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ARQUITETURA E DESIGN




Cartaz “Discursos (Re)visitados”, R2 design, 2010.

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JORGE FIGUEIRA


O ciclo “Discursos (Re)visitados” decorreu entre 2 de Fevereiro e 20 de Abril de 2010, no Cinema Passos Manuel. A partir do registo em vídeo do ciclo “Discursos sobre Arquitectura”, que ocorreu ao longo de 1990 por iniciativa de um grupo de arquitectos (1) ligados à Faculdade de Arquitectura da UP, organizámos um conjunto de 10 sessões que visou reenquadrar o evento original. A responsabilidade desta iniciativa foi da Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos, em parceria com a FAUP, que me convidou para a comissariar.
“Discursos sobre Arquitectura” reuniu, à época, um conjunto notável de arquitectos e críticos internacionais. Como escrevi no lançamento do projecto, “a FAUP marcava assim a entrada na última década do século com uma iniciativa de grande alcance e ambição”. Para avaliar o seu impacto actual, seleccionámos um conjunto de 10 conferências e convidámos um conjunto de arquitectos e críticos para as apresentar e avaliar.
Neste texto, faço uma síntese e uma primeira reflexão sobre o acontecimento de 2010, em continuidade com o acontecimento de há 20 anos.


Tendo ocorrido em 1990, o ciclo “Discursos sobre Arquitectura” permitiu uma reavaliação dos anos 80, sob o prisma dos intervenientes, deixando algumas pistas para o que sucederia nos anos e décadas seguintes. É essencialmente delineado e organizado por uma “geração intermédia” da Escola do Porto que tem em José Paulo dos Santos o seu “embaixador”, como lhe chama Eduardo Souto de Moura na 1ª sessão de 2010. De facto, tendo estudado em Londres e estando ligado à revista 9H — “que estava a recuperar as bases do Movimento Moderno, destroçado pelo pós-modernismo”, segundo Souto de Moura —, José Paulo dos Santos tem um reconhecido papel central no ciclo de 1990.
De facto, “Discursos sobre Arquitectura” significou a tentativa de afirmação de um novo cosmopolitismo no seio da Escola do Porto, perante a já estabilizada e incontornável luz dos “dois faróis” — Távora e Siza — como lhes chama Souto de Moura. Não sendo um gesto de ruptura desta geração, pressupõe a afirmação de um espaço próprio; e refere-se a uma certa inércia da Escola do Porto desses anos.
O núcleo duro do ciclo — Jacques Herzog, Peter Zumthor e, até certo ponto, David Chipperfield — corresponde a abordagens muito seguidas nos últimos 20 anos. Nesse sentido, a revisitação em 2010 permitiu perceber a evolução recente da arquitectura portuguesa, nomeadamente na sua inclinação portuense. Não é pelo lado dos “discursos”, no sentido teórico, mas pelo prático que esta revelação ocorre. O que é importante no “discurso” de Zumthor não é tanto a crítica a uma visão ficcional ou narrativa da arquitectura, que no Porto é subentendida, mas a artesania e intensidade da sua obra.
Quando Kenneth Frampton se abstém de falar explicitamente sobre o “regionalismo crítico”, remetendo a sua abordagem teórica para a leitura da obra de Tadao Ando, perdeu-se uma oportunidade de um confronto directo entre o “discurso” anglo-saxónico e a sensibilidade do Porto.
Mas, como disse Souto de Moura na sessão inaugural, “os tempos tinham mudado... nós estávamos curiosos”. O ciclo de 90 permitiu “um certo arejo”, “um certo desassossego”, “não estávamos satisfeitos”. Segundo Carlos Machado, também do grupo de organização do evento, “um dos objectivos era promover a possibilidade de testar os limites da palavra na arquitectura: como é que as palavras podem acrescentar qualquer coisa ao mundo das formas”, e “testar os limites dessa explicação porque nem tudo pode ser explicado”. E testar, também, nas palavras de Carlos Machado, “o modo como nos relacionávamos com a arquitectura internacional”, “estabelecendo uma relação de normalidade e de paridade.”
O que é certo é que todos os conferencistas fazem referências à arquitectura e à escola da cidade. Neste momento, de facto, dá-se um encontro entre uma certa elite da arquitectura europeia e a Escola do Porto, no seu lugar, com os seus protagonistas, que são aliás chamados a apresentar as “estrelas” e os emergentes arquitectos convidados. O ciclo de 2010 que, como notou Manuel Mendes, outro dos organizadores do evento de 1990, “deixou cair” algumas conferências importantes (Yehuda Safran, Wilfried Wang, Manuel Gallego, Vítor Figueiredo) permitiu, apesar de tudo, fazer uma avaliação das afinidades e distâncias do Porto com a cultura arquitectónica da época. [www.tinyurl.com/32eoc7q]

