar a redefinição da forma, do objeto, do sujeito, do espaço e do ato artísticos, tal como Duchamp os havia revolucionado há cem anos atrás. Prefiro acreditar que, a primeira será sempre a próxima, deixando-me, continuamente, resgatar para novas dimensões e propostas artísticas que me vão sendo apresentadas. Aprendi sobre a importância de cada obra, precisamente através do valor que lhes renegava, e foi esse tal conjunto de obras, que constitui uma lista em aberto, que abriu espaço para reflexão e aceitação das mesmas, em consequência do respeito pelo discurso artístico que está na sua essência.
Qual a próxima viagem a fazer?
- Sem data marcada… A viagem até à aldeia da Namalimba, que descobri existir no Uganda (apesar da origem do meu nome ser uma lenda do Huambo, em Angola).
- No futuro próximo… rumar ao Mali, por ocasião da muito aguardada próxima edição de ‘Les Rencontres de Bamako’, para descobrir de perto todo aquele imaginário da fotografia africana que tenho acompanhado à distância e em teoria. Gostava muito de conhecer o mestre Malick Sidibé no seu estúdio, rendida a todos aqueles cenários teatrais de cada uma das sessões que realizou ao longo das cinco décadas em que retratou a cultura popular local.
- Para breve… as mais prováveis são (sempre) Paris e Luanda.
- E a viagem imaginária… Recuar até 1889 para embarcar na mítica rota do Expresso do Oriente, no tempo que ligava Paris a Constantinopla, e cruzar-me com algum assíduo ilustre passageiro da altura... Mata Hari seria a "desconhecida" que escolheria para companheira ao longo das então 75 horas de viagem.
O que imagina que poderia fazer se não fizesse o que faz?
Era tão improvável fazer o que hoje faço, que nada me impede de acreditar que um dia me entregarei a outros desafios tão inesperados quanto os que me trouxerem até aqui.
Na minha infância, em Luanda, e ainda na adolescência, já em Lisboa, queria ser presidente da República. Aos 15 anos fascinava-me a psiquiatria, ao mesmo tempo que sentia um forte apelo para as áreas criativas (apenas em teoria, uma vez que, nunca tive nenhum dom artístico para dança, música ou artes visuais… quando desenho um gato os meus filhos perguntam-me se é um elefante!), mas acredito que, sem falsas modéstias, se tivesse investido na área de design de moda teria colhido alguns frutos. No liceu, optei pela área de filosofia e letras, acabando por seguir direito. Foi então que rumei para Paris, onde me especializei na área de Direitos Humanos na Universidade de Nanterre (onde começou o Maio de 68), e na École Doctorale de la Sorbonne, onde integrei uma ‘Law Clinic’ em cooperação com os tribunais penais internacionais para a Ex-Jugoslávia e Ruanda, com ligação aos processos de julgamento de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio. Crente que a minha vocação seria neste âmbito, fui integrando estágios e seminários nestas áreas, nomeadamente no Centro de informação das Nações Unidas em Lisboa, e na Comissão de Direito Internacional em Genebra, tudo indicando que o meu percurso seria neste âmbito e longe de Portugal. Até que, por circunstâncias da vida, regressei a Lisboa, mudando completamente o meu rumo profissional, que acabou por se direcionar para a área da comunicação e das artes, onde fui desafiada a reinventar-me e a explorar caminhos que me trouxeram até onde estou hoje. Mesmo neste universo das artes e da cultura, a maioria dos projetos que tive o privilégio de integrar foram tão transversais, e surgiram sempre de forma tão inesperada, que tudo me leva a crer que não existem limites aos desafios que nos propomos, ou que nos propõem, se formos audazes, curiosos e confiantes. Pelo que, imagino que ainda poderei vir a fazer muitas outras coisas para além das que já fiz.
Se receber um amigo de fora por um dia, que programa faria com ele?
