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EM VÃO: FECHA-SE UMA PORTA PARA QUE UMA JANELA FENOMENOLÓGICA SE ABRA
MADALENA FOLGADO
Abracadabra.
Palavra mágica, usada como forma de encantamento para afastar a doença.
Este texto reflete. Suspendo a predicação, precisamente, para poder refletir. Para, como refere Byung-Chul Han, me encontrar com o que não é idêntico, e/ou que pense de maneira idêntica; libertar-me do “anel interminável do eu” [1]. O anelo é portanto outro: é o Outro. Eis o desejado predicado: “O outro como mistério, o outro como sedução, o outro como eros, o outro como desejo, o outro como dor [que] estão a desaparecer. Hoje a negatividade do outro cede lugar à positividade do idêntico” [2] – Assim inicia o filósofo sul-coreano a sua obra A Expulsão do Outro.
Ter uma experiência – creio – é no entanto diverso. É, por exemplo, poder conjugar o sujeito na primeira pessoa do singular, e interpolar os reflexos do Tejo aqui tão próximos, ou até mesmo o meu reflexo numa janela muito singular. Este texto reflete sobre e sob a experiência do Tejo, reflete a arquitetura enquanto enquadramento do movimento contínuo de relação entre os diferentes espaços da vida. Numa outra obra, o mesmo autor fala-nos da importância dos rituais, enquanto arquiteturas temporais que estruturam a vida, e favorecem o transcender do eu narcísico [3]. Aqui referimo-nos ao ritual de contemplar a barra do Tejo, lugar de partidas e chegadas, porto de abrigo para o Outro.
A chamada de Byung-Chul Han ao texto deve-se ao facto de ser um dos autores contemporâneos com os quais me encontrei que mais reflete sobre o valor da alteridade – ou de como a alteridade gera afetivamente valor. Não enquanto processo de colonização encoberto; um outro-eu tacitamente autorizado, que chega e nos invade satisfazendo o nosso gosto, ou até que nos engorda com gostos. A disposição para o encontro neste enquadramento, é favorecida pela janela-ecrã, esta mesmo onde nos encontramos aqui e agora. É preciso por isso estar bem acordado: “A proliferação do idêntico não é cancerosa, mas comatosa. Não depara com qualquer defesa imunológica. O sujeito fica aturdido a olhar o ecrã, até perder a consciência.” [4] O mesmo, segundo o autor, é distinto do idêntico, na medida em que apenas se pode dizer o mesmo quando a diferença é previamente reconhecida. [5]
Confesso que não sei se já gosto do projeto do arquitetura sobre o qual, a saber, já estou a discorrer. Sei que uma obra de arte pode criar gostos, mas não os satisfaz. E, posso afirmar com certeza que esta obra me conduziu a uma experiência, aqui entendida enquanto “negatividade do outro e da transformação” [6]. Tornei-me mais consciente do poder opressivo da positividade das imagens – inclusive, das de arquitetura, do que pode ser ver para além do visível, uma vez que o visível pode estar colonizado. Circunstâncias académicas fizeram com que esta obra do arquiteto Manuel Tainha, a Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA), no Cais do Sodré, em Lisboa, constituísse um estudo de caso. Nos seus escritos, que lhe valeram prémios como o da AICA ou Jean Tschumi encontrei sempre ressonância, assim como em uma grande parte da sua obra construída, no entanto, não por serem fáceis.
O não gostar do edifício da EMSA, combinado com a tarefa de investigação a que me autopropunha determinou a dose precisa de desconforto, para o re-descobrimento do olhar; o olhar enquanto expansão de uma consciência que se abre para o desconhecido que uma investigação é. O edifício localiza-se precisamente numa parcela da zona ribeirinha, onde D. Manuel I pode reunir os seus colaboradores mais próximos da sua empresa de expansão marítima [7], após ter de certo modo marcado a abertura de Lisboa ao Tejo, transferindo o Paço, a residência real, para junto do mesmo [8]. A investigação tornou-se a cada instante uma co-incidência.
