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O SER URBANO: UMA EXPOSIÇÃO COMO OBRA ABERTA. NO CAMINHO DOS CAMINHOS DE NUNO PORTAS
JOÃO ROSMANINHO
O título deste texto é explicita e livremente retirado de “O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas”, a exposição dedicada a Nuno Portas e organizada por Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura. Comissariada por Nuno Grande e desenhada pelo Studio Andrew Howard, “O Ser Urbano” tem origem e enquadramento na área de “Arte e Arquitectura”, integrando o “Ciclo Escalas e Territórios”, sob a programação de Gabriela Vaz-Pinheiro.
Para além da exposição (a decorrer entre 10 de Março e 20 de Maio na Fábrica ASA, em Covas, Guimarães), o projecto constitui-se por mais três momentos que acompanham e multiplicam a reflexão sobre o autor: o lançamento do catálogo da exposição (25 de Abril); um debate público sobre “O Direito à Cidade: políticas urbanas do Portugal Democrático” (25 de Abril); e o colóquio internacional “Da Cidade ao Urbano: Encontros com o ideário de Nuno Portas” (a decorrer a 18 de Maio na Escola da Arquitectura da Universidade do Minho).
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“A cidade como arquitectura” [1]
O Ser Urbano é Nuno Portas (n. 1934). Alentejano, nasceu em Vila Viçosa, estudou em Lisboa e no Porto, tem viajado e trabalhado um pouco por todo o lado. Guimarães, cidade e concelho, é um dos muitos exemplos cuja ligação se prolonga desde a década de 1980. Arquitecto de formação, “intelectual cosmopolita por vocação” [2] e humanista por convicção, partiu da escrita para se aproximar à disciplina antes ainda de se diplomar (em 1959). Tanto através da crítica de cinema, no Diário de Lisboa (1956), quanto pela crítica de arquitectura, na revista Arquitectura (1957), Nuno Portas arranca para uma obra exemplar sem que a tivesse procurado como tal. Ao autor não interessa o fim interessa o meio, “não interessa o objecto interessa o processo.” [3] A ideia de que a cidade deve surgir como corpo aberto à disputa e à investigação (como arquitectura portanto), não sendo exclusiva, tornou-se pertinente ou mesmo fundamental nestes mais de cinquenta anos.
O Ser Urbano é, também, o Ser Moderno, um homem da Renascença que habita os séculos XX e XXI. De carácter clássico mas múltiplo, para além de moderno, Nuno Portas tem sido um homem do modernismo, da sua continuidade mas especialmente da sua revisão e ruptura. Talvez seja esta inquietude a causa e o efeito de uma carreira tão “plural e singular” [4] no seu (e no nosso) tempo. Nuno Portas foi (e é) o Ser Reformista, o político, o Ser Pedagogo, o professor, e o Ser Urbani(s)ta, o arquitecto. Nuno Portas é, afinal, o Ser Difuso, um homem da Contemporaneidade sempre em movimento ou, melhor, sempre em viagem. Como alguém disse sobre ele: está constantemente “a chegar de um lugar e de saída para outro”. Nuno Portas tem casa algures no mundo, na cidade portuguesa. A sua obra e o seu lugar são as suas relações.
Ora as suas relações são um território, uma rede de afeições e preocupações que produz significado; um significado constituído ao longo dos anos e agora classificado, como uma metodologia. Basta ver os números de “O Ser Urbano” onde convivem quase sessenta anos de actividade e produção desenfreadas (entre 1956 e 2012). Há profissões que vão da crónica de jornal à prática projectual, do planeamento técnico à participação social; há material gráfico de toda a espécie e demais autorias; há depoimentos de amigos, colegas e antigos alunos. Na ASA há ainda o que não tem forma mas tem expressão: a presença e o imaginário do arquitecto são inseparáveis das culturas urbanas contemporâneas portuguesa, europeia, mediterrânica e sul americana.
Nuno Portas e o seu “caminho de múltiplas escolhas” são o tema de um projecto quase épico, publicado sob um compacto catálogo vermelho de seiscentas e quarenta páginas. [5]
“A arquitectura como obra aberta” [6]
A exposição “O Ser Urbano” está localizada numa estrutura industrial parcialmente desactivada até à Capital Europeia e recuperada para o efeito. No primeiro piso desse antigo lugar colectivo de trabalho [7] o espaço acolhe a mostra pacificamente e com a dignidade genuína de algo familiar e produtivo. Trata-se de uma exposição de e sobre trabalho. Parece que é de propósito. Sem um conforto museológico demasiado institucional, o Sector J daquele edifício responde seca e silenciosamente aos dispositivos e respectivos conteúdos distribuídos por uma sala hipóstila de colunas e vigas brancas.
