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NO LUGAR DE UMA JANELA, NASCEU UMA PORTA
FREDERICO VICENTE
a) construir no vazio;
“Há um vazio que é a pior coisa que há para enfrentar um projeto, esse vazio realmente não existiu, havia aí um sítio que estava mesmo a pedir, encaixem aqui, prendam aqui a galeria.” [1]
No lugar de uma janela, nasceu uma porta. Uma porta que não tem soleira, mas tem a espessura de uma passagem.
Inaugurou-se em outubro (2023) a nova Ala Álvaro Siza, aquela que é a extensão do Museu de Arte Contemporânea de Serralves para poente [2]. Cumpre-se agora a abertura oficial com as primeiras duas exposições: Anagramas Improváveis. Obras da Coleção de Serralves e C.A.S.A: Coleção Álvaro Siza.
Confunde-se o nome do arquiteto com o nome do edifício [3], uma “homenagem”, um “agradecimento”, um “reconhecimento", talvez um somatório de todos estes nomes (quase homónimos); muito embora a história de Serralves não pudesse ser contada sem a justa referência a Siza. O namoro entre ambos é duradouro – um banco conversadeira no jardim – e Serralves, como museu, instituição e morada, é adoçada com a arquitetura firme, de traço tremido, de que é indissociável a mão do arquiteto.
Siza projetou Serralves em 1999 (acredito que também em sentido figurado), vinte anos depois voltou à paisagem do parque para desenhar a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (2019) depois, a Casa dos Jardineiros (2021) e por fim a recuperação da Casa de Serralves para receber a quase alienada Coleção Miró (também em 2021). O novo edifício é, eventualmente, o epílogo da longa boda. Com três novos pisos construídos, entre áreas de exposição divididas por dois deles, a que se acrescenta um terceiro para acervo [4]; Serralves tem a ambição de se posicionar como um centro de arte contemporânea internacional - uma casa para uma coleção permanente, onde cabem arquitetos e arquitetura, e sobretudo para ser depósito e repositório [5]. Mas falemos de arquitetura.
A nova ala é um braço que serpenteia pelos troncos das árvores e se deixa implantar à “sombra das copas que já lá existiam”. A transição entre os volumes é uma simples ponte de ligação, cuja perceção apenas a alcançaremos mais tarde, quando caminhando pelo parque. Chegados do museu-mãe, somos recebidos num segundo átrio, acrescentaria um vestíbulo de entrada. A estereotomia do pavimento, em madeira, denuncia uma torção no edifício, estamos agora mais a poente e fixamos dois triângulos justapostos. Um primeiro triângulo que quer ser símbolo de passagem entre volumes. Um segundo, também isósceles e pontiagudo, mas invertido, reforça a ligação e expande-a para o jardim. Os “espacialistas” (e muitos dos que se veem pela galeria são arquitetos ou curiosos ou equivocados) vão procurar aquela triangulação em planta, logo se percebe que o desenho resulta de uma inflexão no alçado, uma rótula que torce e quebra o ângulo de 90°.
Bem sabemos que o triângulo pode ter inúmeras conotações – e acredito que a sobreposição de dois triângulos pode fazer viajar a mente. Desde a comum analogia ao fogo, à trindade corpo, mente e espírito; ou ao ciclo passado, presente e futuro. No entanto, a definição que nos interessa remete à física das construções, onde se insere a arquitetura.
O triângulo é uma forma estável, associa-se com a definição de solidez e está em equilíbrio, transmitindo harmonia. São necessários pelo menos três apoios para manter uma mesa estável, pelo mesmo princípio também um edifício se pode apenas fundear com três pilares. Este é um pensamento que interessa a Siza, o “não-esforço da estrutura”. Estar num espaço onde não tenhamos a perceção das suas tensões e ancoragens, onde o material que faz a estrutura é “também a substância de que é feito o edifício”. Resultam espaços e arquiteturas leves, mas indeléveis, de pés e mãos no chão, embora sutis na sua simplicidade formal, como de certo toda a animália de quatro patas, que povoa os esquiços do arquiteto. É Eduardo Souto Moura que a determinado momento apelida a arquitetura de Siza como a “leoa da selva”, por outras palavras é uma arquitetura confortável com a sua implantação, por muito que esta se contorça no lugar.