Começando pelos portugueses, a escolha recaiu nos “dois faróis”, Fernando Távora e Álvaro Siza. Na conferência de Távora, foi notória a obsessão pela história, e a busca de uma ordem “clássica” que o afastava já do pulsar das novas gerações, mesmo se a sua personalidade não fazia desistentes. Alexandre Alves Costa encontra aí, com emoção e entusiasmo, um sentido de “resistência” que Távora sabe ocupar com erudição e com leveza: “As nuvens negras da destruição da paisagem natural e construída, produzidas pela substituição dos modos de produção, por nada que reconstrua, para ele, uma alternativa credível, transformaram a sua liberdade em obsessiva busca da ordem, da simetria, do equilíbrio clássico entre as partes, espécie de manifestação de resistência à desordem e ao seu próprio pessimismo.” [www.tinyurl.com/3x9eexg]

A conferência de Álvaro Siza, como pude sublinhar na altura, é uma demonstração da viabilidade do quadro “moral” da Escola do Porto na contemporaneidade da época. Foi por isso uma conferência de tranquilo regozijo. A sua visão delicada mas assertiva surge no regresso de Berlim e de Haia. Às críticas que qualificavam a sua arquitectura como “monótona”, Siza contrapõe aquilo a que chama “a ditadura da variedade”. Há um reconforto nas palavras de Siza, dizendo, sem soberba, que é possível continuar por aqui. No entanto, como ressalvei na apresentação da conferência, “na voz monocórdica de Siza há um colóquio de vozes a acontecer — não se deixem enganar pelo tom”. Isto é, a eficácia de Siza tinha tanto a ver com esse sentido de resistência moral, como com a capacidade de estar atento e ser permeável àquilo que está a acontecer.
Távora e Siza, não sendo o centro destes “Discursos”, são os estimáveis heróis do ciclo de 1990 porque mostravam que a Escola do Porto podia fazer sentido no plano da cultura arquitectónica da época. [www.tinyurl.com/3yyxnj9]

A conferência de David Chipperfield permitiu perceber como, sem a obsessão do desenho, da autenticidade, e do “sítio”, se podia chegar a resultados práticos muito próximos do gosto formal do Porto. A revalidação do “estilo” moderno — depuração, redução de elementos, contenção, decoro — que a obra de Chipperfield traduzia, no mundo efémero das lojas e de edifícios comerciais, permitiu desanuviar a tensão e aproximar a cultura do Porto às formas do quotidiano. Permitiu assumir um pragmatismo fora de qualquer eixo ideológico. Não é ideológica a abordagem de Chipperfield, e os resultados são praticáveis no quadro do gosto moderno: materiais crus; modo cenográfico; disponibilização do moderno para uma arquitectura do dia-a-dia. Apresentado por Jorge Carvalho, que trabalhou com Chipperfield entre 1988 e 1990, ficou patente esta relação de proximidade e de afecto entre o arquitecto inglês e, em particular, a obra de Siza. Mesmo no quadro de uma cultura arquitectónica distante da portuguesa como a de Londres. [www.tinyurl.com/35ep37v]

Kenneth Frampton apresentou um conjunto de obras de Tadao Ando. Segundo Paulo Martins Barata, que apresentou a conferência, e foi visiting scholar na Universidade de Columbia a convite de Frampton, isto deveu-se, talvez, a estar “pouco à vontade para falar no regionalismo crítico num dos epicentros dessa ideia de cultura”. Martins Barata ressalvou a importância do discurso “pré-ecológico” de Frampton na actualidade. De facto, ao escolher mostrar a obra de Ando, Frampton referiu-se ao “regionalismo crítico” de forma indirecta, dir-se-ia. No contexto, terão sido mais as questões formais da obra de Tadao Ando que impressionaram e foram replicadas. [www.tinyurl.com/38hwc5b]

A conferência de Jacques Herzog foi apresentada por João Pedro Serôdio e Nuno Brandão Costa, colaboradores no atelier do arquitecto suíço em 1991 e 1992, respectivamente. Esta colaboração acontece num momento em que o atelier de Herzog & de Meuron é ainda uma estrutura de pequena dimensão; foi por isso sublinhado aquilo que se encontrou em comum com a prática portuguesa. No plano cultural, Herzog & de Meuron são já na altura uma das saídas mais praticáveis do pós-modernismo, uma “resposta” ou “reacção”, como diz Brandão Costa, em nome daquilo a que se chamará, “vulgarmente”, “minimalismo”, e que se revelará extraordinariamente operativo nos anos 90. [www.tinyurl.com/2ukftyn]