Como “no Vale do Ave e nos outros sítios o que é preciso é malhar”, [8] a exposição é construída sobre uma grelha cartesiana de marmorite em xadrez. Como a malha que Portas reconhece ser essencial para a organização de uma cidade ou de uma região, a exposição é uma cidade que acontece no interior de um vazio fabril com a estrutura à vista. Os elementos urbanos convertem-se em sofisticados móveis e objectos expositivos, de alturas e dimensões diferentes, permitindo a deambulação dos visitantes por um território de tempos intersectados e assuntos sobrepostos. É como se de uma topografia doméstica se tratasse, como se a exposição pudesse também ser examinada como uma grande maqueta, observada de cima e espreitada de flanco. Os volumes que aparecem de uma extrusão do pavimento, tal como o “desenho do chão” [faz] o “projecto urbano”, traçam vários percursos. Como um “desenho por pontos” [9] há princípios e alternativas, há para cada visitante a possibilidade de se sentir “arruador”, há para cada visitante um “caminho de múltiplas escolhas”. [10]
Aparentemente a exposição procura apresentar algo inorganizável e que é uma experiência humana e urbana excessivamente activa (e por vezes eloquente), parcialmente contraditória mas, por isso mesmo, totalmente decisiva. Embora seja estruturada cronologicamente a exposição tem hiatos e sobreposições, hipertexto e palimpsesto, formatos analógicos e digitais. Há sete etapas, todas elas em curso, todas elas escritas no pretérito perfeito mas “retidas” no presente indicativo (excepto a última que permanece incompleta, é escrita em vários tempos e pede várias mãos). Em “O Ser Urbano” parece haver de tudo: temas (sob as tais sete etapas-capítulos); projectos (em desenhos, maquetas, diagramas, memórias descritivas, etc.); textos (em artigos, despachos, antologias, livros, etc.); viagens (em slides); performances e documentários (em vídeo-projecção); entrevistas (em televisão); e panoramas (em fotografia, da autoria de Carlos Lobo, o artista em residência). Entre planos directores e recortes de revista, textos do autor e livros de cabeceira, mandamentos e decretos, cadernos e relatórios, o material produzido por Nuno Portas transforma-se mais facilmente em objecto de discussão que em objecto de exposição. Parece que é de propósito. Expor um material que é, na sua origem, um problema de investigação ideal (essencialmente por se tratar de um enorme problema de arranjo canónico) é, também e acima de tudo, uma hipótese que vale pelo processo. Reconhecendo que o primeiro problema expositivo para Nuno Grande terá sido de conteúdo arrisca-se que o segundo terá sido de forma. Como refere o comissário, Nuno Portas trata-se de um autor que, “sendo arquitecto, tem mais texto que imagem.” [11] A sua acção vem do desígnio e não do desenho, a sua imagética vem da pesquisa e não da superfície. Nuno Portas é um arquitecto não-arquitecto, não por se encontrar fora do campo mas por estar no seu âmago, na sua origem.
Tudo o que é matéria de análise sobre a obra de Nuno Portas poder-se-á encontrar neste “cabinet de curiosités”. [12] Nesta exposição os volumes são como convolutos, são como as letras do alfabeto [13] de outrora. Há cento e cinco caixas ou secretárias de madeira com as pastas e os ficheiros por ordenar. Imaginemos as nossas gavetas cheias de papelada sobreposta e cuja arrumação vem quando o critério se altera perante a circunstância: só encontramos o que (não) queremos. Parece que é de propósito. Os tampos das caixas são mesas de luz e de trabalho que permitem ler e verificar períodos ou episódios distintos. Sobre cada mesa estão colocados dois estratos transparentes servindo cada qual como suporte e técnica de datação; cada plano ao separar os temas também os aproxima e associa. Como se de uma sala de aula se tratasse, há camadas de ideias e questões que dificilmente terminam em cada plano ou em cada uma das mesas. A duplicação dos estratos permite entender diferentes e autónomos sentidos, essencialmente permite que seja o visitante a decidir. Como se fosse um percurso ou um discurso, também aqui, à escala dos elementos urbanos (ler objectos expositivos), há vários níveis e “caminhos” de leitura.
Contudo a exposição e os seus objectos expositivos permanecem imóveis. Só no seu interior o visitante pode fazer várias leituras, o seu exterior não serve. “O Ser Urbano” tem traseiras e locais inacessíveis, tem becos e margens, quase tem centro e periferia, como as cidades aliás. Parece que é de propósito. O dilema é que na exposição os limites estão fixos: os móveis estão imóveis. Fica a sugestão: talvez tornando os móveis móveis, a exposição se torne numa solução “evolutiva” permitindo outras e novas apropriações. Como no texto final da exposição, investigar e compreender também consiste em “gerir a cidade para hoje, qualquer que seja a sua forma”. [14]
Resta fazer duas notas: uma sobre as actividades paralelas à exposição; e outra sobre a imagem e comunicação do projecto. Em primeiro lugar importa relevar a “abertura” que tanto o debate como o colóquio poderão permitir. Se ao espaço físico expositivo se acrescentar o espaço público “participativo” crê-se que a discussão sobre a cidade à volta do pensamento de Nuno Portas ou o seu contrário (sobre Nuno Portas em torno da cidade) nos possa aproximar da gestão que o próprio sugere. Em segundo lugar importa, igualmente, destacar a identidade gráfica do projecto (na composição do catálogo e design matricial quase neoplástico dos cartazes), assim como o layout expositivo, da autoria do Studio Andrew Howard. [15] Como defenderá Nuno Portas (eventualmente sobre a própria exposição): “desde que se trate de uma lógica de malha, tudo bem.” [16]
A exposição sobre “Nuno Portas é [também] a Cidade Portuguesa” [17] e, por isso, o projecto “O Ser Urbano” permanece incompleto. Permanece incompleto, em Guimarães, até que desça a Lisboa, ao Porto, ou a Vila Viçosa; até que saia em viagem para outra das cidades de Nuno Portas.