Por esta ocasião, descobri a constelação enquanto acontecimento figurativo do Ser; no meu atravessar diário do Tejo, fui-me familiarizando com este Outro que agora me acontecia. Comecei então a me apaixonar, afinal era tudo uma questão de ponto de vista, percebi que somos o mesmo na nossa diferença. Olhava-o e ele olhava-me de volta, como ambas as margens, uma à Outra. Assim me descobri ponte, i.e., lugar [9], através das ondas mnésicas, desencadeadas pelo magnetismo do tal “outro como mistério”, propiciadas pela investigação em per-curso. Do movimento que é a travessia – da qual fiz e ainda faço quase diariamente um ritual – descobri-lhe reminiscências do Palácio Corte-Real: o seu ritualístico gesto de acolhimento; os seus dois braços – alas – recebiam no seu jardim virado ao Tejo quem atracava no seu pequeno embarcadouro. Palácio este desaparecido com o Terramoto de 1755, e que fora desenhado por Filippo Terzi a par do Paço Real.
A carga explosiva do passado, por conter uma dimensão salvífica, sempre encontra com precisão o olhar que torna possível o seu re-conhecimento numa constelação de imagens. [10] Os processos criativos ocorrem via anacrónica; i.e., temporalidades distintas agem em consonância [11]: Percebemos então que algo quer ser reparado, em duplo sentido; revisto e recuperado. Este acontecimento é sempre arrebatador, pois marca a encruzilhada do individual com o coletivo. Estas imagens pré Terramoto e a do cargueiro inglês Tollan que se afundara no Tejo a 16 de Fevereiro de 1980, e vitimara quatro dos seus 20 tripulantes [12], formaram uma constelação com as imagens colhidas pelo meu olhar sobre a EMSA.
O olhar abriu-se para o oceano de possibilidades fenomenológicas. O que vemos é afinal apenas o limite. Qualquer obra de arte – ou a sua teia de relações constituintes, modo pelo qual fui capturada por esta obra arquitetónica –, por excelência ao serviço da alteridade, é o enquadramento para que possamos ver de olhos abertos, o que em sonhos vemos de olhos fechados. Ou ainda, tudo o que não vemos quando tolhidos pelo que acreditamos – o Outro é neste ponto o sinal vital de transformação; do crer em renovado ver. Se formos cada vez mais conscientes que o que vemos em certos ecrãs nos cega, talvez essa cegueira não seja em vão. Em arquitetura chama-se vão a uma janela. Uma obra arquitetónica desdobra-se num lugar para um lugar ver, entendendo um lugar como a combinação de memória e espaço, quando a espacialidade gerada pela nossa permanência transcende os limites físicos do que, por exemplo, uma simples janela circunscreve.
E o que é precisamente a EMSA? A EMSA é uma agência descentralizada da União Europeia. Porventura pela expressão significativa do mar na nossa cultura, a Comissão Europeia elegeu Lisboa para o acolhimento desta sua agência, cuja especialização abrange um conjunto de funções diretamente ligadas ao controlo da costa europeia. Poder-se-ia dizer, caricaturando, que a sua vigilância tem um pouco de Big Brother. Tem por missão a implementação de recursos com o objetivo de reduzir o número de acidentes marítimos, poluição marinha e perda de vidas humanas no mar. Os desastres dos navios Erika em 1999, na costa da Bretanha, e Prestige em 2002, na costa galega, dos quais resultaram perdas ambientais e económicas expressivas, foram decisivos na criação e implementação de medidas eficientes, no sentido de prevenir futuras catástrofes. [13]
É neste sentido que a memória do cargueiro afundado Tollan emerge das profundezas. Se a memória do Palácio submergido, emergiu do encontro com uma gravura pré Terramoto, logo após uma travessia do Tejo. A do Tollan decorreu de uma sugestão, que literalmente ganhou corpo com a investigação [14]. O centro de conferências da EMSA é um corpo alongado com um revestimento vermelho, paralelo ao corpo branco principal, por onde se acede ao interior da EMSA, em constelação com a imagem do casco virado do cargueiro, apelidado outrora de baleia vermelha, e que ali permaneceu ao largo, local exato do seu abalroamento com o navio sueco Barraduna, durante quase três anos, tornando-se um fenómeno contemplativo. Várias foram as tentativas em vão para a sua remoção; pessoas de toda a parte e em romaria chegavam para o ver, e especular sobre o seu conteúdo, principalmente nos dias agendados para o seu salvamento, [15]. Talvez por isso, a imagem deste evento, que comporta muito naturalmente um pathos, comporte também a tal carga salvífica do passado; i.e., lhe queira fazer justiça. É resgatado dia 12 de Dezembro de 1983, sem público, quando já ninguém esperava [16]. Ou terá sido expulso, como o Outro? Ressalvo que nenhuma destas imagens foi em relação com este projeto mencionada pelo arquiteto Manuel Tainha em vida.
