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DESIGN E DELITO
ANTÓNIO COXITO
Há já cem anos que Adolf Loos, num visionário golpe moralista, nos levou a considerar o ornamento um delito [1]. Hoje, conscientemente ou não, quando optamos por soluções sóbrias citamos Loos.
O discurso loosiano foi apropriado pelos Modernistas das formas puras, por Humphrey Boggart do fato cinzento e por Dieter Rams do wenig, aber besser [2]. O seu horizonte é nothing is more. Mas por detrás da sua capa monocromática e dos seus argumentos funcionalistas, a não-ornamentação tornou-se num formalismo por excelência. O novo ornamento passou a ser a cor plana, o melhor design passou a ser o não-design e a replicação de modelos, caracterÃstica das anteriores épocas ornamentais, manteve-se, agora com a sua intrÃnseca monotonia: um alçado cego, uma alheta.
No outro extremo, quando o ornamento sobrevém é considerado kitsch. Ali se encontram flores de plástico, com a chancela da Unidade Infinita ou roubadas no cemitério, estatuetas de Jeff Koons em poses eróticas com Cicciolina ou as fotografias profusamente coloridas, provocatórias e superficiais de David Lachapelle. Este kitsch foi delineado por Milan Kundera em L’ insoutenable légèreté de l’être (A insustentável leveza do ser, 1984). Segundo ele, o Vaticano considera que Jesus Cristo amava, Jesus Cristo comia, mas Jesus Cristo não defecava. Este é um paradigma da ornamentação kitsch: passear alegremente sem olhar aquilo que se pisa.
Pelo meio, houve caminhos do design e da arquitetura que foram contextuais da tecnologia, desde o betão ao automóvel. Se, em determinada altura datada, proliferaram equipamentos com um invólucro transparente, de modo a que se pudesse ver o seu mecanismo, como que num gesto de sinceridade, na era digital essa inteligibilidade encontra-se encriptada em bits, tornando esta solução num strip-tease de série B. A inteligibilidade do funcionamento passou então a debruçar-se sobre a sua navegação e não sobre o seu mecanismo. Aqui, a ergonomia refere-se aos dedos e aos olhos, prescindindo do resto do corpo. Através dos olhos imergimos num espaço virtual, esse sim com novos âmbitos para o design.
A redução daquele design ao botão ON/OFF é ilustrada com ironia existencial por Woody Allen em Sleeper (O herói do ano 2000, 1973): basta premir um botão e tudo o que desejamos se realiza. Por outras palavras, a desalienação do homem sobre o seu potencial e sobre o seu destino. Uma espécie de anestesia autoinfligida para a qual recordo as últimas páginas do diário do capitão Scott na sua trágica conquista do Polo Sul: já com o corpo em hipotermia, com o lápis atado à luva com um cordel, descreveu a sua morte por congelamento como algo de extremamente agradável; o anestesiamento causado pelo frio provoca alucinações, tal como a navegação em modo automático. Procederá a épica batalha entre o homem e a máquina, representada num outro filme de culto, 2001 A Space Odyssey (2001 Odisseia no Espaço, 1968) de Stanley Kubrick, curiosamente com um prognóstico para o ano seguinte ao da versão portuguesa de Sleeper, apesar de ter sido realizado antes do filme de Woody Allen. Esta batalha está a ser vencida por HAL, para estranho regozijo dos humanos.
A sobriedade loosiana releva de uma consciência da excessiva leveza humana quando colocada nas asas da máquina comodista ocidental pós-revolução industrial. Isso é positivo! Mas não quer dizer que a sua replicação esteja imbuÃda desta consciência.
Num tempo de multiplicidade de canais de informação, veiculando uma multiplicidade de correntes, através de uma multiplicidade de ferramentas de sedução, é comum sentirmo-nos seduzidos por deus e pelo diabo sem nos darmos conta dessa contradição. Por exemplo, referindo-nos aos “grandes autores da literatura do século XXâ€, não é inaudito ouvir-se dissertar sobre Ernest Hemingway (1899-1961) e a seguir, mantendo a chama, sobre Scott Fitzgerald (1896-1940). Isso revela, não leviandade literária, mas uma falta de definição de si próprio (apesar de, em Portugal, poder ainda significar subalternidade literária, por serem ambos “grandes autores da literatura do século XXâ€). Trata-se de não saber se se deseja ser um partisan dando a vida por uma causa humanitária se um dandy fútil entre Paris e Nova Iorque. Alegar que essa dúvida é humana revela a mesma dúvida: é uma defesa que engendra dentro de si o argumento, portanto sem base. Se estes dois autores chegaram a ser grandes amigos (único assunto, trivial, que poderia unir uma dissertação que incluÃsse ambos), a amizade não deixa de os opor eticamente. A boa literatura deve ser submetida ao crivo da ideologia.
A questão então torna-se, não na opção por ornamentar ou despojar mas na autenticidade dessa opção.
Aquilo que Loos mais criticava não era a existência de ornamento mas a sua reprodução mimética. No fundo, criticava a falta de autonomia do desenho perante qualquer discurso, fosse ele o discurso da moda, o da tradição ou o da academia. Pelos vistos, apenas conseguiu elevar-se acima do geist da sua época, porque o seu propósito era um novo moralismo, sempre novo, todas as épocas.
António Coxito
Notas
[1] Adolf Loos, Ornamento e delito, 1908.
[2] Menos mas melhor.