|
12ª BIENAL DE ARQUITECTURA DE VENEZA — “PEOPLE MEET IN ARCHITECTURE”
VERA SACCHETTI
Veneza | Palazzo delle Esposizione della Biennale, Giardini, Arsenale e outros locais | 29 Agosto - 21 Novembro 2010
Ao entrar na Corderia dell’Arsenale para a primeira sala da 12ª Bienal de Arquitectura de Veneza, a primeira reacção poderá ser de espanto. Afinal, onde está a arquitectura? A gigantesca sala do século XVI, com um pé direito altíssimo, um tecto que se adivinha de madeira apesar da obscuridade geral, e os tons mudos das paredes de tijolo, serve de cenário a uma intervenção oval, alienígena naquele ambiente. Uma gigantesca rocha de granito impõe-se ao observador, e do seu interior escavado projectam-se, em ângulos oblíquos, planos rectilíneos de uma madeira de cedro, aromática e misteriosa. Dentro da estrutura de oito toneladas o aroma do cedro é mais forte, e há espaço para uma pessoa.
A intervenção, dos arquitectos chilenos Smiljan Radic e Marcela Correa, intitula-se “The boy hidden in a Fish” e foi desenvolvida depois do terramoto no Chile em Fevereiro passado. Apresenta um lugar seguro, um refúgio, mas também um espaço ínfimo, obrigando o espectador a avaliar e a confrontar o mesmo. É, por isso, uma perfeita introdução a esta Bienal. A edição deste ano, intitulada “People meet in Architecture”, é dirigida pela arquitecta Kazuyo Sejima, depois de uma série de edições dirigidas por historiadores e críticos. É a primeira vez que uma mulher toma as rédeas da Bienal, e Sejima, metade do duo japonês SANAA vencedor do prémio Pritzker 2010, não é uma mulher qualquer.
Uma mão leve
O repto lançado por Sejima é tão críptico como óbvio, carregando em si múltiplos níveis de interpretação. É claro que as pessoas se encontram na arquitectura; mas é a reflexão sobre os vários tipos de encontro que Sejima quer suscitar. É a consciência do espaço, a consciência dos outros no espaço, e consequentemente a nossa própria consciência no espaço que são despertados por esta Bienal. E nada disso é aparente, porque Sejima não recria espaços. Como ela própria refere, “uma exposição de arquitectura é um conceito desafiante visto que os edifícios em si não podem ser expostos — ao invés, maquetes, desenhos e outros objectos assumem o lugar dos edifícios.” Face a esta problemática, Sejima parte para uma outra interpretação deste desafio, utilizando os espaços expositivos como meio para a exploração do pensamento arquitectónico. Assim, a cada participante é atribuída uma fracção desse espaço, bem como a responsabilidade curatorial sobre o mesmo.
Esta é uma mudança radical quando comparada com versões anteriores da Bienal, que se assemelhavam mais a feiras do que a galerias de arte contemporânea — com um claro ênfase na quantidade de arquitectura, o que, não se traduzindo necessariamente num decréscimo de qualidade, não deixa de reflectir uma sobre-democratização de conteúdos que contraria a predisposição para a reflexão. Sejima quebra essa tradição com a sua mão leve. Atribuindo cada uma das salas do Arsenale e do Palazzo delle Esposizioni a um participante, a exposição “People meet in Architecture” consegue criar uma cadência ponderada que se manifesta numa série de atmosferas extremamente bem conseguidas. Ao recusar gestos grandiosos de arquitectos-estrela, Sejima aposta num relativo anonimato que deixa transparecer os conceitos, preterindo as personalidades.
Dramatização, imaterialidade e utopia
Há aqui espaço para a deriva, a experimentação, as práticas colaborativas, e é no Arsenale que a dramatização é mais eficaz. A maioria das intervenções dá lugar ao sonho e à imaginação. Depois do refúgio proposto por Smiljan Radic e Marcela Correa — segundo Sejima, “protótipo de um futuro espaço social idealista” — há uma sala escura, onde uma voz suave fala através de altifalantes ao nosso redor. À direita, um enorme ecrã projecta, em 3-D (o que obriga a recorrer à ajuda tecnológica dos óculos distribuídos à entrada), o filme de Wim Wenders “If buildings could talk... ”, rodado no Rolex Learning Center em Lausanne, o mais recente edifício dos SANAA. Usando travellings que replicam a continuidade e fluidez do edifício, Wenders circunda os utilizadores do espaço que são envolvidos pela “voz” do edifício, que não se cansa de explicar como gosta de ler livros, receber a luz do sol ou ser o guardião de conhecimento. Tudo isto soa tão banal como é na realidade, replicando as técnicas de um filme promocional, e fica a dúvida sobre quem beneficia mais desta exposição gratuita — os SANAA, Wenders ou mesmo a Rolex. O filme, no entanto, age sobre premissas interessantes, falhando na concretização.
