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SHAPINGSHAPE NA BIENAL DA MAIA
CONSTANÇA BABO
A arquitetura foi uma disciplina desde cedo separada das belas-artes devido à sua intrínseca função prática. Essa separação também exercida entre outras áreas, situação que, presentemente, tem sido ultrapassada perante uma crescente noção de pluralidade, de relações interdisciplinares e uma compreensão da contemporaneidade como determinada por fluxos e cruzamentos entre as mais diversas esferas e dinâmicas.
Como tal, a arquitetura é, cada vez mais, analisada em relação à sua estética formal e artística. E, nessa sua aproximação à arte, abre-se um território que revela determinadas problemáticas tais como os limites das práticas e os seus vários possíveis diálogos de acordo com as linguagens que cada uma comporta.
Tendo em conta esta nova realidade, na Bienal da Maia do presente ano 2017, foi desenvolvida uma secção de arquitetura assinada por alguém que incorpora a relação entre as duas disciplinas, a arquiteta e curadora Andreia Garcia.
Com o intuito de testar os limites da arquitetura enquanto prática artística, a curadora procurou um ponto de partida desafiante, escolhendo para tal uma estrutura unicamente funcional, a dos silos da Maia. Esta, atualmente propriedade do grupo Lionesa, foi concebida exclusivamente para armazenamento de óleos e, mais recentemente, de cereais. Icónica na cidade, e já integrada na paisagem pela sua grande escala e visibilidade, é absolutamente familiar à população e, como tal, propícia a causar um grande impacto quando alterada. Contudo, mesmo com o objetivo de construir algo que se destacasse, Andreia Garcia procurou que a obra não entrasse em conflito com a natureza dos silos e com a sua envolvente. Isto porque, aqui e ao longo de todo o projeto, a curadora privilegiou uma consideração pelo contexto, ou seja, o espaço e o tempo.
O projeto foi, pois, transformador da estrutura, atribuindo-lhe um caráter artístico mas sem a descaracterizar, preservando, assim, o seu sentido de pertença na cidade. Por sinal, em certa medida verifica-se que as intervenções realizadas se tornam parte do edifício e, consequentemente, do espólio do município.
Fahr 021.3 e Dalila Gonçalves. Fotografia: Claudio Reis.
Também no âmbito de pretender respeitar as duas disciplinas exploradas e aprofundar a relação entre ambas, a proposta foi para arquitetos e artistas trabalharem em conjunto. Daí resultou, na fachada poente, uma obra do atelier Diogo Aguiar Studio e do artista Pedro Tudela, e, na fachada nascente, uma outra dos Fahr 021.3 e de Dalila Gonçalves. Nos dois casos os diálogos entre autores ecoaram com força e equivalente harmonia, tanto em relação ao edifício como ao seu redor. Em especial, no primeiro caso, o impacto visual é inesperado, sóbrio e marcante, provocando novas experiências no observador, que se multiplicam consoante as alterações das luzes e reflexos da obra ao longo dos dias.
in-cisões-forma by Diogo Aguiar Studio + Pedro Tudela. Fotografia: Claudio Reis.
Paralelamente, sendo o Fórum da Maia o espaço central da Bienal, foi esse o palco de uma segunda ação, e primeira a inaugurar, assinada por Manfred Eccli e Pedro Cavaco Leitão, os Moradavaga. Conceituados por trabalharem a interseção entre a arquitetura, a arte e o design, a dupla desenvolveu uma estrutura com caráter e voz, complexa e distinta. Manifestando-se através de uma ação pictórica neste espaço monocromático, com tom de vermelho forte, o objeto proporciona uma experiência plena, tanto visual quanto física, perceptiva e estética. Para tal, o espetador é convidado a um envolvimento e interação com a obra e com o contexto espacial em que esta se encontra inserida. Os espelhos estrategicamente dispostos proporcionam jogos imagéticos capazes de agradar a um vasto e diversificado público, algo que se adequa à sua localização no trânsito urbano, em frente à estação de metro. A obra é, curiosamente, tão artística quanto arquitetónica, assim representando com rigor as duas disciplinas exploradas.
Ao mesmo tempo, no que diz respeito ao alargamento a vários públicos, destaca-se uma outra superfície, caracterizada pela mobilidade, circulação e movimento, o aeroporto Francisco Sá Carneiro. Assim, e de acordo com uma contínua necessidade de desdobramento para novos territórios, Andreia Garcia convidou Gabriela Vaz-Pinheiro para intervir neste não-lugar, tão vivo e ativo. A resposta que se apresenta desdobra-se num contínuo de caixas que parecem ter sido desfragmentadas, separadas umas das outras, e que se estendem no exterior de uma das extremidades do edifício. Com luzes de várias cores, intensificadas e prolongadas através de reflexos nas superfícies de aço inox e vidros, a obra requer uma observação atenta e uma abertura receptiva a um certo encantamento visual. A multiplicação da cor e da forma, condicionada pelo espaço, é também representativa de um entendimento da artista sobre o que o atual tempo, da sociedade do espetáculo, que é composto e dominado por uma acumulação e sobreposição de imagens, formas, informações e comunicações tão excessivas quanto voláteis. É de uma forma também efémera embora prolongada que a obra perdurará em exposição durante dois anos.
Assim e sendo ilimitada a duração de permanência das três outras instalações, esta programação contorna o factor tempo, condicionante da restante Bienal e de grande parte dos projetos de arte contemporânea. O trabalho realizado molda formas que se estendem tanto para o futuro como, a nível territorial, pelo município da Maia, num notável exemplo de ação artística em espaço público.
Por fim, é importante notar que, ao longo de todo o processo, das suas três fases e correspondentes formas resultantes, Andreia Garcia manteve uma constante e predominante preocupação em compreender o que é a cidade da Maia. Paralelamente, e numa maior escala aqui, mas também ao longo do seu demais trabalho como arquiteta e curadora, reflete sobre o que são as cidades de hoje. Como esclarece, as respostas não são de todo evidentes, isto porque, hoje, "a identidade é um aglomerado de referências".
Nessa mesma medida e de acordo com um entendimento global das várias esferas e áreas que compõem a atualidade, devemos observar estas shapingshape nos Silos e as unlimitedshape no Fórum e no aeroporto, não mediante uma inteligibilidade fechada e unívoca, mas antes, na dimensão ampla e plural das suas múltiplas possibilidades. Estas tão diversas e heterogéneas como a arquitetura e a arte mais contemporâneas.
Constança Babo