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MUSEU DA PAISAGEM. AS POSSIBILIDADES INFINITAS DE LER E REINTERPRETAR O TERRITÓRIO
FÁTIMA LOPES CARDOSO
Do diálogo entre a comunicação, a geografia, a geologia, a arquitetura paisagística e as artes nasceu um projeto experimental que cria várias propostas de mediação entre públicos. A ideia de transportar leituras sobre as especificidades do território português para um museu virtual tem-se revelado um desafio que vale a pena conhecer. O projeto materializou-se em 12 pérolas do design gráfico.
A complexidade da paisagem existente no território português inspira um projeto de idiossincrasias raras que germinou no meio académico. Criado em 2015, o Museu da Paisagem nasceu do interesse de uma equipa multidisciplinar de investigadores, professores e estudantes da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa (ESCS), com o objetivo de ser um mediador entre públicos e contribuir para a literacia paisagística de quem usa e transforma a paisagem, mas depressa revelou ter possibilidades quase infinitas, quando obteve financiamento da FCT, em 2017. Como explica João Gomes de Abreu, coordenador do projeto e autor da dissertação de doutoramento “Museus: Identidade e comunicação, instrumentos e contextos de comunicação na museologia portuguesa (2014), “criar o Museu da Paisagem foi um desafio muito interessante do ponto de vista da comunicação porque a ideia passa pelo conceito do museu como se fosse o território. Como a paisagem não se pode pôr dentro do edifício, então, a paisagem é o museu. No fundo, o que os museus fazem é mediar uma visita entre um público e uma coleção, que neste caso são unidades de paisagem, e comunicar com o público o território do país. O Museu da Paisagem foi a forma que tornou possível mediar uma visita ao território”.
Ao entrar no museu virtual, percebe-se que, além da investigação científica na área da comunicação e das artes, da qual resultam palestras, conferências e artigos, a forte componente curatorial do projeto gerou iniciativas de natureza artística e documental que cruzam a geografia, a geologia ou a arquitetura paisagística com o cinema documental, a poesia, a fotografia, o multimédia e o design gráfico.
Às vertentes artística e científica, junta-se o forte sentido cívico e, com regularidade, o projeto desenvolve programação com visitas guiadas, conferências, ciclos documentais, exposições, oficinas e workshops. “Organizámos o site como se fosse um museu físico e como se estivéssemos num edifício, com exposições, a loja, o serviço educativo e a biblioteca. Como para nós é muito difícil estar sempre a realizar trabalhos regulares, a nível de serviço público, criámos um kit com oito atividades. No fundo, tem um tutorial a explicar como se fazem as atividades. Quem quiser pode descarregar para fazer com os amigos. É uma ideia colaborativa com o projeto de Mértola “De Boca em Boca”. Também já trabalhámos com “A Casa da Avenida”, em Setúbal, e a Porta 33, na Madeira, a associação cultural que desenvolve iniciativas no Porto Santo”, esclarece João Gomes de Abreu.
Na linha da cultura da participação de Henry Jenkins (2006), o Museu da Paisagem é uma porta aberta para um vasto conjunto de propostas de mediação que convoca leituras sobre o ponto de encontro climático e mosaico paisagístico sui generis que é Portugal. “Do cruzamento entre os climas atlântico, mediterrânico e continental resultam paisagens diferentes. A Sul, é mais mediterrânica; no Minho, é claramente atlântica e o Interior tem um clima continental que torna a paisagem mais agreste e mais dura. Depois, há uma ocupação humana muito antiga, milenar. Desde o Paleolítico que existe transformação deste território. Podemos andar 100 km e percorremos sempre muitas unidades de paisagem diferentes. Do montado, no Alentejo, às vinhas do Douro, existe uma paisagem cultural que tem a ver com essa ocupação humana muito antiga. Também a orografia e a própria geologia do território são muito diversas. Existe calcário, xistos, granito, basaltos…”, descreve.
O território demarcado para o protótipo do projeto foi a bacia hidrográfica do Tejo, ou seja, o conjunto de toda a rede de rios e ribeiras tributárias do Tejo, mas nas fases seguintes alargou-se a outras zonas do País. “Tivemos de delimitar a área que íamos trabalhar. Como o rio Tejo era o eixo que ligava os vários parceiros - uma empresa de Lisboa e os politécnicos de Castelo Branco e de Santarém -, a primeira proposta trabalha a bacia hidrográfica do Tejo portuguesa. Inicialmente, identificaram-se 757 pontos e linhas de observação de paisagem, dos quais 52 foram trabalhados no desenvolvimento de conteúdos de mediação paisagística. Com base no material escrito, fotográfico e audiovisual captado nestes lugares, foram criadas várias propostas de mediação, das quais se destacam cinco exposições - três online no website do Museu da Paisagem e duas na Escola Superior de Comunicação Social-, a série documental “Filmar a Paisagem”, com a curadoria de Inês Ponte, e a publicação de vários livros, entre os quais, “Ler a Paisagem: Território Tejo”, de diversos autores, e “O que há neste lugar? Guia de exploração da paisagem”, de Maria Manuel Pedrosa e Joana Estrela”, refere o coordenador.