Retomando à galeria – e após o impacto visual do átrio e/ou captada a imagem Instagram – os espaços sucedem-se livremente num jogo de cantos. As salas são “bem-comportadas”, compartimentos de larguras e comprimentos modestos que se intersectam pelos cantos; e paredes vazias. Paredes verdadeiramente dimensionadas e flexíveis para receber exposições, retomando o princípio básico de uma galeria e respondendo a um programa, uma coleção e ao cliente – “espaços conformados para que não seja preciso paredes para cada exposição” [6] - uma lógica que a arquitetura pós-moderna tem feito por esquecer. O desenho de tetos, em particular as sancas de luz, retomam o trabalho quase barroco do arquiteto no edifício-mãe (as célebres mesas de luz invertidas), reforçando o entusiasmo entre as interseções e as esquinas.
Entre paredes, que distam pouco mais que uma largura de ombros, descemos de uma sala-varandim que olha a natureza do parque lá fora. Cerca de doze metros separam as cotas dos dois pisos, cuja ligação entre ambos é uma escada com dois lances. Há aqui uma janela que detém, e segue a tradição-relação Curzio Malaparte / Adalberto Libera, que Godard gostaria de ter filmado [7]. É também familiar a Siza esta interpretação interior/exterior, como quadro, não janela, sobretudo em implantações semelhantes, como a recém-inaugurada Fundação Gramaxo na Maia ou a simples Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, no Seixal. Já no piso inferior, a cadência é diferente. As áreas são desafogadas e contemporâneas, acelerando os passos e as diagonais, mas sobretudo enfatizando o espaço amplo: vazio.
Desconstruir o vazio;
Do que falamos, quando falamos de vazio? E porque nos inquieta ou atormenta? O fascínio que o “vazio” suscita, enquanto conceito, pode certamente estar associado à dificuldade em atribuir-lhe uma forma. É uma não presença. Uma ausência de conteúdo e quase sempre está circunscrito pelo que é “cheio”. Portanto, há uma forte correlação entre “cheio” e “vazio”: como um abraço complementar entre contentor e conteúdo. Também é essa a funcionalidade da arquitetura, ser contentor para conteúdos. Num primeiro momento, o levantamento topográfico marca as extremas (nesta nova ala sabemos que foram os troncos e as árvores que afastaram o edifício pelos menos três metros da sua influência), desenha-se a circunferência entre o que está dentro e o que está fora, erguem-se as paredes, suspendem-se as lajes e todos os elementos de construção civil assentam, encerra-se uma área, formando espaço. Espaço por ocupar, por viver: vazio. A arquitetura abraça o vazio, como uma caixa aberta de possibilidades, simplicidade e flexibilidade. São tudo correspondências com o desenho de Álvaro Siza, a que se poderia acrescentar as palavras tradição e barroco (no sentido da emoção e espanto). Percorrer de momento as salas vazias deste novo edifício de Serralves é em muito semelhante a um Leap into the void (1960) [8] de Yves Klein, mas, ao invés de saltarmos de fachada para a rua, saltamos para o jardim.
Leap into the Void, Yves Klein, 1960.
Contextualizando a nossa referência, foi na Galerie Iris Clert (Paris, 1958) que Yves Klein inaugurou a exposição seminal La spécialisation de la sensibilité à l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée ou simplesmente Le Vide (A especialização da sensibilidade no estado primário na estabilização da sensibilidade pictórica), dando início à eventual obsessão pelo tema. Em jeito de puro manifesto, o artista propunha uma galeria vazia. A materialidade de qualquer peça foi substituída pela imaterialidade das salas. Confundiu e remisturou a ideia de contentor e de conteúdo, o que obrigou ao confronto entre os visitantes e o espaço monocromático, o espaço e somente o espaço no seu estado mais simples e depurado. Klein embalou os visitantes numa dança performativa de experiência da “planta livre” (não a mesma “planta livre” popular entre os arquitetos modernos). Um vazio que não é esvaziado de matéria e nada deve ao preenchido, porque também é palpável e, se assim o quisermos, primário. Também Friedrich Nietzsche se deteve no pensamento sobre a tábua rasa” [9], anulando e negando a pesada herança das convenções e tradições, sobretudo aquelas relacionadas com a moralidade e a religião. Ao desafiar tais estruturas, o filósofo convidou a uma conexão com o “vazio-positivo”. Tal como Klein, Nietzsche via na “morte anunciada de Deus”, entenda-se, no “vazio-positivo” (com carga positiva), uma espécie de oportunidade e estímulo criativo para trabalhar uma matéria-prima do avesso. Portanto, para Nietzsche, o vazio que resulta da crítica às convenções e rompimento com antigos ídolos e ícones, não é negativo, pelo contrário é uma janela, o mesmo Leap into the Void de Yves Klein, mas para uma afirmação vigorosa da existência. No livro de honra da exposição, Albert Camus, talvez a pensar em Nietzsche escreveu: “Avec le vide les pleins pouvoirs” (Com o vazio, plenos poderes).