Mais à frente, o arquitecto Tetsuo Kondo colabora com os engenheiros Transsolar no fabuloso “Cloudscapes”. A temperatura e humidade na sala são controladas por um ambiente fechado, permitindo a criação de uma nuvem artificial a cerca de três metros do solo. Uma rampa de desenho simples e contido permite subir até aos cinco metros de altura do espaço, passando pela nuvem e experimentando a sua humidade sufocante — mais acima, o calor sobe até aos 37º mas a humidade desvanece-se, até descermos de novo até ao chão. Aqui, o espaço é físico e metafórico, e a sua imaterialidade transcende a representação visual, actuando no visitante a todos os níveis.
A partir daqui, a nossa percepção é desafiada em ambientes radicalmente diferentes nas suas propostas — os Studio Mumbai Architects transplantam um atelier de Bombaim para uma sala do Arsenale, completo com ventoinhas no tecto e tudo; Hans Ulrich Obrist enche uma sala de ecrãs e cadeiras (a nextmaruni, que tal como a disposição do espaço, foi desenhada pelos SANAA), onde se repetem permanentemente as entrevistas que fez a todos os participantes nesta edição da Bienal. A maioria das entrevistas foram conduzidas no Arsenale, e dentro de cada ecrã repete-se a textura das paredes, criando uma espécie de mille plateaux, um Arsenale dentro do Arsenale. Visitar esta instalação traduz-se sempre numa aprendizagem intensa, mas as abordagens são inúmeras — sejam horas sentadas à frente de cada ecrã ou trinta segundos saltando de entrevista em entrevista em ordem aleatória.
Olafur Eliasson apresenta o hipnótico “Your Split Second House” numa sala completamente escura, onde uma série de mangueiras suspensas do tecto giram ao mesmo tempo que gotejam água. As formas incríveis que daí surgem são congeladas no tempo por luzes estroboscópicas, e enquanto o nosso cérebro se tenta habituar às que se desenham à nossa frente já novas estão a acontecer. O ritmo é alucinante e Eliasson cria espaços belíssimos, utópicos e fantasmagóricos, e mais uma vez os sentidos do visitante são chamados a intervir — o chão está ensopado, escorregadio, o ar húmido.
A proposta de Junya Ishigami + Associates tenta tornar real alguma dessa imaterialidade. “Architecture as Air: Study for Château la Coste” é, também ela, uma proposta utópica onde uma estrutura de 14 x 4 x 4 metros se eleva do chão tal como um desenho de arquitectura, desenhada no ar por milhares de fios de arame branco suspensos por outros tantos fios de nylon. Tão utópica, na realidade, que dois acidentes — um deles com um gato vadio — destruíram a estrutura, impossibilitando que estivesse pronta a tempo da inauguração. Entrando na sala deparamo-nos com um grupo de arquitectos que, fio a fio, tenta reconstruir a instalação numa clara e bizantina demonstração de paciência.
Há também estudos tipológicos, como o “Decay of a Dome” do Amateur Architecture Studio — em que uma cúpula com quatro metros de diâmetro asfixia uma sala — que são simultaneamente estudos etnográficos: durante os quatro meses da exposição, esta tipologia ocidental construída com métodos orientais desfazer-se-á gradualmente, tendo um tempo de vida tão limitado como os andaimes de construção da China, construídos com a mesma técnica. Por outro lado, instalações como o “Forty Part Motet” de Janet Cardiff desafiam a representação convencional, construindo outros tipos de espaço. Quarenta colunas dispostas numa oval replicam, cada uma, a voz de um dos quarenta membros de um grupo coral, que interpreta a peça “Spem in alium nunquam habui”, composta em 1573 por Thomas Tallis. Os visitantes inserem-se no centro da peça, e ao ouvi-la criam-se paredes e ondas, espaços infinitos e invisíveis, maiores ou menores segundo a intensidade do canto, que nos rodeia de todos os lados. O som também é arquitectura, afinal.
