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FORA DA CIDADE. ARTE E LUGAR
LAURA CASTRO
As três intervenções permanentes de arte contemporânea na paisagem, instaladas neste ano de 2020, no distrito de Castelo Branco, pertencem a um dos poucos projectos artísticos em territórios rurais e localidades de pequena dimensão que têm vindo a ser promovidos em Portugal, onde estas iniciativas têm ainda pouca expressão. Adquirem por vezes, como neste caso aconteceu, nomes vinculados ao território e ao património regional. Rota da Cortiçada evoca a exploração da cortiça, uma das actividades económicas importantes da área.
Três intervenções inauguram a Rota, assinadas pelo colectivo MAG (Sofia Marques de Aguiar, Marta Aguiar e Mariana Costa), colectivo recente, formado no Porto, que apenas nos últimos anos desenvolve projectos conjuntos, e que revela a participação crescente de arquitectos nas propostas de arte pública e de arte na paisagem. Este colectivo recorre ao nome do arquitecto e urbanista Manuel Marques de Aguiar (1927-2015) que desenvolveu uma prática atenta à negociação e à apropriação social como componentes do projecto que levassem ao sentido de pertença. O Museu de Serralves dedicou-lhe uma exposição em 2018.
A concepção das três intervenções parte de uma observação e de um estudo cuidado do território, da sua morfologia, das suas particularidades geológicas e geográficas, dos modos de ocupação humana e da função dos lugares, como lugares de percurso ou de estar, de transição ou de consolidação, de limite estável ou de fronteira instável. Não é gratuita esta referência ao território porque o projecto é enquadrado pela parceria intermunicipal do Programa de Revitalização do Pinhal Interior - Programa de Desenvolvimento Cultural do Território, no distrito de Castelo Branco.
A Rota de intervenções artísticas – três inauguradas nos últimos dias de Julho e primeiro de Agosto – é parte de um projecto mais vasto que inclui oficinas, concertos, um concurso, actividades no Centro Ciência Viva de Proença-a-Nova e que levará trabalhos à Exposição “Terras do Fogo” do Festival de Outono, em Serralves. Este ano apenas parte do programa será implementado e outras duas intervenções artísticas da Rota, já projectadas e com localização identificada, serão instaladas em 2021. O programa, apoiado pela DGArtes, é definido como “um festival de experiências artísticas na paisagem […] de promoção e dinamização da coesão social”. Enquanto as obras de arte foram concebidas e produzidas pelo colectivo MAG, os conteúdos dos eventos e da divulgação são definidos por MAG em estreita colaboração com os municípios, as associações e as instituições regionais que os implementam. O diálogo com diferentes interlocutores explica as sucessivas deslocações e estadias da artista e das duas arquitectas de MAG ao território do projecto.
Do ponto de vista da metodologia, esta presença regular, sem configurar uma residência, foi fundamental. No que toca à relação com as comunidades, estes projectos oscilam entre o alheamento, o conhecimento e a cumplicidade, com a respectiva gradação de interesses e expectativas. A primeira possibilidade, do alheamento, é mais conservadora e estável, mas mais arriscada do ponto de vista da recepção social dos objectos criados. A Rota da Cortiçada orientou-se pela segunda, do conhecimento, através de contactos com as populações, de pesquisas do património – lendas, festas, gastronomia, profissões – e dos modos de sentir os lugares – crenças, medos e imaginações.
As propostas têm carácter objectual, o que deixa antever uma manutenção exigente e a necessidade da monitorização do comportamento de cada obra. Dos estudos de caso conhecidos, sabemos que este acompanhamento é eficaz se envolver a população local, o que deve acontecer preferencialmente a montante, quando estão em preparação os projectos e quando conseguem mobilizar contributos externos. Ainda que não tenha existido qualquer colaboração directa na fase projectual, as autoras afirmam que procuraram objectos estéticos movidos pelos estímulos do meio e que recusaram indícios de qualquer personalidade artística ou idiossincrasias.