Ler a Paisagem: Território Tejo – Itinerários para a interpretação da paisagem acabou por ser o início de uma mão cheia de país à espera de leituras. Em 2019, o resultado do - como caracterizam - “olhar transversal que pretende recuperar o entendimento dos primeiros exploradores científicos, como Humboldt e Darwin, ainda libertos de uma ideia de mundo compartimentado e etiquetado”, foi publicado em livro. No prefácio da obra, podemos encontrar a natureza do projeto:
“Pouco habituados a ler o invisível em vez do visível, não será fácil aos leitores iniciar este processo de interpretação. Como começar a leitura? Qual a primeira página e o primeiro parágrafo? Na verdade, não há apenas uma leitura, mas sim tantas quanto o número de leitores. Ou seja, a paisagem não resulta apenas do sistema de relações entre os elementos que a constituem, mas também do entendimento desse sistema. Paisagem é também perceção. Deste modo, podemos afirmar que a paisagem começa aqui mesmo, em cada um de nós. Começa aqui porque depende da nossa interpretação, mas também porque cada um de nós, individual e coletivamente, é seu habitante e construtor” (2019: 7).
Entre 2017 e 2022, já foram publicados 12 livros, quase todos com design gráfico e paginação de Mariana Vale – exceto a obra “Ler a Paisagem Território Tejo” (2019), da autoria gráfica de Rita Máximo. O Museu da Paisagem deu a conhecer o espólio da geógrafa francesa Suzanne Daveau - hoje com 97 anos e que foi a companheira do geógrafo Orlando Ribeiro, falecido em 1997-, também publicou e expôs trabalhos do fotógrafo e arquiteto Duarte Belo e do designer gráfico, projetista e desenhador Jorge dos Reis. “Como trabalhamos mais as questões da comunicação e não somos especialistas em paisagem, tivemos necessidade de ir falar com os especialistas, aprender sobre paisagem para fazer essa ligação. Desde logo apareceram alguns nomes, entre os quais, o arquiteto-fotógrafo Duarte Belo, a primeira pessoa que colaborou com o projeto. Ele fotografa o país há mais de 30 anos. É talvez das pessoas que melhor conhece o território português e, de alguma forma, percebemos que, do ponto de vista do registo fotográfico, não haverá um arquivo tão contínuo e sistematizado como o de Duarte Belo.”
A partir daí, como em todos os projetos, a rede passou a gerar frutos: “Tivemos a sorte de trabalhar desde o início com alguém que tem dedicado a sua vida ao registo de um país. Como Duarte Belo trabalha o tema há muito tempo, já possui uma série de ligações e foi um braço para a Suzanne Daveau. Primeiro, surgiu a ideia de se reeditar O Ambiente Geográfico Natural, publicado pela primeira vez em 1976. Depois, quando conhecemos o seu espólio fotográfico, percebemos que seria importante criar um livro como homenagem a esta figura determinante da geografia portuguesa, mas que não era assim tão conhecida, pelo que lançámos Atlas Suzanne Daveau.”
Caminhar Oblíquo é, precisamente, uma das primeiras propostas de Duarte Belo pelo território português a ser publicado em livro. O fotógrafo-arquiteto traça sobre um mapa “uma demorada oblíqua entre o Penedo Durão, perto de Freixo de Espada à Cinta, e o Cabo da Roca”.
“Esta linha de montanhas guarda uma singularidade: é uma fronteira invisível entre dois mundos que se unem num país: o norte atlântico e o sul mediterrânico. São as montanhas e os vales das chuvas frequentes em diálogo com as extensas planícies luminosas, de verões prolongados e secos. São duas formas de clima substancialmente diferentes, que vão dar origem a modos distintos de povoamento humano, de desenvolver cultura, de desenhar caminhos e arquiteturas. Caminhamos sobre a geografia de uma nação. Esta é a descrição e a interpretação de uma caminhada solitária de 530 quilómetros” (Belo, 2020).