A conferência de Peter Zumthor consistiu na leitura de um texto ilustrado por imagens de obras suas ou de objectos em associação livre. Tratou-se de uma abordagem muito programática, no sentido de uma superação dos temas fetiche do pós-modernismo nos anos 80: por uma arquitectura não narrativa, em favor da materialidade e de valores sensitivos: o olfacto; a acústica; a percepção textural. Esta conferência foi apresentada com especial empatia por Paulo Providência: “E aqui chegamos ao programa actual de Zumthor, a tal perspectiva futurante; considerando o envolvimento atmosférico das suas obras, ou a esfera de vapor a que o étimo se refere, programa para uma arquitectura futura, a obra de Zumthor surge cada vez mais centrada numa percepção corporal do espaço que incide sobre as ideias de conforto, controle térmico, de luz e textura, de proporção e escala, etc. Aquilo que procura não é mais o enraizamento numa tradição, uma recuperação da tradição técnica, ou a presença como sinal do tempo sobre o espaço urbano ou paisagem; centra-se na construção de um ambiente para o corpo, e esse meio-ambiente perfeito gera uma atmosfera que é produto também da fisis, a hora do dia, a estação do ano, a altitude, latitude e longitude.” [www.tinyurl.com/2ub2sfx]

James Stirling surgiu como uma contra-imagem no ciclo de 1990 e de 2010. Tendo mostrado alguns dos seus projectos finais, revelou uma arquitectura monumental, já um pouco em deriva, e hoje claramente datada. Stirling permitiu abrir o leque do ciclo, mas não convenceu os cépticos, na altura como agora. O percurso singular de Stirling foi caracterizado por Sergio Fernandez, que deu especial relevo à primeira fase da obra do arquitecto inglês, entre os anos 50 e final de 60. A seguir, como disse Sergio Fernandez, “a sua projecção internacional e no país de origem, foi, depois de vários concursos perdidos, adquirindo cada vez maior relevância. Museu de Stuttgart, 77, Tate Gallery, ou o Sackler Museum, em Boston, serão apenas alguns dos mais importantes projectos concretizados em obra, numa segunda fase da sua carreira. Dotado de uma invulgar capacidade criadora, como facilmente se pode verificar em todas as suas intervenções, trilhará novos caminhos, aproximando-se de concepções com carácter monumentalista que, como diz na conferência, reconhece ser tradição nos edifícios públicos, como presença e não como estilo ou dimensão.” [www.tinyurl.com/354ob36]

Na conferência de Bernardo Secchi pudemos observar um engenheiro a falar com a linguagem dos arquitectos, e esse conforto foi reconhecido na altura como agora. A apresentação de Secchi coube a Nuno Portas que fez um historial sintético das relações do teórico italiano com o contexto português. Fora da lógica arquitectónica do conjunto do ciclo, Secchi permitiu rever uma abordagem do urbanismo que é culta, sensível e, de facto, próxima das preocupações e linguagem dos arquitectos. Portas elencou, a propósito, aquilo que considera ser as principais contribuições teórico-práticas de Secchi: “a tentativa de resolver a oposição entre plano e projecto”, “o que continua a ser válido discutir”; aquilo que chama o “projecto do chão” — “o plano é o projecto do chão e não tanto a edificação.” E ainda a ideia que “a cidade está em reciclagem permanente — incluindo o centro histórico.” [www.tinyurl.com/37gg6au]

A revisitação da conferência de Giorgio Grassi permitiu repensar uma das figuras mais presentes de uma certa Escola do Porto. Sendo uma obra e um personagem distante nos dias líquidos que correm, o compromisso moral de Grassi teve ressonância numa certa Escola, mas nos anos 90 passou a ser cada vez mais marginal. Enquanto Rossi se “perdeu” na América, Grassi permaneceu como a face mais austera do neo-racionalismo, e isso foi importante para quem acalentava uma visão “disciplinar” da arquitectura. Os desenhos fortes, dramáticos, terminais, que apresentou são ainda hoje — ou, talvez, hoje mais do que nunca — impressionantes. A apresentação de Francisco Barata permitiu perceber a metodologia projectual de Grassi, o seu permanente reenvio para a história da cidade e do contexto, numa permanente crítica dos processos oitocentistas de reformulação viária; “sempre muito crítico da necessidade de fazer novo, de estar sempre a inventar.” Francisco Barata fala por isso de um entendimento da “arquitectura como missão”; a génese do projecto como “comentário histórico” ou “juízo sobre os lugares”, que vê reflectidas na abordagem de arquitectos portugueses como “Távora, Siza, Alves Costa ou Sergio Fernandez.” [www.tinyurl.com/39gu6m2]

