|
A PROPÓSITO DA CONFERÊNCIA “ARQUITECTURA [IN] ]OUT[ POLÍTICA”: UMA LEITURA DISCIPLINAR SOBRE A MEDIAÇÃO E A ESPECIFICIDADE
CARLOS M. GUIMARÃES
Tornar este artigo suficientemente apelativo para quem não assistiu aos dois dias de conferências da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2010, realizadas a 15 e 16 de Janeiro último, é o desafio que se coloca. Visto não ser este um texto puramente jornalístico, a linha de pensamento tentará revelar-se aberta e ziguezagueante como o próprio debate em questão. Tentar-se-á observar o conteúdo teórico dos vários debates, relacionando-os entre si e com a ambivalência temática proposta — [in] ]out[ — e centrar-se-á a atenção em duas questões concretas — MEDIAÇÃO e ESPECIFICIDADE — que decorreram das várias intervenções e de uma posterior análise e conversa informal via e-mail entre o autor e os quatro moderadores dos diferentes painéis de debate, os arquitectos André Tavares, Joaquim Moreno, Jorge Carvalho e Pedro Bandeira, aos quais agradeço a disponibilidade demonstrada.
[IN] ]OUT[
O tema das conferências, embora óbvio na sua abrangente intenção de debater os diferentes níveis relacionais entre a Arquitectura e a Política, requeria desde logo uma estruturação coerente, como forma de orientar os oradores — em primeiro lugar — e os espectadores/possíveis intervenientes — logo a seguir. Nessa tentativa de organização e hierarquização de determinados conceitos e prioridades, os comissários José Capela e Cláudia Taborda determinaram quatro genéricos sub-temas. O primeiro dia — aparentemente mais [in] — foi guiado pela noção de que a arquitectura é e pode ser uma ferramenta POLÍTICA ao veicular determinados valores como a democracia e a CIDADANIA e ao ser um instrumento de intervenção directa na sociedade e na vida urbana. O segundo dia — retroactivamente mais ]out[ — tentou colocar no centro os aspectos mais técnicos e operativos relacionados com a disciplina, focando diferentes DISPOSITIVOS e mecanismos de intervenção e servindo-se destes para fornecer possíveis pistas para uma qualquer hipótese de FUTURO disciplinar.
Olhar a arquitectura como algo relacionado com a esfera política parece algo inevitável, visto que o Homem é um animal político por convenção clássica e convicção democrática. De igual forma, a história e a etimologia parecem querer dar razão a esta estreita relação: o palco privilegiado da arquitectura, a cidade=polis é ao mesmo tempo o palco do acto cívico e da cidadania, acto determinadamente político e social.
Esta relação estava previamente definida no texto inaugural das conferências da seguinte maneira: "Arquitectura e política são per se argumento e processo, amplos e abertos." Este argumento teórico subjacente à realização das intervenções e debates evidencia os pontos de convergência entre Política e Arquitectura, imiscuindo um e outro como se de pares se tratassem. No entanto, a praxis de ambos é aparentemente, e no fundamental, distinta. A disciplina Arquitectura poderá ter um discurso (argumento) e um método (processo) semelhante ao fenómeno Política mas, na verdade, é apenas parte integrante dessa mesma alargada entidade. A Política possui um espectro mais amplo, ética e originalmente mais relevante que qualquer disciplina específica e concreta que possamos definir no nosso quotidiano. Dentro desta perspectiva a Arquitectura poder-se-á revelar uma entidade menor que a Política, subjugando-se às suas regras e leis e nunca ao contrário. De outra forma poder-se-ia dizer que a Arquitectura possui um vínculo disciplinar — que a caracteriza — que a Política dispensa pela sua amplitude ética e cívica. Daqui se entende a necessidade de colocar a arquitectura ou dentro [in] ou fora ]out[ da esfera política, percebendo as mais valias ora da aproximação, ora do afastamento entre ambas. Onde se deverá colocar a Arquitectura? E como e por que varia essa sua posição virtual?
MEDIAÇÃO
Numa perspectiva abrangente, será fácil entender que a arquitectura colide — seja positiva ou negativamente — com inúmeras determinações políticas. Determinações essas que vão adquirindo diferentes contornos consoante os casos e as necessidades. O poder e influência política manifestam-se por diversas vias: pela económica, pela representatividade da encomenda ou pela mera capacidade decisória. Esse foi um aspecto focado nos dois primeiros painéis de debate, não só na análise concreta da problemática como também, e indo um pouco mais além, na tentativa de perceber qual deverá ser o posicionamento táctico que a arquitectura deve adoptar quando confrontada com o poder e influência políticas.
Numa das primeiras intervenções, Jeffrey Inaba (arquitecto, director fundador do C-Lab da Universidade de Columbia e editor-chefe da Volume Magazine) reivindicou para o arquitecto um papel subversivo na forma como intervém na sociedade. Inaba acredita que o arquitecto pode influenciar grandemente os decisores políticos, colocando-se ele próprio numa posição de maior relevo mas que o obriga, neste caso, a assumir uma responsabilidade maior que a de um simples e mero técnico qualificado. Refere inclusivamente que os arquitectos deveriam promover uma espécie de contra-cultura, numa clara e permanente tentativa de inovação e liderança.
