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A FORMA BONITA – PETER ZUMTHOR EM LISBOA
ANA VAZ MILHEIRO
É justo que Portugal receba “Peter Zumthor: Edifícios e Projectos 1986-2007”, acontecimento único na vida de um arquitecto que é bastante reservado na exposição pública da sua obra. Zumthor, nascido em 1943, em Basileia, cidade base da arquitectura suíça contemporânea, estudou Design e Arquitectura na Kunstgewerbeshule Basel e no Pratt Institute de Nova Iorque. É professor na Accademia di Architettura em Mendrisio.
Na generalidade, os arquitectos portugueses dedicam a Peter Zumthor uma atenção muito particular por nele pressentirem um apego pelas formas depuradas e uma contenção no uso das “matérias” arquitectónicas. É o que também explica o sucesso que os seus livros alcançam entre nós e que se deve igualmente a uma certa deformação teórica que inscreve a escrita da arquitectura entre o foro “fenomenológico” e o estilismo “poético”. São textos de tom intimista que reproduzem muitas vezes conteúdos de conferências ou intervenções em seminários reflectindo a informalidade aparente que esses eventos possuem. O seu efeito está directamente relacionado com a expressão oral. Trata-se do ambiente ideal para suprimir o supérfluo, num procedimento idêntico ao que se reconhece nos seus edifícios.
Frases como “de todos os desenhos que os arquitectos produzem, prefiro as telas [finais] de obra” (Zumthor, 2004, 1988: 18), proferida em Nova Iorque, provocam uma empatia quase imediata, porque destacam qualidades que os arquitectos querem ver associadas ao métier, como o rigor: “As telas [finais] de obra são detalhadas e objectivas”, isto é, descrevem “o que se fará exactamente”, não deixando lugar à divagação (Idem). Zumthor aproxima-se assim da tradição iluminista que inaugurou a modernidade e, numa perspectiva naturalmente não linguística, seria quase tentador descrevê-lo como um arquitecto neoclássico europeu.
Por ocasião da sua passagem pelo país, Zumthor deu uma dessas palestras na Aula Magna da Universidade de Lisboa, no dia 6 de Setembro. No percurso que realizou sobre o seu trabalho, e que iniciou com referências à música contemporânea (que são habituais), tratou a arquitectura na sua excepcionalidade e não como um acontecimento corrente. Esta perspectiva, que contraria as tendências de democratização do acesso à arquitectura, concentrando-a em realizações pontuais e sinalizadas, é um dos aspectos centrais do seu discurso e um dos seus trunfos mais celebrados. A sua obra canónica que corresponde à fase que emerge no final de 80 elege precisamente um regresso à veia civilizacional europeia, quando uma arquitectura massificada e ideologicamente mais “próxima do público” está em declínio. A capela de Sogn Benedetg, Sumvitg, Suíça, de 1988, corresponde talvez a esse arranque, ainda que Zumthor por vezes permita uma cronologia mais alargada. Tratando-se de uma construção em madeira, realça de forma precoce uma moral construtiva que se acentua a partir de então e que está directamente relacionada ao potencial dos materiais, recusando “ser mensagem ou signo” e reforçando-a no “seu próprio âmbito existencial” (Zumthor, 2004, 1988: 12).
De acordo com as biografias oficiais (cf. site oficial da exposição “Peter Zumthor: Edifícios e Projectos 1986-2007”), a sua atracção pela plasticidade textural dos materiais de construção deve-se ao facto de ser filho de um “artesão de mobiliário”, na verdade, um ebanista, confirmando uma inclinação artesanal que se adequa bem ao seu perfil de arquitecto minucioso, atento ao detalhe. A sua aprendizagem vem descrita no texto “Von den Leidenschafen zu den Digen” (“Das Paixões às Coisas”, trad. a partir do castelhano) apresentado num simpósio sobre Alvar Aalto em 1994. Nele refere a sobrevivência de uma prática arts and crafts, expressa através de um carácter intuitivo e sensorial: “Realizar formas precisas e sólidos encaixes, colocava-me num estado de concentração e os móveis novos já acabados difundiam um frescor especial ao meu redor” (Zumthor, 2004, 1994: 43).
Esta prática reflecte-se em materiais cujo manuseamento artesanal é menos óbvio, como o betão. Na capela Saint Bruder-Klaus, Mechernich, Alemanha, de 2007, conduz o processo a níveis experimentais máximos. Talvez seja por isso que esta obra mais recente é também aquela que menos reproduz uma experiência arquitectónica e que mais se dilui numa experiência artística. Para a família camponesa da herdade de Scheidtweiler, responsável pela encomenda, Zumthor não constrói um edifício mas um monumento dentro da velha definição loosiana, onde a habitabilidade, em sentido lato, é factor minimizado. Apesar do forte apelo plástico que as imagens deste edifício produzem, a sua influência na arquitectura contemporânea deverá ser menor que a de outras obras, caso das Termas de Vals, Suíça, 1996, onde refundou uma das direcções da contemporaneidade.
