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NÓS E OS CARROS

ADEMAR MACHADO


Sentado numa esplanada da cidade vejo carros por todo o lado, uns em movimento, outros parados. Esta imagem quotidiana dá o mote para uma reflexão a propósito dos nossos carros e das nossas cidades, do carro como nosso maior amigo e ao mesmo tempo um dos maiores inimigos, com o qual temos uma íntima relação de paixão e ódio.
O automóvel é hoje um objecto comum, importante nas nossas vidas, fruto do desenvolvimento da tecnologia, a par do computador, da internet e do telemóvel. Por vezes esquecemos quanto estes objectos transformaram os nossos hábitos e quanto dependemos deles, em particular do automóvel.

Em poucas décadas a paisagem portuguesa transformou-se de forma surpreendente.
Ganhámos carros, auto-estradas, pontes, centros comerciais, estádios de futebol.
Por outro lado perdemos pessoas, agricultura, pesca tradicional, paisagens naturais, florestas.

O povo português outrora maioritariamente do campo é agora urbano. Vive na cidade (ou no subúrbio) e possui um carro. Vai de carro para todo o lado, para o trabalho, para as férias, para o centro comercial e para a praia.
O português gosta de ter o seu carro por perto; pára no cruzamento para beber o café, pára na rotunda para apanhar a criança na creche, estaciona em segunda fila ou na terceira, do interior do seu habitáculo contempla o mar, e sonha, com novos modelos, carros maiores, cilindradas superiores.

Não existem obstáculos intransponíveis, os carros invadem os passeios, jardins, praças, pinos, árvores, canteiros, tudo é conquistável e depende só do tamanho do carro que temos (ou do tamanho dos pneus).

O carro apropriou-se do espaço público por falta de espaço próprio ou por preguiça dos seus proprietários. Tirou-nos o direito do espaço, de andarmos a pé, de vivermos sem ele. Este abuso de ocupação raramente é questionado ou penalizado. Como não existem suficientemente estacionamentos somos obrigados a transgredir. Vivemos numa sociedade que aceita esta atitude de forma passiva, uma vez que todos somos praticantes embora não crentes. Somos auto dependente e gostamos de ser.

O carro é mais do que um meio de transporte, representa a nossa forma de estar, o estatuto que temos ou que gostaríamos de ter. Podemos viajar com duas, três, quatro ou mais pessoas, mas estamos quase sempre sós. Sós a circular no meio de estradas, de carros e de indivíduos sós, iguais a nós.

Ganhámos liberdade, mobilidade, encurtaram-se distâncias e reduzimos o tempo das viagens.

Conquistámos a velocidade mas vivemos sem tempo para nada.
Será que não perdemos mais do que ganhámos? Perdemos o direito de viver devagar, caminhar e contemplar a natureza.

Em Portugal a cidade cresceu e reinventou-se a partir das infra-estruturas. À medida que as vias de comunicação foram aparecendo assim cresceu a cidade, com ou sem planeamento, ao sabor dos preços do solo e de interesses essencialmente económicos. Esta expansão alargada levou o urbano até onde só existia o rural, através de processos urbanos mais ou menos difusos.

Hoje temos planos nacionais, regionais, municipais e locais. Estratégias para combater a dispersão urbana, atingir a coesão territorial e alcançar a sustentabilidade urbana. Mas será que a realidade está a evoluir para um modelo urbano mais sustentável. Uma observação atenta diz-nos que não.

A cidade que queremos não é a cidade que vivemos.
Temos teorias, instrumentos, indicadores e regulamentos mas pouco avançamos em termos de sustentabilidade.

O número de carros em Portugal aumentou de forma significativa durante as últimas décadas, crescendo cada vez mais o nível de emissões de CO2 libertados para a atmosfera.Esta tendência é preocupante quando existem metas comunitárias para a redução de emissão de gases nocivos para o ambiente. Todos sentimos as alterações climáticas, a degradação do meio-ambiente, e o aumento vertiginosos do custo dos combustíveis. No entanto continuamos a acreditar no espírito inventivo do homem para superar esta ameaça.

Continuamos a privilegiar o automóvel em vez do transporte público; construímos estradas sem ligar tecidos urbanos; projectamos 1,5 estacionamentos por fogo, quando sabemos que temos de reduzir a superfície de estacionamento e o número de automóveis a circular; abrimos túneis e alargamos faixas convidando mais carros a entrar sem resolver os escoamentos nos nós.

Sabemos o que temos a fazer mas não executamos. Seguramente não é por falta de bons técnicos ou de boas estratégias.Falta-nos vontade para mudar os nossos hábitos diários.O desejo de consumo para além da necessidade. O desejo de conforto para além do possível.

Qualquer dia o custo da gasolina é de tal forma que os nossos carros têm de ficar parados à porta de casa.
Qualquer dia não temos combustíveis fósseis disponíveis.
Qualquer dia pode ser tarde de mais para mudar.
Qualquer dia pode ser amanhã.



Ademar Machado , arquitecto
Assistente convidado na Faculdade de Arquitectura | UTL