A apresentação de Gonçalo Byrne da conferência de Rafael Moneo ressalvou as qualidades teóricas do arquitecto espanhol, relembrando alguns dos seus ensaios mais antigos e sublinhando a capacidade demonstrada de ser arquitecto e ser crítico. Segundo Byrne, Moneo é o “representante de uma cultura ligada a um momento histórico em Espanha”, em que “aparece o Venturi” e se “abre uma estrada mais ecléctica”. Da conferência, Byrne sublinha a linguagem corporal de Moneo, “uma explicação muito vivida e muito sofrida”, reflectindo uma actividade de projecto e uma actividade crítica que é “um caso singular da reflexão europeia”. Citando o livro de Moneo que compila as lições de Harvard, Byrne fala de uma “reflexão sobre inquietudes”. Esta dimensão de inquirição e dúvida estaria sempre presente na obra de Moneo, teórica ou prática. [www.tinyurl.com/33bkbcs]

Com esta “suspensão” de Moneo, entre a teoria e a prática, o ciclo encerrou.
No debate de encerramento participaram, para lá de Gonçalo Byrne, Nuno Grande e Luís Santiago Baptista. Segundo Nuno Grande, o ciclo de 1990 corresponde a um momento em que deixa de haver “concepções grupais ou ideológicas” na arquitectura, e esta se “estilhaça” em “expressões individuais”, que fundariam aquilo a que se chamará “star-system”. Para Santiago Baptista, no ciclo de 1990 há ainda um “centramento no projecto arquitectónico como elemento central da arquitectura” que os anos 90 vão refutar, surgindo “com grande impacto na teoria e crítica da arquitectura, estudos que se começam a afastar do objecto e do projecto arquitectónico.” [www.tinyurl.com/2usyg65]

De facto, as expressões individuais e a teoria para lá do projecto, fazem parte da história dos últimos 20 anos. Dir-se-ia ainda que o desenho, na sua expressão mais oficinal ou intuitiva, foi sendo trocado pelo computador; que o urbanismo sobrevive com dificuldade; que a monumentalidade clássica, seja a “verdadeira” de Távora, seja a efabulada de Stirling, também.
No caso de Herzog & de Meuron, a artesania e o ofício foi sendo trocado pelos apelos da globalização. A não-imagem e a não-narrativa de Zumthor criaram imensas imagens e narrativas à volta do seu autor, como seria inevitável.
Os casos mais excêntricos de Stirling e de Grassi são, de um certo ponto de vista, os momentos mais memoráveis do ciclo: porque mostram arquitecturas desconcertantes e anacrónicas; quase delírios na sua racionalidade exacerbada (Grassi) ou monumentalidade em deriva (Stirling).
Mas, no essencial, procurou-se aquilo que se queria encontrar. O apego do Porto ao rigor construtivo ligado à severidade formal, um certo despojamento que continua a passar como sinal de moralidade na arquitectura, pôde reencontrar-se e ser estimulado no ciclo de 1990. Talvez se possa dizer, por isso, que os “Discursos sobre Arquitectura” serviram para comprovar aquilo que já se sabia ou intuía, mais do que para abrir novos caminhos. Mas também aí este conjunto de conferências permite perceber boa parte da evolução da arquitectura portuguesa nos últimos 20 anos: a pacificação com a arquitectura moderna depois do susto de 80.
Os próximos 20 anos serão diferentes, espera-se: com menos medo.


Jorge Figueira
Arquitecto. Doutorado em Arquitectura, especialidade Teoria e História, pela Universidade de Coimbra (2009), onde lecciona. É investigador do Centro de Estudos Sociais. É professor convidado no Programa de Doutoramento em Arquitectura no Porto. Foi comissário de exposições como “Álvaro Siza, Modern Redux”, São Paulo (2008). Publicou vários livros, de que se destaca “A noite em Arquitectura” (2007), e artigos em revistas da especialidade em Portugal e no estrangeiro.


NOTAS
(1) Carlos Machado, Eduardo Souto de Moura, João Pedro Serôdio, José Bernardo Távora, José Paulo dos Santos, Manuel Mendes.

A TV.UP [www.tv.up.pt], no âmbito do apoio ao ciclo “Discursos (Re)visitados”, disponibiliza, online, as apresentações que antecederam as projecções.