Preservação e outros desafios
A dez minutos a pé do Arsenale, a exposição continua dentro do Giardini, no Palazzo delle Esposizioni, numa série de salas anónimas, brancas, que variam entre a hiper-dimensão e o recanto escuro. Aqui, Rem Koolhaas (Leão de Ouro desta Bienal) e o OMA têm o protagonismo mais vincado com “Preservation”, uma exposição dentro da exposição que é tanto uma auto-promoção como um diálogo cáustico sobre a preservação na arquitectura, intitulado de “CRONOCAOS”. Explorando a sua “obsessão com o passado”, documentam-se aqui 26 projectos do OMA antes de qualquer intervenção, ao mesmo tempo que Koolhaas expõe toda a sua teoria sobre a preservação — “invenção ocidental” — que a cada ano ganha “escala e importância”. Infelizmente, o bombardeamento de informação é tal, e a sua apresentação gráfica tão pobre, que é difícil reter alguma coisa deste monólogo. Koolhaas soa distante, hiper-académico, conhecedor absoluto; e, por isso mesmo, repele em vez de aproximar.
Mais etéreas, voltando à matéria dos sonhos, estão a “Blueprint” dos Doh ho Suh and Suh Architects, e a “Detached” dos Pezo von Elrichhausen Architects. A primeira, uma estrutura em tecido azul, é uma representação tridimensional à escala 1:1 da fachada da casa dos arquitectos em Nova Iorque, que flutua no ar como uma nuvem, e é projectada no chão da sala. “Detached”, por sua vez, apresenta mais uma participação chilena que reflecte sobre a vida dos edifícios quando descontextualizados do seu ambiente. Pequenas maquetes em betão vivem em frente a reproduções fotográficas do seu contexto; ao perder a sua especificidade ficam perdidos no espaço, tornando-se volumes estranhos e melancólicos.
E, ocupando uma sala escura, ampla, de cota baixa, os arquitectos Aires Mateus e Associados apresentam quatro volumes brancos escultóricos, polígonos brutalistas de ângulos suaves, esculpidos a intervalos precisos com adições ou subtracções à forma-mãe, numa intervenção apelidada de “Voids”. É uma reflexão sobre o vazio dentro do vazio. Primeiro, o contraste imediato das peças brancas com o ambiente negro; depois, à medida que os olhos se habituam à baixa densidade da luz, a instalação ganha outro encanto. Batalha entre o espaço construído e escavado, entre o positivo e o negativo, esta instalação é simples mas subtil, reflectindo em si as várias dimensões do desafio curatorial de Kazuyo Sejima.
Mas esta não é a primeira vez que sentimos a presença de Francisco e Manuel Aires Mateus. Já no Arsenale os pudemos ouvir a falar com Hans Ulrich Obrist, numa de entre as suas muitas entrevistas. No entanto, a dupla de arquitectos portuguesa não sai bem representada desta conversa. Obrist quer saber o passado dos dois, quem os inspira, qual é o seu manifesto; em resposta, os arquitectos não conseguem elaborar sobre o que os move, limitando-se a formular generalizações sobre o que os “outros” acham do seu trabalho, e declarando no final que “mais do que um certo manifesto, o tempo dirá o que estamos a fazer.” Incapazes de verbalizar as complexidades do trabalho que apresentam nesta Bienal, os Aires Mateus retiram corpo à sua presença.
Quatro casas, quatro filmes
Francisco e Manuel Aires Mateus estão também representados no Pavilhão Português desta Bienal de Arquitectura, juntamente com Álvaro Siza, João Luís Carrilho da Graça e Ricardo Bak Gordon. É nestes pesos-pesados da arquitectura nacional que a presença portuguesa encontra uma âncora, daí partindo para uma exploração da ideia da casa — como “momento redentor para a arquitectura”, segundo o statement curatorial da equipa liderada por Delfim Sardo, com Julia Albani, José Mateus e Rita Palma. Tanto a presença de José Mateus, director da Trienal de Arquitectura de Lisboa, e de Delfim Sardo, seu director artístico, são importantes e calculadas — Portugal aproveita a presença na Bienal para gerar sensibilização para a Trienal, a inaugurar já a 14 de Outubro. Também não é fruto do acaso que o tema da Trienal, “Falemos de Casas”, se enquadre tão bem com a reflexão sobre o habitar que o nosso país propõe em Veneza.
A mostra, intitulada “No Place Like...”, quer reflectir sobre o habitar e os seus sentidos, tanto o prático — a casa — como o metafórico — “os sentidos de habitar o mundo”. Esse habitar é, na opinião dos curadores, o motor fundamental do pensamento arquitectónico do século XX. A casa é um refúgio, um lugar de pertença, manifestação primordial do homem no mundo. Mas como a mostrar? Para a equipa curatorial, a resposta foi simples — a imagem em movimento, a narrativa no tempo, um filme.
