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TRAMA E EMOÇÃO – TRÊS DISCURSOS
MANUEL GRAÇA DIAS
Manuel Vicente é um arquitecto sem "caução". Não a pede a ninguém, nem historicamente nem contemporaneamente.
Para si, cada arquitecto deveria aprender do real verdadeiro (o qual englobaria tanto a história como a contemporaneidade), a apreensão que o levasse a imaginar sozinho. O que não tem nada de solitário: sozinho, como único. O método é sozinho, mas nasce agarrado à absoluta vontade de depois o compartir, discutir, comparar, ler, ver, curiosamente informar, informando.
Desenhos ajustados mas evitando o modismo. Trilhando caminhos inusuais; não pisando clichés, mas amarrando o rabo de um irrequieto ou lúbrico macaco à proposição de possibilidades confortáveis de vida, a partir de um encontro com soluções diferentes ou aparentemente banais; soluções que deixam de o ser (banais), por se re-situarem numa nova organização que frusta o que julgamos saber quando olhamos sem curiosidade o banal. O desejo emotivo de forma, de alegria ou de enfeite (tributo de generosidade, drama atrevido oferecido ao olhar), é domado à vontade programática que é amplamente sentida, questionada, criticada, debatida; até se tornar ideologia.
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"Manuel Vicente, Trama e Emoção" corresponde a um conjunto de acções a propósito da obra de Manuel Vicente, conjunto comissariado por João Afonso, englobando várias mostras, publicações, colóquios, mesas redondas, debates; a Exposição, o lado mais visível, foi inaugurada em Lisboa (Museu do Oriente, Junho a Agosto de 2011), de onde seguiu para Coimbra (Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, Setembro a Outubro, 2011), estando ainda prevista a sua passagem pelo Porto (Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Novembro a Dezembro, 2011) e Guimarães (Escola de Arquitectura da Universidade do Minho, Janeiro a Fevereiro, 2012).
Saliente-se o inteligente percurso itinerante, rentabilizando um esforço inicial, sendo que, ao contrário de outros eventos mais circunstanciais, aqui, a programação surge na origem do projecto mesmo e não como resultado de coincidências posteriores. Inteligente, ainda, a aposta no trilho académico, como modo de tornar a exposição verdadeiramente didáctica e eficaz. (Se o Museu do Oriente não está ainda arreigado nos hábitos lisboetas, e se o calendário inaugural se poderia prever desastroso, não permitindo uma afluência mais numerosa, saúde-se, contudo, o segundo momento da Exposição, durante os meses mais académicos do primeiro semestre).
A Exposição resulta de um trabalho (apoiado pela Direcção-Geral das Artes) de sistemática identificação e classificação de grande parte do espólio dos ateliers de Macau e de Lisboa de Manuel Vicente (MV), que o mesmo depositou à guarda da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, já há alguns anos.
São armários metálicos cheios de originais ou reprolares referentes a inteiros projectos, suas variadas fases e hesitações; são caixas e pastas e cópias dobradas e costas de A4 desenhadas, e esquissos suportando colagens, fotocópias gastas riscadas a tinta branca, o pincel da correctora a par da tesoura, a letra expressiva escrevendo em volta.
Alguns destes papéis verdadeiros estão presentes na Exposição; não muitos, dado o embaraço da escolha; eles que precisariam de figurar em excesso para se começar a impor!
A Exposição (a sua crítica), aliás, deveria passar por aqui. A obra de MV é por tão demais difícil, pessoal, diferente – do coleccionismo mainstream, das suas higiénicas preferências –, é tudo tão fora, tão alheio ao que os ajuizados pensam saber, tão desalinhado dos enjoados despachos distanciadores do pouco generoso minimalismo de serviço, tão afastado do "que está a dar", que, quanto a mim, a atenção à sua obra só se poderá atingir através do excesso que sublinhe e imponha a diferença.
Contra a violência do "nada", que uma suposta elegância muda imita e compõe hoje no discurso (da elite) dominante, ter-se-á que contrapor, violentamente, sem concessões, um coerente e cheio discurso outro que prove, à exaustão, muitas outras possibilidades da Arquitectura, que insista, e seja redundante e redondo e reflexivo.