Zumthor nunca ganhou um Prémio Pritzker Arquitectura, embora seja bastante consensual no cenário europeu. Mas já foi premiado em 1998 com o Prémio Mies van der Rohe para a Europa, no mesmo ano em que Paulo Mendes da Rocha ganhou o da América Latina. O Kunsthaus, em Bregenz, de 1997, e o edifício da Pinacoteca do Estado de São Paulo, com que cada um foi distinguido, revelam naturalmente modos distintos de fazer e pensar a arquitectura: o que no arquitecto brasileiro é novo, por assentar numa matriz heróica; no suíço é arcaico por jogar com arquétipos. Apesar das relações que na arquitectura se têm proposto entre novo e arcaico, estes são pressupostos que reflectem civilizações diferenciadas enfatizando uma certa tensão América/Europa que a arquitectura contemporânea tem permitido clarificar.
Note-se, ainda, a ligação por vezes tentada com Louis Kahn. A remissão de Kahn para os “inícios” faz-se num sentido primitivista que lhe possibilita construir formas viscerais; já Zumthor, não obstante a carga emocional que coloca nas suas descrições, apela a uma consciência histórica: as suas formas são “cultas”. Vale a pena regressar ao que escreveu sobre Valls: “Inicialmente formulámos as nossas ideias em termos teóricos, ideias sobre os rituais de purificação e de higiene, acerca da interacção mútua entre lugar, arquitectura e banhos: ideias, desejos, sonhos… mais tarde… visitei os banhos turcos em Budapeste, Istambul e Bursa. Regressei dessa viagem com uma imagem mental…” (Zumthor, 2007: 91).
A exposição montada em Lisboa na LXFactory, e que veio do Kunsthaus, permite exactamente situar essa condição europeia-suíça de Zumthor, mesmo no seu próprio contexto “doméstico”. Inclusive serve de contraponto à exposição de “Herzog & de Meuron: Archaeology of the Mind”, organizada pelo Canadian Centre for Architecture, Montréal, 2002-2003, que resultou no livro Natural History editado por Philip Ursprung, documento essencial no domínio das exposições de arquitectura contemporânea. Zumthor aliás caracterizou muito bem o que os distancia ao afirmar, a dada altura: “Os meus colegas suíços Herzog & de Meuron falam… de que actualmente a arquitectura já não se dá como totalidade e que, portanto, deve produzir-se artificialmente… como um acto de pensamento… pessoalmente creio que a totalidade corpórea do objecto arquitectónico se basta a si mesmo” (Zumthor, 2004, 1991: 29). À segmentação conceptual proposta na exposição de Herzog & de Meuron, Zumthor parece querer responder com blocos expositivos que recorrentemente aludem a essa condição de unicidade presente na sua arquitectura. Tem portanto relutância a fragmentar os projectos em “momentos” procurando perspectivas totalizadoras. É o que parece desejar mostrar-se na visão panorâmica dada pelas maquetas, desenhos ou filmes, registados pelos artistas Nicole Six e Paul Petritsch e que abrangem quase todos os edifícios construídos durante o período entre 1986 e 2007.
A componente material da sua obra é representada na abertura por modelos tridimensionais que reproduzem as qualidades dos seus projectos mais famosos através de uma dimensão táctil. Funcionam como elementos introdutórios aos temas que atravessam a sua arquitectura: exactidão, totalidade, perenidade, ética construtiva, história e mais recentemente “atmosfera”. São uma espécie de folies, já que cada um desses modelos isola uma dessas características e o seu compromisso com o “real” é mais evocativo que realista. Os 12 filmes de 40 minutos de Six e Petritsch denunciam a impossibilidade de restringir a experiência da arquitectura à visita de uma exposição. É um momento-manifesto pacificado com a presença, num outro espaço, de diversos elementos de trabalho – desenhos e modelos experimentais – que reflectem o processo criativo desenvolvido no isolamento do seu escritório.
