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CALL FOR ARCHITECTS
MADALENA FOLGADO
É a vós arquitetos, por ter chegado a vez, a quem cabe junto do Estado ser o artista e representar a Arte, e não apenas o realizador de projectos profissionais. É aos arquitectos a quem cabe a alta missão de colaborar com o Estado e de preparar o inevitável casamento da Arte com a Nação.
A Arte é tão indispensável a uma Nação como as suas próprias fronteiras.
José de Almada Negreiros
Procurar o significado ‘na’ forma é como procurar o objecto perdido, não onde ele se perdeu mas onde há luz para ver.
Manuel Tainha
Porquê Call for Architects, e não Chamada para Arquitetos?
Para facilitar o deslocamento; o desenhar da atenção para o espaço entre línguas, na medida em que traduzir, do latim translat-, significa levar adiante. Para, por breves instantes, refletirmos sobre o quanto somos cativos de aparatos quer idiomáticos, quer mediáticos, tantas vezes excêntricos para com os nossos verdadeiros chamados, fazendo-nos renunciar a procurar linguagens – e não línguas – capazes de expressar e adequadamente construir espaços em-comum: Espaços alternativos, no sentido de alter-nativos; i.e., inclusivos, em que o alter – do latim, Outro – possa ser por excelência o nativo dos territórios impuros da arquitetura; lugares interditos ou que se deixaram interditar, apenas assim designados, precisamente, por exclusão do Outro enquanto acontecimento libertador. Salvaguardando qualquer usurpação de título, o arquiteto aqui chamado não é tão-somente o formalmente definido mediante o justo enquadramento jurídico, mas sim, esse Outro, desde sempre coabitante.
Nativo significa também inato. Um tal alter-nativo, a vir de fora, há muito que nos habita. Recordo neste sentido acontecimentos tão distintos quanto marcantes em Portugal como George Kubler, o influente historiador de arte norte-americano que cunhou o termo Arquitetura Chã, ou as Operações SAAL, onde os arquitetos do Pós 25 de Abril se afirmaram pela escuta ativa desse Outro, que afinal de contas, sempre construiu. A presente Call é portanto uma pró-vocação, um chamado a ser mais de si; a ver-se cumprida a função primordial da arquitetura: Dar (enquanto dom ou vocação como chamado) abrigo. Abrigo à pluralidade de modos de habitar, e desta maneira de construir – "Somente em sendo capazes de habitar é que seremos capazes de construir "[1]. Habitar é a condição primordial para que o mundo se torne um interior; o nosso mais profundo e luminoso avesso, um projetar(se), enquanto um consciente cair em si, cair em nós.
Este é um convite a discorrer, de modo a tornar mais clara, essa mesma coisa que ressurge e nos abriga. É objetivamente uma chamada de trabalhos; textos e contextos inclusivos, dirigida a arquitetos-não-arquitetos, porque sempre estivemos juntos, acima do bem e do mal, para construir e para destruir. A ARTECAPITAL, Magazine de Arte, chama por textos ingenuamente perigosos, que destruam as formas de niilismo instaladas nas mais arraigadas convicções do que é arquitetura, do que pode ser-se arquiteto e do que pode e pode ser a experiência arquitetónica. Privilegiamos no entanto uma visão da arquitetura enquanto a arte de criar lugar [2], e de lugar enquanto ponte [3], que não nos escravize através de um falso sentimento de pertença: Ao star system [4], como o coelho movido pela armadilha da cenoura. Antes, que dê a ver constelações de autores e obras, anacronismos, na relação com a vida; no seu acontecer, tantas vezes em lugares julgados como pouco glamorosos. Enquanto a realidade nos continuar a escapar, e andarmos às avessas com a carga burocrática e tecnológica da profissão, quer enquanto arquitetos, clientes ou simplesmente fruidores, façamos da arquitetura possibilidade de enquadramento caleidoscópico – kalos (belo) + eidos (forma) + skopein (ver), neste estranho tempo, onde por excelência somos todos convocados, enquanto artistas, a criar as mais belas imagens do Comum.
