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José Filipe Costa
Realizador
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Qual a última boa exposição que viu?
Paula Rego - Histórias & Segredos, na Casa das Histórias Paula Rego, depois de ter visto o filme de Nick Willing sobre a sua mãe.
Que livro está a ler?
Flannery O’Connor. Ando entro o pé boto de uma das personagens do conto “Os Coxos hão-de entrar primeiro” e, por causa deste inquérito, fui dar uma vista de olhos à perna artificial de Joy, uma rapariga grande e loura do conto “Gente Sã do Campo.” Também retorno por vezes ao livro Eusébio Macário de Camilo Castelo Branco
Que música está no topo da sua playlist actual?
Não diria que está no topo, nem na playlist, mas andei por um tempo a ouvir em loop a música Gare de Austerlitz, de José Mário Branco...
Um filme que gostaria de rever…
Nós Por Cá Todos Bem, em cópia restaurada, numa sala de cinema. Poderia ver este delicioso número musical, composto por Sérgio Godinho: (minuto 3:34)
O que deve mudar?
Não mudaria uma vírgula a esta descrição da personagem Custódia no Eusébio Macário de Camilo Castelo Branco: "A filha, a Custódia, era uma rapariga pimpona, de muito seio e braços grossos, roliços, com pregas de carnação mole nos cotovelos e uma penugem de frutas mimosas que lhe punha umas tonalidades cupidfneas, irritantes."
O que deve ficar na mesma?
O restante texto de Camilo que põe a Custódia a saracotear-se e a bolear-se. Ora vejam lá: “Ela andava cheia de desejos animais; queria feiras e romarias com bailados de saracoteios desnalgados, pelintras; pedia socas de ponteira de verniz marchetadas de amarelo, com palmilhas de um escarlate de carne viva, e casibeques sarapantões de listras rubras e amarelas; lavava as pernas, brancas como pedaços de marfim polido das velhas imagens e maciezas cetinosas, nos riachos, com grande desfaçatez e presunção; boleava-se num quebrar de quadris reles de servilheta; tinha cheiros de mulher suspeita com grandes lampejos crus de óleo de amêndoas doces nos cabelos em bandós e muitos ardores.”
Qual foi a primeira obra de arte que teve importância real para si?
Tinham efeito de obra-prima as paisagens e as figuras bíblicas que aderiam a um quadro de flanela, na escola dominical. As batalhas de proporções gigantescas, os desertos com palmeiras e camelos de um Oriente importado dos Estados Unidos da América, onde eram fabricados esses flanelógrafos.
Qual a próxima viagem a fazer?
Peregonivka, na Ucrânia, onde em 2001 eu o e João Ribeiro filmamos parte do documentário Entre Muros (2003). Poderíamos fazer um filme do género “onde estão as personagens tantos anos depois?” Filmaríamos a escola secundaria de Peregonivka, onde estudara uma das personagens do filme. O ginásio exibe umas incríveis pinturas murais onde se expressa o ideal olímpico da ex-União Soviética (será que ainda lá estão?). As imagens representam jovens esforçados a fazerem ginástica, como estimulo à obtenção de vitórias para o império.
O que imagina que poderia fazer se não fizesse o que faz?
Talvez trabalhar (tarefas leves) nos campos de Peregonivka (Peregonvika significa, que me lembre, prados verdejantes) numa Ucrânia pacificada, batida pelo sol na Primavera, onde cantariam os amanhãs.
Se receber um amigo de fora por um dia, que programa faria com ele?
Haveria de levá-lo além-atlântico ao Rio de Janeiro, para subir o Morro Dois Irmãos, passando pelo Vidigal. A subida faz suar as estopinhas. A meio do percurso, a indomável Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil, deita-se a nossos pés. Estima-se que ali morem cerca de 70 mil habitantes numa área confinada que lá de cima mais se parece com uma maquete.
Imaginando que organiza um jantar para 4 convidados, quem estaria na sua lista para convidar? Pode considerar contemporâneos ou já desaparecidos.
Convidaria a Custodinha, se nesse dia estivesse com o juizinho todo, que sentaria à mesa com Joy, levada da breca, já com a perna artificial encaixada no coto. Também estaria o jovem vendedor de Bíblias a cobiçar-lhe a perna artificial pelo canto do olho e a Santinha Maria Goretti (citada no número musical de Nós Por Cá Todos Bem).
(É ler o conto da Flannery O’Connor)
Quais os seus projetos para o futuro?
Viajar por várzeas entre-corridas de regatos, cômoros de folhagem empoeirada, quinchosos escorridos das águas vertentes das regas, por onde saltam e coaxam rãs de dorso verde e ventre amarelo a cardumes. Sapos corpulentos, barrigudos, com os olhos arquejantes, erguem um pouco as cabeças rajadas, em aspectos pacíficos de uma melancolia inefável. [adaptado de Eusébio Macário].
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Fotografia do realizador da autoria de Joana Linda.