A resistência de Zumthor à celebridade fácil dos media que se tornou numa espécie de marca da geração nascida no pós-guerra transformou-o numa personagem mítica num mundo globalizado e seduzido pelo glamour mediático. Zumthor é um rochedo estável num panorama que tende para a transitoriedade. Ainda que seja possível refazer o seu percurso, a sua obra permanece na obscuridade até aos anos 80, quando surge com projectos de forte carga telúrica numa renovação dos valores da arquitectura pós-moderna. Igualmente parcimoniosa é a sua produção editorial onde se reconhece uma certa aversão por reedições. A sua antologia mais famosa continua a ser Peter Zumthor Works: Buildings Projects, de 1999, que reflecte a fase de 1979 a 1997 da Lars Müller Publishers, entretanto esgotada e muito valorizada em alfarrabistas internacionais. Esta edição marcou graficamente a reprodução dos projectos de arquitectura durante a década seguinte. Zumthor gere a sua projecção pública mediante um controlo apertado, libertando um mínimo de imagens (as de Hélène Binet, por exemplo, que retratam Song Benedetg, Valls ou o Kunsthaus) e de publicações. Com esta atitude parece querer manter-se focado em exclusividade na produção arquitectónica.
Zumthor revelou-se um modelo para o arquitecto emergente na década de 90. As suas características mais evidentes são a austeridade, a seriedade e um certo desprendimento pelo mundano. Trata-se de trazer novamente para a vivência da arquitectura um modelo histórico que tem raízes, por exemplo, numa arrogância disciplinar incorporada por personagens como Mies van der Rohe. Mas também reforçar outros “saberes cultos” que estão na envolvente da prática. Zumthor descreve na conferência Atmosphären de 2003, que o seu último objectivo é “A forma bonita”: “Encontro-a talvez em ícones, reconheço-a por vezes em naturezas mortas, que me ajudam a ver como algo encontrou a sua forma, mas também nas ferramentas do dia-a-dia, na literatura e nas peças musicais” (Zumthor, 2006, 2003: 73).
Como em Mies, o que está para lá da arquitectura, mesmo o cliente, é de alguma forma infantilizado face à personalidade forte do arquitecto. Este trato não cria ressentimento, antes amplia uma certa aura de excepcionalidade que se comunica à arquitectura. É exactamente isto que uma parte muito assinalável da sociedade, principalmente a ocidental e europeia, hoje reclama dos seus arquitectos. É também por isso que Zumthor veste tão bem o fato de último representante de uma cultura europeia, erudita e civilizada.
Os edifícios de Zumthor oferecem portanto uma experiência que tem estado arredada da prática contemporânea: trata-se de vivenciar a imortalidade. Há muito que a sociedade deixou de confiar nos arquitectos para a resolução dos seus problemas mais imediatos como a superpopulação, escassez de recursos ou a falta crónica de infraestruturas. Esse desejo de ser um “técnico” ou um especialista que se transformou no sonho derradeiro do arquitecto moderno tentando remediar os males do mundo, foi rapidamente ultrapassado pelo impacto com o real. E até os arquitectos pós-modernos que procuraram reproduzir facetas desse mesmo real, acabaram por fracassar junto da opinião pública. A oferta da eternidade que Zumthor propõe não poderia vir em melhor altura.
Para Zumthor, portanto, a experiência da arquitectura não pode ser massificada o que significa que não pode ser democratizada: será sempre uma experiência excepcional. Esta é a dura realidade da sua proposta. Fora dos seus edifícios quase não existe arquitectura como pode ser confirmado pelas reflexões em torno do Museu Kolumba, Colónia, Alemanha, de 2007, ou do modo como este recusa integrar qualquer experiência contaminada que remeta para a vida vulgar. Há, indubitavelmente, um elitismo na condução dessa mesma experiência que a torna à parte.
Enquanto se defende o retorno a uma prática realista, enfrentando questões de sobrevivência nas grandes cidades e nos continentes em vias de desenvolvimento, Zumthor permanece fechado no seu refúgio de Hadenstein, Suíça, onde trabalha no escritório que fundou em 1979. A sua inacessibilidade pessoal confunde-se com a própria excepcionalidade de cada um dos seus edifícios. Estes são necessariamente poucos e localizados numa geografia mínima com epicentro entre a Suíça e a Alemanha, um requisito para que não se vulgarizem, funcionando como uma espécie de depositários dos altos valores da cultura europeia. O objectivo é a lucidez extrema, mas uma beleza poderosa pode ser, pelo contrário, fonte de alienação.
Ana Vaz Milheiro
Arquitecta. Mestrado (1998) pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa e doutoramento pela Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (2004). Autora dos livros A Construção do Brasil – Relações com a Cultura Arquitectónica Portuguesa (2005) e A Minha Casa é um Avião (2007). Crítica no jornal Público. É professora no Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa e na Universidade Autónoma de Lisboa.
Bibliografia citada
Zumthor, Peter. Pensar la Arquitectura, Barcelona: GG, 2004;
Zumthor, Peter. Atmosferas, Barcelona: GG, 2006;
Zumthor, Peter/Hauser, Sigrid. Peter Zumthor Therme Vals, Zurich: Verlag Scheidegger & Spiess, 2007, 2008 (2ª edição).