Em jeito de epílogo, esta mesma reflexão sobre o sentido de tábua rasa foi também tema na exposição debut da Galeria de Arquitectura, Tábula Rasa (Porto, 2016). Num rés-do-chão da Rua do Rosário no Porto, numa loja de paredes e teto branco lia-se: “Is this an architectural exihibition?” (isto é uma exposição de arquitetura?). A inscrição em branco brilho, sobre o branco mate das paredes, ecoava no oco da galeria. E de repente essa mesma imagem ressoou e preencheu toda a visita à também ala poente vazia de Álvaro Siza: expectante por uma continuidade narrativa, expectante por uma exposição, expectante por uma instalação; e assim nos perguntamos também (sem um livro de visita onde escrever): isto é uma exposição de arquitetura? Atrevo-mo a responder, não, é talvez a forma da arquitetura; talvez seja apenas como deve ser um museu de arte contemporânea, um contentor para conteúdos.
Frederico Vicente
É arquiteto (FA-UL), investigador e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com o INSTITUTO, no Porto, de onde se destacam exposições como "How to find the centre of a circle" de Emma Hornsby e "Handmade" de Ana Paisano. Foi ainda curador das exposições "Espaço, Tempo, Matéria", Convento da Verderena, Barreiro; "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" de Tiago Rocha Costa, AMAC, Barreiro entre outras. Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições acadêmicas, livros e exposições. A atividade profissional orbita sobretudo em torno das ramificações da arquitetura.
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Notas
[1] Álvaro Siza Vieira em entrevista à Antena 1, durante uma visita acompanhada à comunicação social - emissão de 19 outubro 2023, 19:22, Antena 1.
[2] A nova galeria foi inaugurada pelo arquiteto a 17 de outubro de 2023, muito anterior à data de publicação deste texto. No entanto, cumpre-se a 24 de fevereiro de 2024 a apresentação da C.A.S.A. (Coleção Álvaro Siza, arquivo), com as duas primeiras exposições na nova Ala Álvaro Siza.
[3] Álvaro Siza Vieira quando questionado por uma jornalista (durante a mesma visita acompanhada - nota 1) sobre a atribuição do seu nome à galeria, responde com humor: “A minha primeira reação foi isso não, eu quando escrevo, escrevo sempre Ala Poente, mas como eu estou também no poente.”
[4] Lê-se na brochura que acompanha a visita e também no texto de parede à entrada da nova ala que a mesma veio “acrescentar 44% de área expositiva e 75% da área de reservas”, correspondendo, portanto, a cerca de mais 4200 m2 de área bruta de construção.
[5] Em 2015 Álvaro Siza doou à Fundação de Serralves uma parte do seu arquivo, tal como à Fundação Calouste Gulbenkian e ao Centro Canadiano de Arquitetura situado em Montreal. Curiosamente em 2007 foi fundada a Casa da Arquitetura – Centro português de Arquitetura, com o objetivo de tratar e divulgar a arquitetura em território nacional. A Casa da Arquitetura ocupou uma casa que pertenceu à família de Álvaro Siza no número 582 da Rua Roberto Ivens, até novembro de 2017, quando mudou de instalações para a Real Vinícola, também em Matosinhos. Aquando da formação do projeto, existiu a promessa de construção de um edifício projetado por Siza, que não avançou por escassez de financiamento.
[6] Álvaro Siza Vieira em entrevista à Antena 1.
[7] “A paisagem que se emoldura” é um recurso recorrente no léxico da arquitetura de Álvaro Siza: janelas que deixam entrar luz (na Igreja de Marco de Canaveses), ou as árvores (as de Serralves), o céu, as rochas e o horizonte-mar (na Casa de Chá da Boa Nova), mas neste novo edifício, talvez pela pouca fenestração, seja evidenciado.
[8] Leap into the Void é o título de uma fotografia de Yves Klein. Retrata um salto do artista de uma fachada de um edifício para o vazio. A fotografia foi produzida com recurso a pós edição, removendo os assistentes que amparam a queda do artista, e criando no observador a confusão entre realidade e ficção. Klein procurava explorar os conceitos de transcendência, uma vez mais de vazio e do corpo como ato performativo.
[9] Em Le Gai Savoir publicado em 1882, o filósofo descreve o “vazio”, aquele que resulta, após a purga total das convenções e moral religiosa da sociedade ocidental como espaço para a liberdade de pensamento e criatividade.