Se Duarte Belo percorreu a pé, durante 15 dias, 530,1 quilómetros de paisagem, que envolveram sete distritos de Bragança a Lisboa, a proposta de Álvaro Domingues, que o Museu da Paisagem lançou no ano seguinte, foi a do “seu olhar de geógrafo, de um observador atento à face visível da transformação dos territórios”. Como escreve:
“Paisagens Transgénicas interroga o sentido da paisagem enquanto código de reconhecimento do território, propondo a transferência do conceito biológico de organismo geneticamente modificado, expondo assim a natureza compósita dos elementos de que a paisagem se faz, as suas diferentes origens, linhagens, o modo como se associam a corpos distintos, instáveis, cruzados. Deslocada da ordem ‘natural’ das coisas, a paisagem transforma-se num dispositivo estético e político que interroga a mudança e também as inquietações de quem olha e atribui sentidos vários e dissonantes sobre o modo como vemos o mundo (2021, p.3).
No livro Portugal Possível, lançado em 2022, a fotografia de Duarte Belo dialoga com as fotografias de Álvaro Domingues, que por sua vez ganham outra dimensão ou contextualização através das palavras de Rui Lage. João Gomes de Abreu esclarece a natureza da obra: “Trata-se de um diálogo entre fotógrafos. De um conjunto de fotografias de Álvaro Domingos, Duarte Belo respondia com fotografias suas. Depois dos pares de fotografia estarem criados, Rui Lage criou um conjunto de textos e poemas que acompanham o livro. É um retrato poético de um país.” Como se o leitor/observador tocasse num pedaço de terra rochosa, a abrir o livro lê-se a proposta deste “Portugal Possível”:
“Percorremos paisagens contraditórias. Em Portugal, há espaços densamente povoados, outros, poucos, onde quase não se nota a presença humana. Há elementos construídos que desafiam a imaginação mais prodigiosa. Há a permanência de mundos arcaicos, paisagens que antecederam as pegadas dessa presença. Quando pomos em diálogo imagens antagónicas, observamos a distração hilariante de opostos que se relacionam por motivos pouco óbvios ou indiretos. O que vamos encontrar é o reflexo de uma cultura que se abre ao futuro numa incerteza desconcertante, veloz e amplamente exposta à mudança do mundo. Mostramos fragmentos de um país que existe – porque a memória existe. É a nossa face, coletiva e transitória. Feita e desfeita de imagens e palavras. Portugal possível, um retrato humano do que permanece em mudança e do que muda na permanência (Lage, 2022).
Na obra bilingue em português e inglês Das Pedras, Pão (2022), as imagens de Duarte Belo tornam visíveis os textos do arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos. É uma obra sobre paisagens marginais:
“As paisagens e território que, durante os últimos séculos, eram o depósito da fertilidade que permitia ir produzindo o pão que mantinha as pessoas vivas. Não porque estas terras produzissem pão, bem pelo contrário, eram terras com solos de maneira geral esqueléticos, com muita baixa capacidade de produção (Pereira dos Santos, 2022).
O livro Arquivos de Bouça Fria, também editado em 2022, é o registo de caminhadas continuadas durante um ano, da autoria dos artistas Daniel Moreira e Rita Castro Neves, na serra da Peneda-Gerês, no espaço do tamanho de um hectare que dá o nome ao livro. João Gomes de Abreu desvenda, mais uma vez, o conceito de que partiu a obra: “Portugal tem uma coincidência curiosa: os metros quadrados do país são mais ou menos correspondentes ao número de habitantes, ou seja, em Portugal, se dividíssemos o território pelo número de pessoas, teríamos um quilómetro hectare por habitante. Um hectare é um campo de futebol e, neste livro, trabalha-se a ideia de que podemos transformar essa cota-parte de forma equilibrada entre as questões naturais, económicas, sociais, evitando o conflito e as tensões. O equilíbrio é a parte difícil de conseguir.” Em palavras dos autores:
“A delimitação de uma micro realidade rural contemporânea de alta montanha, que se inclui no Parque Natural e na Reserva de Biosfera Gerês-Xurês, em região transfronteiriça portanto, logo invoca aproximações mais do que cisões, entre Portugal e Espanha, entre o Alto Minho e a Galiza. Desde logo havia necessidade de criar imagens fora do habitual olhar pitoresco, antes falando a partir de um lugar real e familiar, que se inscreveu para nós enquanto território delimitado. É também pela minúcia e o detalhe que a nossa atenção se atarda para perscrutar: caminhar e parar, olhar e olhar outra vez – imaginávamos o percorrer do livro tanto um percurso por imagens, como por Bouça Fria…” (Castro Neves, R. & Moreira, D. 2022, p. 9).