Assim, da obra de cada arquitecto foi eleita uma casa, e a cada casa foi atribuído um artista ou um cineasta que reflectisse sobre ela. Filipa César trabalhou o Bairro da Bouça, de Siza. Julião Sarmento trabalhou a Casa Candeia, de Carrilho da Graça. João Onofre trabalhou a casa em Sta. Isabel, de Bak Gordon. E João Salaviza trabalhou a Casa na Comporta, dos Aires Mateus.
Longe da acção
Expostos num palazzo da Universidade Ca’Foscari, os resultados são díspares. Ao longo de dois andares de salas de dimensões variáveis, os espaços comuns dão acesso a informação objectiva sobre cada projecto, maquetes e fotografias. Nas salas laterais, os vídeos são expostos em loop.
Filipa César trabalha sobre a história política da Bouça, em “Porto, 1975”, apresentando um único plano sequência de cadência precisa, que deambula pelo bairro seguindo o trajecto preferido por Siza, começando e terminando no mesmo ponto de acesso — hoje, o metro, na altura do início da construção da Bouça, o comboio. Navegando por entre os blocos de habitação, César entra e sai das casas, acabando por se fixar num interior e explorando a polémica por detrás da interrupção da construção da Bouça nos anos setenta, ao som da voz off de Alexandre Alves Costa.
Julião Sarmento, em “Cromelech”, filma a casa de Carrilho da Graça segundo o dia a dia de três jovens que ocupam o espaço. Os planos enquadram a casa e as raparigas, de vestidos ondulantes, em composições clássicas que são bem conseguidas, mas cedo se perdem em observações desnecessárias — uma jovem nadando na piscina, outra saindo do duche, um queixo, um joelho, uma curva do pescoço. À medida que Sarmento se aproxima mais das protagonistas do seu filme, a casa vai-se perdendo na paisagem, e os planos tornam-se desconfortáveis e voyeuristas.
“Untitled/Sem Título”, de João Onofre, centra-se numa aparente tarefa impossível — enfiar um veleiro de 9 metros na piscina da casa de Bak Gordon, que, entalada num esconso do bairro de Sta. Isabel, está rodeada de prédios altos. Onofre filma o barco obsessivamente, criando suspense no espectador. No entanto, maravilhado com a grua que transporta o barco pelos ares, Onofre deixa a casa — e mesmo o pátio, em torno do qual esta habitação revolve — para segundo plano, surgindo apenas no minuto final do seu opus silencioso.
João Salaviza, o único cineasta no grupo, trabalha a(s) casa(s) dos Aires Mateus enquadrando-as numa narrativa maior. Em “Casa na Comporta”, a casa é o ponto de partida e de chegada, numa história que cruza duas gerações de habitantes da Comporta com a busca de um elemento ausente da história, até ao final. Salaviza cria o produto mais interessante desta presença portuguesa na Bienal, ao replicar no argumento do seu filme, subtilmente, a dicotomia desta obra de Francisco e Manuel Aires Mateus, que é poética, vernacular, mas contemporânea, materialização subtil de um espaço negativo.
A abordagem curatorial portuguesa é bem conseguida e, em certos rasgos, encantatória. A resposta ao desafio curatorial de Sejima espelha as preocupações maiores da Bienal — a recusa da arquitectura espectáculo, o retorno à nossa relação primordial com o espaço —, para além de se interligar de forma inteligente com as premissas da Trienal de Lisboa. Mas, longe do centro da acção da Bienal — o Arsenale e o Giardini, do lado este da cidade —, o Pavilhão Português não tem, infelizmente, a projecção que merece.
Esta 12ª edição da Bienal de Arquitectura completa-se com participações de 52 outros países e, no seu conjunto, recusa-se a ser palco de uma festa para arquitectos. Ao encorajar projectos colaborativos, equipas multidisciplinares, intervenções desafogadas e uma reavaliação da nossa relação com o espaço, a Bienal exige ser completada pelos visitantes, que ao habitarem o espaço validá-lo-ão, num realizar do mandato desta cruzada — que as pessoas se encontrem na arquitectura.
::::
Vera Sacchetti
Frequenta o mestrado em Design Criticism da School of Visual Arts em Nova Iorque, como bolseira Fulbright. Formada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, foi estudante Erasmus na Willem de Kooning Academie (Roterdão), e frequentou a Pós-Graduação em Culturas e Discursos Emergentes: da Crítica às Manifestações Artísticas, uma parceria Fundação Calouste Gulbenkian/Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou como designer na P-06 atelier em Lisboa, e escreve sobre arquitectura e design para os dois lados do Atlântico.