Esta posição, ainda que não de forma directa e com intenções porventura distintas, encontrou eco nas inúmeras questões levantadas posteriormente por Jorge Mario Jaurégui (arquitecto e urbanista argentino-brasileiro), José António Bandeirinha (arquitecto, professor na Universidade de Coimbra) e na declaração de intenções libertárias do arquitecto, urbanista e artista francês Yona Friedman.
Jaurégui, baseado na sua experiência de trabalho nas favelas do Rio de Janeiro, propõe uma reflexão sobre a necessidade da existência de uma intensificação da consciência social por parte dos órgãos de decisão, bem como da implicação temporal de cada uma dessas decisões no campo da arquitectura e do urbanismo. Um projecto urbano e/ou territorial possui uma escala que exige um compromisso muito para além dos ciclos políticos de qualquer Câmara Municipal ou Governo. Esta necessidade que a Política nem sempre assegura e que a Arquitectura não quer assumir cria um vazio que só pode ser ultrapassado através de uma efectiva comunicação. Mas como se comunica hoje com a sociedade? Que espaço público comunicacional se está a gerar? Este repensar sobre o espaço público, entendendo-o como a verdadeira plataforma de cidadania, obriga o arquitecto a ocupar e a querer ocupar aquele espaço-lacuna virtual que se encontra inúmeras vezes vazio, passando o arquitecto a ser uma possível ponte entre as diferentes camadas da sociedade. Esta necessidade obrigará o arquitecto a um contínuo jogo de aproximação e distanciamento, aproximação como esforço de análise e ética de cidadania, distanciamento pela vontade de criação de sínteses em forma de projecto.
Este esforço de mediação foi ilustrado por Bandeirinha através do seu aprofundado estudo sobre o projecto SAAL e do papel consultor — mediador — que os arquitectos aí desempenharam junto do poder político. Bandeirinha defende para hoje uma re-humanização do território e uma verdadeira reformulação das densidades centrais. Julga ser essa a grande luta dos arquitectos em Portugal, num claro reforço do carácter social da arquitectura. Neste sentido, a arquitectura transforma-se ela também numa arma política.
O foco de Yona Friedman centrou-se, por seu turno, na necessidade urgente da redução de dependências. O conceito de liberdade criativa adquire em Friedman uma importância capital. E associado a ela aparece igualmente a re-apropriação da esfera pública ("que não é só espaço físico") por parte dos actores da sociedade. Para ele, os movimentos modernos tendencialmente centrados no indivíduo originaram confusas dispersões, ausências territoriais e complexas monitorizações que devem ser contrariadas pela re-ocupação intensa do espaço público contemporâneo.
Como se percebe então, os diferentes níveis de compromisso que os arquitectos estabelecem com o poder político e social podem ser determinantes para o futuro da disciplina. Esta necessidade - não só factual mas também moral e cívica - faz parte do trabalho do arquitecto contemporâneo. O seu papel como mediador social e político pode, em alguns casos, ser tão significativo e preponderante como a vertente técnica que o especializa e commumente o caracteriza. Sem a assumpção deste papel comunicacional a oportunidade de exercer tecnicamente a sua profissão poderá, em alguns casos, ser inclusive posta em causa.
No entanto, e apesar do relevo teórico desta análise, importa perceber de que forma concreta e com que ferramentas específicas poderão os arquitectos suportar o peso desta renovada responsabilidade. Este papel de moderador — que poderá ser entendido como uma oportunidade mas também como um fardo — está para além do exigido pela restante sociedade? Ou, pelo contrário, corresponde àquilo que se espera dos arquitectos? O que é específico/intrínseco a esta disciplina?
ESPECIFICIDADE
A arquitectura é, senso comum, definida como a "arte ou ofício da construção". Ou seja, segundo esta lógica, é algo que tem que ver mais com a técnica que com qualquer filosofia inerente. É algo que tem que ver com os dispositivos técnicos em que nos apoiamos, com os dados que apenas nós controlamos, com a linguagem que apenas nós entendemos. Este confronto entre a filosofia da disciplina — que a aproxima da cultura política — e a praxis concreta do "fazer arquitectura" foi a grande alavanca de debate no segundo dia de conferências.
Várias intervenções mostraram que existem mecanismos — que denominarei de integração — que partem do específico, do material e da prática concreta para só depois se transformarem num conceito mais alargado ou numa teoria de influência que possa ser generalizada.
A socióloga francesa Monique Eleb abordou essa temática referindo-se a projectos de adaptação de apartamentos e células habitacionais existentes nos arredores de Paris a diferentes utilizadores, sobretudo emigrantes. Através de mecanismos puramente arquitectónicos e de desenho era possível, segundo esta abordagem, facilitar a integração destes grupos minoritários na sua nova sociedade. A actuação era local e de âmbito doméstico, mas as implicações eram muito mais profundas e de génese social.