Tive a oportunidade de em condições absolutamente excecionais e irrepetíveis, uma vez que se trata de um edifício de alta segurança, visitar a EMSA em 2012, ano da morte do seu arquiteto e sem o conhecer. Passados dez anos, e depois de ter prometido não mais falar desta obra arquitetónica, ela ressurge. Ainda hoje tenho presente a imagem do homem que contemplava o Tejo, no grande vão, que surgia como um grande ecrã, a partir do interior do centro de conferências (a primeira imagem do presente texto). Imaginei-o o grande tema da agenda da EMSA. O edifício provia no exterior um espaço púbico, de acolhimento. O seu desenho evocava o também o Forte do Corpo Santo, que se localizara à direita do Palácio Corte Real. O homem sentindo-se protegido, mas vigilante, encostava-se a algo que evocava um dos seus contrafortes; via e era visto pela Europa.
Curiosa, e corroborando a constelação com o Tollan, do ponto de vista da experiência do corpo no espaço, é também a negatividade desta sala oval: Está abaixo do nível do Rio; entre o uterino e o afundado. Para minha surpresa, foi pedida e colocada uma peça metálica no exterior, no lugar onde o homem estava sentado. Esta peça, inclinada, faz com que o Outro escorregue…Prevê, literalmente, a Expulsão do Outro. “Hoje, o mundo é muito pobre em olhares. Raramente nos sentimos olhados ou expostos a um olhar. O mundo apresenta-se como prazer visual que empreende agradar-nos. Do mesmo modo, tão pouco ecrã visual tem o caracter desse olhar. O Windows é uma janela sem olhar. Protege-nos precisamente do olhar”. [17]
Esta janela da EMSA tornou-se então ainda mais ecrã: uma janela sem olhar. Uma mera superfície de reflexão, polida, que não oferece resistência, como os ecrãs dos nossos mais recentes dispositivos, ditos tácteis. Melhor: tão polida que escorregamos se nela o nosso olhar se fizer corpóreo e ali intentar permanecer. Este pequeno espaço está por isso pichado, falicamente, com tags vários. Na tentativa de penetrar o desconhecido, também muitas investigações académicas se autoreduzem a termos cunhados. Não será este um sintoma do nosso tempo, em termos lacanianos, com diferentes expressões? Os navios afundam-se, e como no mito de Narciso os homens afogam-se na sua imagem, no tal anel interminável do eu. O mesmo que dizer com Camões: água do mar em tão pequeno vaso. Deste naufrágio não pode a EMSA nos proteger. Precisamos de abrir janelas fenomenológicas para o alter-nativo – aprofundarmo-nos no que realmente se passa ao nosso redor, para não nos afundarmos em tão pequeno vaso, plantemos em pequenos vasos belos narcisos amarelos. E, digamos então a esse Outro: Eu vejo-te – despertemo-lo.