Faria um programa genuíno, sem pretensões, que incluísse um meio termo entre os rituais que fazem parte da minha vida real e as vivências únicas que só Lisboa pode proporcionar. Talvez começasse por um bom pequeno almoço, com sabor a ‘fabrico próprio’, numa tradicional pastelaria de bairro, seguido de uma visita ao lavadouro público das Francesinhas, no bairro da Madragoa ou de uma travessia até à outra margem, num dos nossos cacilheiros, aproveitando a viagem para lhe mostrar a praia da Cova do vapor, que quem conhece sabe a que tipo de beleza me refiro. De regresso a esta margem, passaríamos pelo Museu Berardo, seguindo-se um almoço com vista para o rio, no Espaço Espelho d’Água, para saborear uma verdadeira moamba de galinha com funge, pelo orgulho que sinto em partilhar a minha identidade que é também angolana. Após o almoço, sugeria um passeio sem destino, aproveitando para, pelo caminho, ir mostrando algumas das intervenções de arte urbana que vamos cruzando pelos muros da cidade e ir desafiando amigos a juntar-se a nós, porque adoro misturar amigos improváveis e organizar programas espontâneos. Se fosse um sábado, passaríamos pela feira da ladra, descendo até à zona do intendente, passando pelo miradouro do Monte Agudo e pela Casa Independente antes de rumar em direção ao Chiado, para uma visita à Carpe Diem, seguido de um refresco no Park. O jantar poderia ser “arroz de feijão com pataniscas” no Pap’açôrda, seguido de um pé de dança no B.Leza ou na ZDB, fechando a noite no Music Box se a programação fosse “noite príncipe”, ou no Lux, onde nunca precisamos de pretexto para lá sermos felizes.
A sua última obsessão...
São algumas (para não dizer muitas!) e vão-se acumulando, pelo que, não me limitarei à última.. Mas quase todas relacionadas com a memória e com o registo de um passado do qual não fizemos parte, algo que sempre me fascinou. Tudo o que documente tempos passados. Há dois anos que iniciei uma busca incessante de tudo o que esteja relacionado com retratos antigos, principalmente retratos africanos feitos em estúdio e livros de fotografia que reportem a arquivos e coleções que integrem obras de artistas africanos, precursores da fotografia neste género que tanto me fascina. Na sua maioria desconhecidos, mas citando alguns nomes dos que posso identificar destaco Antoine Freitas, Mama Casset, Malick Sidibé, Alex Agbaglo Acolatse, Meïssa Gaye, Seydou Keïta, entre outros, que nos deixaram verdadeiros legados históricos através dos retratos que fizeram das suas culturas populares locais. Sempre manifestei por retratos antigos, de família, de casamentos, de gémeos, retratos vitorianos, retratos de albinos, e com eles chega-me também o interesse em postais e cartas antigas, passaportes e documentos de identificação ou diplomas de mérito, tudo de outros tempos. Recordo-me de correr as banquinhas todas dos mercados de rua de Paris quando lá vivia. Dedico-me a tentar identificar os detalhes que me permitem descodificar o contexto social, religioso, a data, o momento, o local, a par de todas as simbologias associadas. A aura que carregam estes objetos e as histórias e memórias que encerram em si mesmos fascinam-me desde pequena.
Fotografias de Malick Sidibé e Seydou Keita.
Fotografia de Mama Casset.
Retratos de gémeos e albinos.
Quais os seus projetos para o futuro?
Dedicar-me o melhor que posso aos projetos presentes, uma vez que, é o fruto desse empenho que me vai abrir horizontes para desafios futuros. No entanto, quero destacar um projeto, cujo processo de criação começou há mais de um ano, e apesar de ainda estar em fase de implementação, vai merecer a máxima consideração quando se apresentar com uma primeira missão que está prevista para 2015. Falo da ONG ARCADIAN, da qual sou uma das cofundadoras, juntamente com um núcleo de pessoas que aceitou o desafio lançado pelo Rui, que é quem está na origem desta iniciativa. A ONG ARCADIAN surge da necessidade de criar uma plataforma que respondesse a um desafio comum no campo da intervenção social, propondo explorar uma nova dinâmica de ação, interação e reação, através de novas formas de comunicar, com o intuito de envolver artistas e a comunidade criativa nas missões que pretende desenvolver. Sob o mote de agir para além das palavras, 'ações' e 'likes', a ARCADIAN propõe-se repensar o conceito tradicional de ONGs, ao abordar as causas com outra lógica de ação. E é através da comunicação que se dá essa diferenciação, como forma de dar visibilidade às causas defendidas. Por enquanto é tudo o que posso adiantar. Para quem estiver curioso, deixo o link do site: www.arcadianinitiative.org