O arquitecto espanhol Santiago Cirugeda defendeu a operatividade política e responsabilidade social da arquitectura baseada num espírito activista, atribuindo ao arquitecto diversos papéis no desenrolar de qualquer processo. Cirugeda demonstrou que é possível ter uma abordagem crítica e propositiva a partir do momento em que o arquitecto assuma a sua vocação interdisciplinar e decida actuar independentemente das circunstâncias. Esta forma de actuação, muitas vezes no limite da legalidade, parece aproximar-se da ideia de contra-cultura evocada por Inaba. No entanto, difere no que toca ao objectivo final. Enquanto que para Inaba esta contra-cultura permitiria elevar o estatuto do arquitecto a uma posição inquestionável, para Cirugeda o objectivo seria a agitação social e a aprendizagem pela sociabilização e troca de experiências concretas, num aproveitamento eficaz das novas ferramentas de comunicação digitais.
Um dos discursos mais interessantes e esclarecedores da Trienal terá sido o da arquitecta norte-americana Sarah Whiting. Aproveitando desde logo uma alteração verificada na denominação do painel em que estava inserida (o painel FUTURO teve previamente o nome de AMBIGUIDADE), Whiting fez um claro apelo à especificidade tentando dessa forma anular qualquer hipótese de ambiguidade ou discrepância no seio da disciplina. Fazendo uma interessante análise dos tempos "hesitantes" em que vivemos, verifica que existe uma enorme discrepância entre aquilo que é analisado, pensado e teorizado e aquilo que tem sido realmente levado a cabo.
A ambiguidade gerou-se à custa desta aparente dificuldade em perceber o que é intrínseco à disciplina e na aparente tendência de acreditar que as ideias, por si só, serão suficientes para o debate e para a obtenção de resultados frutíferos. O que Sarah defende é a investigação e pesquisa em torno dessa matéria específica, das ferramentas que nos caracterizam e distanciam dos restantes profissionais, enquadrando essa especificidade em quatro níveis distintos: especificidades técnica e material, representativa, programática e pedagógica.
A instabilidade disciplinar tem sido provocada ao longo dos tempos pela tendência em acreditar, como lembrou Pedro Bandeira na informal conversa por e-mail (e parafraseando Hans Hollein), que "tudo é arquitectura". E ainda que saibamos que não o é, o perigo também está na tendência suicida de olhar para tudo com a secreta ambição de transformação. A formação abrangente do arquitecto parece, por vezes, indicar esse caminho ou ser manifesto ou justificação de tais vontades, mas a história tem mostrado que, na prática, temos que ser capazes de criar sínteses, quer do ponto de vista mental, quer nas opções práticas que vamos tomando.
Utilize-se ou não os quatro níveis de especificidade propostos por Whiting e permitam-se maiores ou menores inputs de outras disciplinas, registe-se que será muito difícil, ou mesmo impossível, contribuir de forma efectiva para uma evolução positiva da disciplina sem dominar as ferramentas próprias que a caracterizam.
BALANÇO
É no equilíbrio entre estas duas vertentes — MEDIAÇÃO social e ESPECIFICIDADE disciplinar — que se situa hoje a inteligibilidade e credibilização da Arquitectura. A constante e coerente conversação/negociação entre os diversos agentes da transformação aliados à intrínseca capacidade de pôr em prática as ideias que se vão gerando, representam o caminho possível, uma espécie de fresta de futuro da Arquitectura. De certa maneira, o que aqui se propõe é uma filosofia disciplinar que contenha, de forma associada e simultânea, uma certa dose de relativismo no pensamento e um certo grau de pragmatismo na acção.
Serve esta ideia para concluir também sobre a pertinência do tema escolhido pelos comissários José Capela e Cláudia Taborda. Ao contrário do verificado na primeira edição da Trienal de Arquitectura de Lisboa (2007), em que a Conferência Internacional reflectiu o grande tema da Trienal — Vazios Urbanos — e serviu um propósito mais abrangente e mediático (a intenção era mesmo juntar as grandes estrelas do firmamento - desde Zaha Hadid ou Thom Mayne passando por Dominique Perrault, Fernando Romero/LAR ou Bjarke Ingels/BIG), esta segunda edição teve uma abordagem mais preocupada e consentânea com as reais necessidades e fundamentos da disciplina. O regresso a um pensamento social e integrador que obrigue a questionar e intuir caminhos de inclusão ao invés de provocar e promover linguagens de paranóica autonomia é, no mínimo, de salutar.
Resta, então, a pergunta: que realidade para a Trienal de 2013?
::::
Carlos M. Guimarães
(Matosinhos, 1982) Licenciado em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (2006). Frequentou o Politécnico de Milão (2004/05), participou em Workshops de Desenho Urbano em Cabo Verde e no Brasil e foi colaborador (2002-2004) e director (2005/06) da revista de estudantes NU. Trabalhou em Bilbao, Caracas, São Paulo e Lisboa. Colabora actualmente com a empresa Iperforma S.A., no Porto, e faz parte do Colectivo depA, fundado em 2009 na mesma cidade. Escreve regularmente na revista A10 e colabora pontualmente com outras revistas da especialidade. www.cmggarchitect.wordpress.com