Nesse discurso oposto deve constar o discurso de Manuel Vicente: o discurso falado, o discurso desenhado, o discurso construído; tudo partes de um mesmo discurso: o ideológico.
Vive-se hoje um momento de abstracção ideológica, escondida e disfarçada dentro dos contornos da abstracção geométrica.
O que é abstracção ideológica?
São opções, tão profundamente políticas como quaisquer outras, montadas por dentro da diluição de um dizer que fosse inteligível e concreto (porque concretamente apoiado na realidade), e tivesse como verdadeiro objectivo "mudar o mundo"; discurso confundido muitas deliberadas vezes com "escolhas artísticas" e contrapondo apenas o vazio aos gestos humanos que, quer queiram ou não, os registos fotográficos hão-de, inevitavelmente, habitar, sujar e ocupar os espaços dados, sem lifestyle ou glamour.
Creio pois que o enorme passo que João Afonso deu, arrumando e classificando grande parte do legado, expondo depois um pequeno bocado, sem especial obsessão cronológica, misturando materiais (esquissos, folhas de projectos, colagens, fotos, cópias e originais, do autor ou de antigos colaboradores) e saltando – propositadamente? (privilégios de comissário) –, alguns trabalhos também marcantes, foi, ao expor depois tudo debaixo de "pratos" em plástico vermelho (que expeditamente nos remetem para o animado e impuro ambiente dos mercados no sul da China), um óptimo contributo para o início da compreensão deste arquitecto cuja obra ainda é muito pouco conhecida ou estudada em Portugal.
A Exposição contém, então, ainda que eu a ache pouco excessiva (e, por aí, pouco ilustradora dos excessos de MV) factores diferentes para agradar a diferentes públicos.
Os "Arquitectos" olharão a amostragem de desenhos e possibilidades de desenho, o modo de encurvar as curvas que o jeito de MV faz entrelaçar; os sinais que os cobrem depois de cor ao longo dos diferentes programas ou fachadas; as imagens fotografadas planas presentes. Os "Arquitectos" (aqueles que não se acomodam especialmente ao saber feito ou a um qualquer fetiche, de culto de personalidade ou de insegurança compreensiva) lerão cada alegria que as folhas de papel determinam como unidades únicas do exercício empenhado de projectar; cada tentativa ou erro, como a ilustração própria da generosa vontade de experimentar outra e outra hipótese, outra e outra inconformada e insatisfeita preocupação.
Já os "Artistas" procurarão nos filmes de José Maçãs de Carvalho [1] o estilismo rigoroso e violento que caucionará o olhar contemporâneo sobre a estranheza percebida. Sairão parcialmente acontentados pelo suplemento "reconhecível" de vazio (no verdadeiro sentido da palavra: o filme sobre o Fai Chi Kei consiste num longo plano fixo de doze minutos (?) sobre os terrenos tornados vazios depois da violenta demolição perpetrada, ouvindo em off MV, desenhando com a voz a emocionada descrição do espaço antigo); sairão parcialmente descansados do "excesso".
Finalmente, os "Estudantes" demorar-se-ão, principalmente, nas maquetas, conseguindo ler o espaço em algumas, o espaço para lá da forma. Os estudantes irão aderir ao corpo de maquetas que enche a sala, porque elas falam a sua linguagem. São feitas por outros estudantes a quem foi pedido a compreensão dos espaços que representavam [2]. Assim, as maquetas estão próximas entre si, não só pelo branco do cartão-espuma e pela escala, mas sobretudo pelo amor que se lhes desprende: foram afectivamente compostas, percebidas, montadas; não são maquetas-objectos-artísticos distantes para encherem de oco kitsch qualquer galeria branca. São maquetas para se imaginarem com pessoas dentro.
O catálogo/livro [3], "a primeira publicação inteiramente dedicada à obra de Manuel Vicente", surge-nos mais complexo. Misturado, em termos de suportes (com uma capa que constitui, por si, um certo "erro de casting"), com a informação técnica por vezes pouco rigorosa (ainda que de sistematização difícil, em arquitecto tão pouco preocupado em se biografar), perdida a oportunidade de estancar alguns erros que se acumulam (quanto à hipótese de co-autorias e colaborações, datas, fases de conclusão, etc.) desde, pelo menos, Manuel Vicente: Caressing Trivia, de Eric Lye (2007).
