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PÁDUA RAMOS: DA ARQUITETURA AO DESIGN
CARLA CARBONE
A obra de Pádua Ramos representa uma ruptura com as referências formais do movimento moderno, no entanto, esse posicionamento não esgota o quadro de operacionalidade do designer [1], tão pouco o limita.
Não é fácil inscrevê-lo num padrão parcelar, e unidimensional do projecto. Ramos é profuso e profícuo nas suas criações. Encarna o que se poderia chamar, perfeitamente, a figura do contemporâneo. Viveu o seu tempo, é certo, mas também operou no domínio do contemporâneo, no sentido dado por José Gil, o do artista que, na sua mente, residiu em tempos outros, múltiplos, diferentes do seu.
Nesta alusão exuberante, exterior ao tempo, nesta irradiação espacial, é impossível não relacionar os seus objectos aos de outros designers e artistas, bem como movimentos do seu tempo e de tempos anteriores, ou até vindouros, se encararmos a sua obra como, de certo modo, o resultado de uma sensibilidade visionária, face ao que era realizado no período em que trabalhou, e em comparação com os seus pares.
Neste vogar pelos vários tempos, que é a sua obra, é muito difícil não relacionar os seus objectos, em referencial, com obras do seu tempo, especialmente na pintura. O tratamento vivo, e liso [2] da cor, sobre a superfície plana da tela, as formas geometrizadas, a sugestão dos volumes, propostos nos anos 70, desencadeiam uma tentadora necessidade de associar Ramos, nos termos de influências, ao trabalho pictural hard hedge de António Palolo [3], à pintura de António Charrua, ou à obra de Álvaro Lapa.
A sugestão de o associar, num arco temporal, a assombros artísticos, prefigura-se, sobretudo nas silhuetas em pexiglass de Lourdes Castro [4], nomeadamente na assemblage de objectos do quotidiano, presentes na obra Ombre portée d’un sac à provisions, de 1966, na obra Ombre Portée jaune fluorescente (1966) ou em In the Café, de 1964.
De facto, sem haver conhecimento de que o designer pudesse conhecer a obra da artista, a semelhança do Candeeiro de mesa, 1985, de Pádua [5], com estas obras de Castro, em pexiglass, é impressionante. Assim como as obras de artistas estrangeiros, de Bridget Ryley (Fragments, 1965) a Roy Lichtenstein (Landscapes, 1967), ou ainda a Judd e a sua literalidade (este último mencionado pelo uso, nas suas obras, do metal em justaposição ao pexiglass), denunciam a possibilidade de o designer as ter vislumbrado antes, e até ter, no campo apenas muito remoto das hipóteses, constituído uma matriz de referência.
Na verdade, e a propósito das possíveis referências a Donald Judd nos objectos de design, Dorfles afirmava, em 1969, que a aparência do mobiliário da época se assemelhava não somente aos objectos industriais, mas também ao minimalismo na arte [6], nomeadamente as estruturas essencialistas, feitas em metal e plástico [7], de cores vivas.
Continuando este devaneio vertiginoso sobre as potenciais correspondências que possam ter existido na obra de Pádua, com outras manifestações de cariz projectivo ou artístico, podemos apontar para o exemplo das peças de design: Espelhos de Mesa, de 1985, ou Aparador, 1989. Aparentam uma afinidade com as correntes de design declaradas por Edward Luci-Smith, especialmente a Pop Art, a Deco Revival (ou Retro), ou o pós-moderno inicial, embrionário na década de 60 do século XX [8]. Sem esquecer o movimento de Design Radical, que cumpriu um papel fundamental e humanizador, e de contestação social do design, face aos preceitos less is more, promovidos pelo modernismo clássico de Breuer, Mies, e Le Corbusier.
A celebração de cor, nas peças de Pádua, como a exemplo, o Aparador voluptuoso, de formas femininas e de cor amarela, 1989, os sinuosos Candeeiros de pé do Hotel Solverde, 1989, estes de linhas mais contidas, afirmam a importância do pós-modernismo ecléctico, e do revivalismo Deco, mas também a presença de uma relação mais próxima do design com a vida, mais humanizada com as pessoas, um design mais ligado aos desejos, aos sentidos e às emoções (do utilizador), e por fim, ao “objecto significante” [9], como descreve Maria Milano no livro editado, pela ESAD: “Pádua Ramos/ Do maneirismo à cultura Pop”.
A crítica Barbara Radice, no seu ensaio Memphis e Fashion [10], reforça o conceito pós-moderno de Sottsass, do objecto significante, comunicante, efémero, e inútil.
Para Radice: “Memphis (…) seduz. Seduz pelas suas enigmáticas e contraditórias qualidades”.
E é verdade que os aparadores coloridos de Pádua Ramos, pela cor fulgurante que ostentam, e o brilho admirável que revelam nas superfícies, maravilha-nos e encanta-nos, a ponto de nos prender, de nos tornar cativos.
As suas qualidades estéticas fazem-nos recordar a relação de Pádua com a arte, ele próprio um coleccionador. E de como acreditava que ser coleccionador o tornava mais exigente enquanto arquitecto: "a arquitectura não termina nas paredes, antes recria o design, nos espaços interiores, na concepção dos próprios objectos decorativos" [11]
Esses objectos sedutores, também evidenciam um sentido apurado nos acabamentos, uma atenção redobrada nos pormenores, não fosse Pádua Ramos um designer com uma formação sólida e um passado operativo comum aos seus contemporâneos, assente no desenho de formas racionais e modernas, como as peças que projectou na década de 50 do séc. XX, nomeadamente os aparadores desenhados em 1955, bem distintos dos posteriores (relativos aos anos 80), porém não menos impressionantes e muito bem acabados.