Libertos do olhar exclusivo sobre o star system (sem contudo deixar de admirar, reconhecer e discorrer sobre o que de mais belo se faz como arquitetura mediática), sentir-nos-emos porventura mais inclusivos, mais seguros para dizer com o poeta: "Não acredito que cada um tenha um lugar. / Acredito que cada um é um lugar para os outros" [5]. Talvez tenhamos, como o anarquiteto Gordon Matta-Clark, que libertar espaços cativos do mercado, e salvá-los da classificação de devoluto, i.e., não habitado – Rasgarmo-nos, nós mesmos, em primeiro lugar. Um texto enquanto um olhar renovado, pode fazê-lo. Pedimos por isso também que nos chamem para contar as vossas histórias; numa entre-vista, sermos cúmplices, como este Magazine de Arte tem vindo a fazer. Por outro lado, lembro-me frequentemente da recomendação de Álvaro Siza Vieira às gerações mais novas, no sentido do trabalho a fazer: Passar o cliente da arquitetura para o lado do processo criativo, por via a que este não se torne apenas mais um credor – de prazos, pareceres técnicos, licenças…[6]. E, um certa falta de prazer, decorrente do afastamento da arquitetura da arte; ou da arquitetura enquanto arte:
Porque a Arte não é apenas conhecimento, é prazer de conhecimento. E é com efeito o único conhecimento que serve, aquele que nos dá prazer. A vida não é um calvário senão por ir errada. Não tenhais medo da palavra prazer, não é uma licença, é a mais nobre garantia da humanidade [7].
Estas últimas, são palavras de exortação aos arquitetos, proferidas em 1938 por Almada Negreiros; um texto que me é muito caro, pelo momento preciso da vida em que o encontrei, no sentido de – e leia-se a epígrafe do presente texto – criar um espaço novo, ou o desenho de uma janela para uma visão do Possível, para lá da profissão:
Hoje, o momento é propício aos arquitectos. Não é uma causalidade. É a Arte, essa que está acima de todas as profissões e de todos os profissionais da Arte, que está arrumando as suas coisas.
Vós sabeis o que significa ter chegado a hora dos arquitectos. Vós sabeis que não é positivamente a sorte grande mas não duvideis de que é a grande sorte, a do homem que há-de ser artista, o homem que há-de ser humano, o homem que deseja que a vida não só não o humilhe a si como também não humilhe os demais.
Quando chega a nossa vez redobra a vez, tornamo-nos centro de uma periferia que vai até onde influi a nossa capacidade, de modo que quem não está presente à sua vez, a sua vez é aquela e não outra, fica a vez vazia e tudo em redor também [8]
Em 2022, estamos confiantes que colheremos uma pluralidade de Possíveis, na esperança de encontrar ressonância e correspondência anacrónica com estas palavras em info@artecapital.art
Madalena Folgado
É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes.
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Notas
[1] Martin Heidegger, “Construir, Habitar, Pensar”, in Martin Heidegger, Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2012, p. 139.
[2] Sobre a abordagem fenomenológica do arquiteto e teórico Christian Norberg-Schulz, Josep Maria Montaner, Arquitectura y Crítica, Barcelona, Gustavo Gili, 1999, p. 65.
[3] Martin Heidegger, op cit, p. 133.
[4] Vide nota 4 em Maria Rebelo, De que me serve ser arquitecta, Lisboa, ARTECAPITAL.
[5] Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Lisboa, Assírio e Alvim, 2019, p. 59.
[6] Na conferência, do ciclo Inside a creative mind, com lugar na Fundação Calouste Gulbenkian, dia 18 de Março de 2016.
[7] José de Almada Negreiros, “Duas Palavras de Um Colaborador na Homenagem ao Arquitecto Professor Pardal Monteiro”, in José de Almada Negreiros, Manifestos e Conferências, Lisboa, Assírio e Alvim, 2006, p. 268.
[8] Idem.