A boa parte, porém, respeita aos óptimos (e originais) textos de enquadramento [4], à divulgação de projectos completamente desconhecidos, como os magníficos projectos nunca construídos: o CODA [5] de 1962, ou a Junta de Freguesia da Parede (1973-1974). Ou à divulgação de projectos menos conhecidos, como o avassalador processo preconizado/premiado para/pela Expo'98, e que consistia numa económica e originalíssima operação de recomposição arquitectónica a partir de navios fundeados ao largo do recinto, primeiramente encarados como unidades de suporte às várias necessidades da Exposição; depois, numa segunda fase, já eles cascos partidos virados, re-introduzindo readymades de espaço e descontexto na praia dos Olivais (se o pós-Expo não tivesse querido ser, apenas, mais um parque imobiliário sufocado de carros). Também algumas belas páginas, como as que reproduzem, a toda a mancha, colagens, desenhos, fotografias ou fotogramas dos filmes presentes na Exposição.
Este livro já é bastante mas é ainda pouco, para celebrar o único arquitecto verdadeiramente Pop que temos, o único pós-moderno que já o era, ao mesmo tempo que o pós-modernismo chegava.
No túnel do ciclo expositivo que abriu, João Afonso procura, porém, a possibilidade de um outro documento de enorme relevância: uma compilação dos principais escritos e entrevistas pensados por MV; compilação que consubstanciará, numa única publicação, o já extenso e provocatório conjunto de textos de carácter reflexivo com que este autor tem contribuído para algum derrube da chata normativa disciplinar.
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A maior parte dos arquitectos rouba dos arquitectos mais carismáticos, a forma. Por cansaço, preguiça, ignorância, embrutecimento ou sincera admiração, alguns julgam admirar a forma; mas a forma resultado, que não a forma modo.
A forma modo é o modo como se chegou à forma resultado. Talvez não o modo, mas o raciocínio: o conjunto sintético de quereres e caminhos resultantes das queixas, dos pedidos, dos desejos. E o problema sai encaminhado (a sua solução); e são esses caminhos – ao tornarem-se possíveis, no decorrer do trabalho –, que contornam a outra forma (a forma forma), justificando-a.
Ao ler e compreender, de Manuel Vicente, nestes vários discursos misturados que a Exposição nos trouxe, o modo próprio de acertar os vários caminhos, encontrar-se-á a verdadeira única coisa que deveríamos poder roubar a um muito bom arquitecto.
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Manuel Graça Dias
(Lisboa, 1953) Manuel Graça Dias, arquitecto (Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, 1977), iniciou a profissão em Macau, como colaborador do arquitecto Manuel Vicente (1978-1981). Vive e trabalha em Lisboa onde criou o atelier CONTEMPORÂNEA com Egas José Vieira (1990). Professor Auxiliar da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (doutorado em 2009) e Professor Convidado do Departamento de Arquitectura da Universidade Autónoma de Lisboa, é autor de numerosos textos de crítica e divulgação de arquitectura. Dirige o Jornal Arquitectos (2009/2012), órgão da Ordem dos Arquitectos (cuja direcção também assumiu em 2000/2004). Em 1999, MGD+EJV receberam o Prémio AICA/MC (Arquitectura) pelo conjunto da sua obra. [www.contemporanea.com.pt]
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NOTAS
[ ] "Learning from Macau #1" e "Fai Chi Kei" (1981-2011), a partir da ideia original de Jorge Figueira e José Maçãs de Carvalho.
[2] Em grande parte elaboradas por alunos do Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, no âmbito do laboratório ¬– "Manuel Vicente: 15 obras na Rota do Oriente" – coordenado (2009/2010) por Ana Vaz Milheiro.
[3] João Afonso (ed.), Manuel Vicente, Trama e Emoção / Plot and Emotion. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2011.
[4] João Afonso, Ana Vaz Milheiro, Jorge Figueira.
[5] CODA: Concurso para a Obtenção do Diploma de Arquitecto.