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ARQUITETURA E DESIGN




© AJS / Cortesia MAC-CCB


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REVISITAR RAÚL HESTNES FERREIRA DENTRO E FORA DO MUSEU

FREDERICO VICENTE


 

 


Em 2014, tendo como pretexto a 14ª Bienal de Arquitectura de Veneza, Rem Koolhaas revisitou (propondo) aqueles que seriam os temas atemporais da arquitectura. Numa exposição-manifesto com os olhos na refundação e futuro da disciplina, Fundamentals [1] volta às origens, listando quinze elementos na arquitectura, que não são meros conceitos, que não são meros padrões, mas sim o chão-comum a uma “universal” concepção de projecto: floor, ceiling, roof, door, wall, stair, toilet, window, facade, balcony, corridor, fireplace, ramp, escalator, elevator.

E muito embora Fundamentals não seja o foco deste texto e o recurso à referência até se mostre superficial, o pensamento de Koolhaas tem toda a pertinência para o que adiante falaremos, já que a actual exposição dedicada a Raúl Hestnes Ferreira (1931-2018) patente no MAC-CCB ocupa o espaço de um desses “fundamentos”: o corredor. O arquivo do arquitecto Hestnes Ferreira instalou-se no percurso de ligação acessível entre o piso 0 e piso -1 do museu, ou seja, na galeria de passagem para a rampa.

Comissariada por Alexandra Saraiva, Patrícia Bento d’Almeida e Paulo Tormenta Pinto, Hestnes Ferreira: Forma, Matéria, desenvolve-se linearmente ao longo de treze projetos, sublinhando três proposições bem presentes no pensamento do arquiteto. Três conceitos que bem poderiam estar listados entre os quinze que compõem o glossário de Rem Koolhaas, mas para o caso aglutinam sessenta anos de prática profissional, intemporal, do arquiteto que privou com Louis Kahn (1901-1974).

Não é inocente a referência ao nome do arquitecto americano nascido na Estónia. As formas platónicas puras e as suas interseções de volumes, a escala e monumentalidade dos edifícios, a materialidade do tijolo além da pele da arquitetura, a estrutura oculta no desenho das fachadas, ou o gesto da luz pelos espaços, são recursos “estilísticos” recorrentes, não apenas na arquitectura de Hestnes Ferreira, como no pensamento de Kahn. É difícil não fazer paralelismos entre a Casa da Juventude de Beja (1975-1985), a Agência da Caixa Geral de Depósitos de Avis (1991), a Faculdade de Farmácia (1993), ou a Biblioteca Municipal da Moita (1997) e o legado de Kahn em betão aparente e tijolo maciço à vista.

De volta à exposição, Hestnes Ferreira: Forma, Matéria, Luz divide-se, portanto, em três palavras chave, a que se soma um prólogo. Primeiro o Percurso, onde se destaca o encontro com a obra de Alvar Aalto entre 1957 e 1958 numa viagem pela Escandinávia. Desse encontro seminal nasceram projetos como a Casa na Praia da Luz (1960) ou a Casa de Albarraque (1961) projetada para o seu pai, José Gomes Ferreira. Ambas as arquiteturas denotam a influência de Aalto - muito próxima do vocabulário de Álvaro Siza Vieira nas Quatro casas em Matosinhos (1956/1957) ou na Casa de Chá da Boa Nova (1958-1963). Hestnes Ferreira viaja mais tarde, em 1962, para os Estados Unidos, onde estuda e colabora com Louis Kahn durante três anos. Retornou a Portugal em 1966, trazendo consigo os ensinamentos de Kahn implícitos nas duas casas geminadas em Queijas e nos diversos projetos que a partir daí se sucedem. Desenvolve uma prática profissional prolífica até 2016, data do projeto mais recente para a Biblioteca de Marvila.

Recuperando o tema “corredor”, secundarizado pelo Modernismo como espaço utilitário, este ganha na obra de Hestnes Ferreira, o que Koolhaas promove como “ativação crítica”: é um espaço além da circulação. E se na exposição toma a forma de janelas de gesso cartonado que “panoramam” maquetas, máquinas fotográficas, desenhos de claro escuro e outros esquissos de arquitetura [2] (agrupados em Forma, Matéria, Luz), nas obras do arquitecto, fora de portas, experienciamos os espaços entrecruzados, as galerias repletas de luz zenital, ou a dança das rampas.

E podemos dizer que a exposição não se esgota no corredor, antes abre o apetite para uma dualidade: o acervo documental em depósito na Fundação Marques da Silva [3] e o arquivo vivo que é a obra construída do arquitecto - onde, também o corredor é explorado não ao limite do seu carácter útil, mas para lá da imaginação e da socialização. Como tal, destaca-se o programa paralelo que acompanha a retrospectiva. Até março de 2025 podemos revisitar (gratuitamente) a Biblioteca de Marvila (sábado, 11 janeiro de 2025 às 15:00), o Campus ISCTE (sábado, 22 fevereiro de 2025 às 15:00) ou a Casa de Albarraque (sábado, 15 março de 2025 às 15:00). Aos intrépidos e curiosos pela arquitetura, sugere-se ainda uma visita ao município da Moita, onde o arquitecto projectou a Biblioteca e o Tribunal, à Sede da Caixa Geral de Depósitos em Avis, bem como a Beja, onde tem vários projectos construídos.

 

 

 

Frederico Vicente
Arquitecto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (no Convento da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" de Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" de Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador com a arquitecta Ana Paisano da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. A atividade profissional orbita sobretudo em torno das ramificações da arquitetura.

 

 

 

:::

 

Notas

[1] A 14ª Exposição Internacional de Arquitetura foi comissariada por Rem Koolhaas, arquiteto holandês do gabinete OMA sob o tema Fundamentals (fundamentos). Três exposições compunham o certame: Elements of Architecture (a exposição central); Monditalia e Absorbing Modernity: 1914-2014.
[2] Sente-se a ausência dos assentos, para que pudéssemos abrandar e demorar nos vídeos documentários projetados sobranceiros ao museu que lá em baixo começa. Um dos três vídeos presentes na exposição é o documentário Norte/Sul produzido pela associação cultural JackBackPack.
Magazine de Arquitetura e Decoração, apresentado por Manuel Graça Dias, não integra a exposição, mas é uma memória visual pertinente disponível no arquivo online da RTP.
[3] Ligação para o acervo documental de Raul Hestnes Ferreira na Fundação Marques da Silva.