Museu virtual, laboratório de experiências de investigadores da comunicação que se aliam a artistas, geógrafos, arquitetos e outros especialistas dos lugares à procura de leituras pelo território nacional e pelas suas paisagens em mutação, museu sem paredes para ser um espaço público infinito onde qualquer pessoa pode descobrir o território onde vive, o projeto pioneiro prossegue, agora transformado em associação sem fins lucrativos que continua a pensar em novas formas de estabelecer a ligação entre campos de expressão que não têm de estar de costas voltadas ou cingidas às suas coutadas de especialidade.
A proposta mais recente nasce da parceria de um projeto congénere Entre-Serras, que apresenta uma visão muito poética do país. “Durante três anos, com fundos do Europa Criativa, vamos estar a trabalhar territórios de serra e de montanha de baixa densidade populacional. Em Portugal, vai ser na zona da Beira Baixa, entre a Serra da Estrela e a Serra de Gredos, entre Castelo Branco e Cáceres. Haverá um outro itinerário que é nos Alpes, uma vez que há parceiros franceses, espanhóis e portugueses. O Instituto Politécnico de Lisboa (IPL) lidera o projeto, com colaboração de vários artistas. Vamos abrir uma call e os artistas irão fazer residências na paisagem. Eles percorrerão um percurso e, dessa experiência com os territórios, irão nascer trabalhos que serão expostos, além das apresentações e livros. Temos também uma nova colaboração com a Bienal de Fotografia do Porto, a qual tenta realizar exposições fora do Porto. Nesse sentido, vai ter uma mostra em Lisboa, em parceria com o Museu da Paisagem, com o título “Terra Vegetal e Terra Mineral”. À semelhança do trabalho que realizámos com a Suzanne Daveau, parte de duas figuras importantes, uma na área da geologia e outra na botânica respetivamente, que são os professores António Galopim de Carvalho e Fernando Catarino, dois homens na casa dos 90 anos que trabalharam na Faculdade de Ciências. A exposição é a retrospetiva da obra deles com um olhar sobre a geologia portuguesa e o meio vegetal da flora. Duarte Belo também colabora e, na Primavera, a exposição estará na Biblioteca Nacional”, conclui.
A recente exposição “Sete Rios, Sete Vales”, com curadoria de João Gomes de Abreu e de Margarida Carvalho, investigadora e autora da dissertação de doutoramento “A Obra ‘Faça-você-mesmo’: estética da participação nas artes digitais” (2014), e desenhos de Jorge dos Reis, sobrepõe, segundo o texto de apresentação, “o território da Serra da Estrela ao espaço urbano de Lisboa, criando uma coincidência dos seus vales que convoca a paisagem primordial de cada montanha. Para cada vale lisboeta é proposta uma série de sete desenhos de Jorge dos Reis, realizada na serra da Estrela, cujo registo partiu de duas abordagens diferentes”. São abordagens infinitas e em permanente continuidade a descobrir no Museu da Paisagem.
Fátima Lopes Cardoso
Investigadora do ICNOVA e professora adjunta na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa (ESCS), onde coordena a licenciatura em Jornalismo. Doutorada em Ciências da Comunicação, especialidade Comunicação e Artes, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, é autora do livro “A Fotografia Documental na Imprensa Nacional: o Real e o Verosímil” (2022), adaptado da tese de doutoramento homónima (2015). Jornalista desde 1997, o interesse académico por conhecer a ontologia da imagem e, em particular, da fotografia jornalística tem levado à participação em várias conferências e colóquios em Portugal e a nível internacional sobre a temática, bem como em diversos projetos editoriais e científicos.
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Referências bibliográficas
Abreu J. G. (coord.). (2019). Ler a Paisagem: Território Tejo – Itinerários para a interpretação da paisagem, Lisboa: Museu da Paisagem.
Belo, D. (2020). Caminhar Oblíquo, Lisboa: Museu da Paisagem.
Belo, D. & Pereira dos Santos, H. (2022). Das Pedras, Pão, Lisboa: Museu da Paisagem.
Belo, D., Domingues, A. & Lage, R. (2022). Portugal Possível, Lisboa: Museu da Paisagem.
Castro Neves, R. & Moreira, D. (2022). Arquivos de Bouça Fria, Lisboa: Museu da Paisagem.
Daveau. S. (2021). O Ambiente Geográfico Natural, Lisboa: Museu da Paisagem
Daveau. S. (2021). Atlas Suzanne Daveau, Lisboa: Museu da Paisagem.
Domingues, A. (2021). Paisagens Transgénicas, Lisboa: Museu da Paisagem.
Jenkins, H. (2006). Convergence Culture: Where Old and New Media Collide. Nova Iorque: New York University Press.