A exposição como “a cidade como (a) “arquitectura” como obra aberta”
Há casos em que uma coisa lembra outra: uma exposição que lembra uma cidade que lembra uma arquitectura e que é uma obra aberta. Também aqui há cruzamentos. “O Ser Urbano” é uma viagem à nossa cidade temperamental, contemporânea e anacrónica, moderna e pós-moderna.
Há catorze anos certos, por uma ocasião de calendário que agora não recordo, foi-me oferecida pelo meu avô paterno a edição Livros Horizonte de 1969 de “A Cidade como Arquitectura”. Ao abrir o livro, na primeira página, vem a dedicatória: “Este livro já tem alguns anos / no entanto vê se aproveitas alguma coisa / do Avô / 05-98”. Li-o entusiasmado nesse Verão após terminar o primeiro ano da licenciatura em arquitectura. Não percebi metade, para ser optimista. Embora o primeiro contacto com a escrita de Nuno Portas tenha sido difícil e desarmante, o regresso ao livro foi acontecendo de modo insistente, durante a Escola e depois dela (algumas das vezes voltando apenas àquele índice tão claro e estruturante).
Em Março passado, aquando da inauguração de “O Ser Urbano”, lembrei-me de novo de “A Cidade como Arquitectura”. Desta vez lembrei-me da capa da autoria de Miguel Chalbert. Lembrei-me que, talvez, os elementos que fazem a cidade são afinal os mesmos que fazem uma exposição. Parece que é de propósito.
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João Rosmaninho D. S.
(Lisboa, 1979) Arquitecto pela Universidade do Minho (2002). Estudou no IUAV de Veneza (2001-2002) e concluiu o mestrado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa (2009). É docente na Escola de Arquitectura da U.M. (desde 2002) onde colaborou no Centro de Estudos (2009-2010). Desenvolve investigação de doutoramento sobre as relações contemporâneas portuguesas entre Cinema e Cidade.
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O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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NOTAS
[1] Cf. Portas, Nuno, “A Cidade como Arquitectura”, Lisboa/São Paulo, Livros Horizonte, 1969. O título deste livro é também utilizado para dar nome à segunda hipótese-etapa das sete que organizam a exposição. Ver: “A Cidade como Arquitectura [1962-1974]”.
[2] Serra, João, “As Cidades de Nuno Portas” in O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas, p.45.
[3] Expressão recorrente de Nuno Portas, lembrada durante uma visita guiada à exposição (23 de Março, 2012).
[4] Ver Ferrão, João, “Nuno Portas, arquitecto singular, povoador plural” in O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas, pp.81-85.
[5] Cf. Grande, Nuno (org.), “O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas / The Urban Being: on the Trails of Nuno Portas”, Guimarães 2012: Capital Europeia da Cultura, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Abril 2012.
[6] Grande, Nuno (org.), “A Cidade como Obra Aberta” in O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas, pp.460-537. Trata-se, novamente, de um título reutilizado e que dá nome à quinta hipótese-etapa das sete que organizam a exposição. Ver: “A Cidade como Obra Aberta [1985-2008]”.
[7] Na verdade trata-se, ainda hoje, de um importante conjunto urbano de escala social e física para a cidade de Guimarães e para a região do Vale do Ave.
[8] Expressão utilizada por Nuno Portas durante uma visita guiada à exposição (23 de Março, 2012).
[9] Vaz-Pinheiro, Gabriela, “Nuno Portas, sentidos de um olhar no programa de arte e arquitectura” in O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas, p.51.
[10] Portas, Nuno, “A Cidade para Hoje – Um caminho de múltiplas escolhas” in O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas, p.602.
[11] Expressão utilizada por Nuno Grande em entrevista (13 de Fevereiro, 2012).
[12] Grande, Nuno, “O Ser Urbano” in O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas, p.43.
[13] Walter Benjamin ter-se-á confrontado com este objecto de sistematização enquanto definia os convolutos do seu derradeiro projecto incompleto: os “Livros das Passagens”.
[14] Portas, Nuno, “A Cidade para Hoje” in Op. Cit., p.607.
[15] Responsável, entre outros trabalhos, pelas belíssimas capas tipográficas dos romances publicados pela AHAB Edições.
[16] Expressão utilizada por Nuno Portas durante uma visita guiada à exposição (23 de Março, 2012).
[17] Grande, Nuno, “Nuno Portas é a Cidade Portuguesa” [entrevista de Sérgio C. Andrade] in jornal Público – suplemento Ípsilon (9 de Março, 2012), p.28.