É no móvel de gavetas (1986) de padrão modular, e cor rosa, que mais se evidencia essa relação que Pádua estabeleceu com a arte. E também com o seu tempo, nomeadamente com Sottsass, e Shiro Kuramata, e o seu 49 Drawers, este último referência sugerida por Maria Milano, no excelente livro publicado sobre a obra de Pádua, em três tomos, um dedicado à actividade do design, outro à obra arquitectónica, e ainda outro à experiência de Pádua enquanto coleccionador.
Não se pode afirmar, com toda a certeza, que o design realizado por Pádua, nos anos 80, tivesse sido o resultado de uma influência directa com a obra de Ettore Sottsass, porém, é impressionante a semelhança estilística encontrada nas edições desenvolvidas pela empresa Poltronova, empresa fundada em 1960, na Toscânia, pelo próprio Ettore Sottsass, Paolo Portoghesi, Giovanni Michelucci, Angelo Mangiarotti, e os grupos radicais, Superstudio e Archizoom.
A mesma exuberância, a mesma acuidade, e a irreverência observada em Pádua, poderia ser encontrada nas peças italianas, Superonda, 1967, da Archizoom Associati, Farfalla, de 1968, do mesmo grupo; nos candeeiros Gherpe, do grupo Superstudio, e os seus mecanismos basculantes; nas peças Plassifora de 1966, Superstudio - fazendo analogia aos troféus e jarras de Pádua - e finalmente nas peças Cessato Allarme, de 1986, criadas pelo estúdio De Pas, D'Urbino, Lomazzi.
Desconhecendo o impacto que os objetos Cessato Allarme tiveram em Pádua, o certo é que os seus candeeiros de pé, de cores primárias, realizados em 1989, para o Hotel Solverde, oferecem algumas semelhanças formais com os candeeiros italianos. E uma forte evidência da aplicação inteligente de referências do seu tempo, aliando, de modo peculiar, as formas, que pertencem ao pós-modernismo, com as formas silenciosas do modernismo. Um casamento/reconciliação que Pádua consegue fazer de modo magistral. Sublinhando, assim, uma das principais características do movimento pós-moderno, evidenciado por Radice, a capacidade de se metamorfosear, "de se esvaziar de significado, e de se carregar de enigmas" [12].
Pádua Ramos foi um designer que soube viver o seu tempo, fundir-se nele, e, ao mesmo tempo, sair com agilidade, voejando sobre outros tempos, de igual forma, e com semelhante comprometimento.
Esse andejar sobre a história do design, o assumir a memória e a emoção, bem como o deleite nas formas e o prazer para a vista, não só foi fonte de enriquecimento para a sua obra, como determinou o engenho do designer de aproveitar essas influências na criação de objectos originais, de autoria marcadamente nacional, onde o novo [13] se alia à tradição, e o pós moderno - com a complexidade e contradição que a reveste [14] - ao moderno, mesmo com as dificuldades encontradas no seio de uma indústria que não conseguia acompanhar o desenvolvimento técnico registado [15], até então nas potências mundiais.
A exposição, Pádua Ramos: Da Arquitetura ao Design, com curadoria de esad—idea, Investigação em Design e Arte, agora patente na Casa do Design, em Matozinhos, pode ser visitada até 5 de Maio de 2024, e conta com algumas peças do designer, uma cronologia detalhada que se sucede ao longo da parede, e ainda uma edição de três volumes sobre a sua ampla obra.
Carla Carbone
Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador.
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Notas
[1] Luís Pádua Ramos também foi arquitecto.
[2] História da Arte em Portugal, vol. Pintores. Alfa. Pág. 224.
[3] Ibidem.
[4] Ibidem, pág. 154.
[5] O candeeiro King Sun (1967), de Gae Aulenti, desenhado para a editora Kartell, em 1967, também sugere semelhanças, com o candeeiro de mesa, de Pádua, nos domínios técnico e morfológico.
[6] Lucie-Smith, E. (1995) Furniture. A Concise History, Thames and Hudson, pág. 198.
[7] Ibidem, pág 199.
[8] Ibidem, 195.
[9] Milano, M (2018) Pádua Ramos/Do maneirismo à cultura Pop. Vol. 2. esad – ideia. Pág. 15.
[10] Radice, B (1984) Memphis and Fashion. The Industrial Design Reader. Ed. Carma Gorman. 2003. Pág. 204-205.
[11] Milano, M (2018) Pádua Ramos/Do maneirismo à cultura Pop. Vol. 2. esad – ideia. Pág. 15.
[12] Radice, B (1984) Memphis and Fashion. The Industrial Design Reader. Ed. Carma Gorman. 2003. Pág. 204-207.
[13] Milano, M (2018) Pádua Ramos/Do maneirismo à cultura Pop. Vol. 2. esad – ideia. Pág. 15.
[14] Venturi, R. (1966) Complexity and Contradiction in Architecture. The Industrial Design Reader. Ed. Carma Gorman. 2003. Pág. 184-185.
[15] Ibidem.