Na sua missão, com contornos de absurdo, de observar as “coisas do lado de fora”, também a personagem fictícia do romance de Italo Calvino, Palomar, descobre que “O mundo observa o mundo”. Questiona-se quanto ao modo como se pode observar as coisas deixando de lado o eu, e de quem serão então os olhos que olham. Descobre que fora de uma janela está “Ainda e sempre o mundo, que nesta ocasião se desdobrou em mundo que olha o mundo que é olhado”. Mas, também, que o mundo precisa dos seus olhos e óculos. Atenda-se ao seguinte excerto, no fundo um outro modo de des-cobrimentos:
Da muda extensão das coisas deve partir um sinal, um apelo, uma piscadela de olho: uma coisa sobressai por entre as outras com a intenção de significar alguma coisa…que coisa? Ela mesma; uma coisa está contente por ser olhada pelas outras coisas apenas quanto está convencida de que se significa a si própria e a nada mais, no meio das coisas que se significam a si próprias e nada mais.
As ocasiões deste género não são frequentes, mas mais tarde ou mais cedo deverão com certeza apresentar-se: basta esperar que se verifique uma daquelas felizes coincidências em que o mundo quer olhar e ser olhado no mesmíssimo instante e o senhor Palomar se encontre ali por perto. Ou seja, o senhor Palomar não deve sequer esperar, porque estas coisas acontecem quando menos se espera. [18]
Também o Tollan nos deixou numa ocasião inesperada. Precisa agora de novos olhares para aparecer enquanto aparição – Olhares disponíveis para se enamorarem do Outro, o mesmo que dizer, se demorem e morem no Outro e vice-versa. Manuel Tainha citou este poema várias vezes nos seus escritos, note-se, de um poeta anónimo: “Pour être auprés de ma blonde / Je donnerais Versailles, Paris e St. Dennis / Le tours de Nôtre Dame / Le clocher de mom Pays." [19]. Referia-se, de modo indireto, a essas afinidades que criamos com as coisas, em particular com a arquitetura, de tal modo que as poderíamos elevar ao estatuto de objetos sacrificiais, por um bem ainda maior. Porém, vivemos tempos em que se permanecermos aturdidos, os próprios rituais tendem a desaparecer. Uma coisa é certa: Para estar ao pé desse Outro, daria eu também esta janela da EMSA.
Madalena Folgado
É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes.
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Notas
[1] Byung-Chul Han, A Expulsão do Outro, Lisboa, Relógio D'Água, 2018, p. 11.
[2] Ibid, p. 9.
[3] Cf. Byung-Chul Han, Do Desaparecimento dos Rituais, Relógio D'Água, 2020.
[4] Byung-Chul Han, op. cit. 2018, p. 10.
[5] Ibid. pp. 10, 11.
[6] Ibid. p. 11.
[7] Hélder Carita, Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte, 1999, p. 91.
[8] Carlos Caetano, A Ribeira de Lisboa na época da expansão portuguesa (séculos XV a XVIII), Lisboa, Pandora, 2004, p. 132.
[9] Martin Heidegger, “Construir, Habitar, Pensar”, in Martin Heidegger, Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2012, p. 133.
[10] António Guerreiro, O demónio das imagens, S.l., Língua Morta, 2018, p. 118.
[11] Georges Didi-Huberman, Diante do tempo: História de arte e o anacronismo das imagens. Lisboa, Orfeu Negro, 2017, p.156.
[12] Rui Ochoa, "16 de Fevereiro de 1980, 'Tollan', o misterioso", in Revista Única, Paço de Arcos, suplemento do Jornal Expresso, 31 de Janeiro de 2009, p. 78.
[13] European Maritime Safety Agency, European Maritime Safety Agency, in http://www.emsa.europa.eu/, consultado a 5 de Agosto 2012.
[14] Por sugestão do meu orientador de mestrado, que se recordara no instante em que lhe mostrava algumas fotografias do exterior, de vários passeios que fizera junto ao rio durante a infância, para ver o Tollan.
[15] Rui Ochoa, op. cit., p. 78.
[16] Idem.
[17] Byung-Chul Han, op. cit. 2018, p. 60.
[18] Italo Calvino, Palomar, Lisboa, Planeta DeAgostini, 2001, pp. 118, 119
[19] Manuel Tainha, Manuel Tainha, textos de Arquitectos, Casal de Cambra: Caleidoscópio, p. 16.