Foi reunida documentação criteriosa e exaustiva sobre as intervenções. Há memórias descritivas, especificações técnicas de montagem, registos fotográficos e vídeo, mas também conversas e entrevistas a habitantes, negociação com associações e municípios. Por outro lado, no período que antecedeu e coincidiu com a instalação dos trabalhos, tiveram lugar conversas online, transmitidas em streaming, com testemunhos, impressões e memórias. Outros profissionais foram chamados a pronunciar-se sobre o projecto em entrevistas disponíveis online.
A difícil escolha da localização das obras, feita em colaboração com as autoridades locais, considerou as particularidades paisagísticas, a força da história ou as narrativas ancestrais de mitificação dos lugares. Recaiu sobre Oleiros (no Lugar da Torna, na Ribeira de Oleiros), Proença-a-Nova (no lugar da Buraca da Moura, na Serra das Talhadas) e Sertã (no Parque da Carvalha). As obras intitulam-se Moon Gate (Oleiros), Véu (Sertã) e Farol dos Ventos (Proença-a-Nova) e optam por soluções de contraste, seja pelos materiais utilizados, seja pela cor dominante, seja pela forma. Não há qualquer tentativa de diluir as intervenções no quadro paisagístico ou de acentuar subtilmente o que lá existia, pelo contrário, inscrevem no existente uma marca poderosa. Introduzem novas sinalizações que, ao atraírem o olhar sobre si próprias, convidam a olhar a envolvente. Em caso algum, as obras cedem à vivência do bosque nas margens da ribeira de Oleiros, à robustez da ponte filipina da Sertã ou à imponência da Serra das Talhadas, não se subjugam à paisagem, confrontam-na, de igual para igual.
A visibilidade das três intervenções emerge das aproximações permitidas e dos afastamentos exigidos pelo território. Todas, ou não fosse natural o seu contexto, são alteradas sob os efeitos da luz, duas produzem reflexos e espelhamentos, opacidades e transparências e, por isso, são descobertas e redescobertas, vistas e reconstruídas a cada olhar. Há certamente a incorporação de dados locais, que repesco das memórias descritivas: a cor âmbar de Moon Gate e os elementos ferrosos das rochas; a superfície metálica de Véu e a superfície da água, fonte de reflexos; a rotação dos cabos coloridos de Farol dos Ventos e o movimento das aves da montanha.
Termos como reapropriação do território pela comunidade, humanização ou reversão da desertificação surgem nas memórias descritivas e geram um paralelismo entre este projecto e outros processos de utilização da arte como veículo de reabilitação territorial e comunitária.
De forma simplificada, podemos dizer que a presença de obras de arte em espaços ao ar livre se filia em dois eixos fundamentais de desenvolvimento. O primeiro, associado à dimensão humanista que via na contemplação e na proximidade da arte uma possibilidade de recuperação emocional e social. No espaço urbano, em parques e na paisagem, a arte foi entendida como manifestação de confiança na humanidade e contributo para um mundo mais justo e livre. O segundo, associado à dinâmica de reclamação do território movida pelas questões ambientais. Um e outro apelam a usos instrumentais da arte: no primeiro, a escultura pública serve um modelo humanizado de organização do espaço; no segundo, a arte ocupa áreas negligenciadas e excluídas do ordenamento funcional do território.
É seguramente a marca humana implicada na arte que, em tempos de pós-humanismo, continua a justificar estas recorrências de regeneração, sempre que fenómenos de diversa ordem alteram o equilíbrio estabelecido. O pretexto imediato para as obras da Rota da Cortiçada e as actividades do festival que as enquadra foi a vaga de incêndios que ocorreu em 2017. As três obras do Pinhal Interior não sugerem qualquer hierarquia ou superioridade face à paisagem e, ainda que a provoquem, tornam-se parte dela. Será a intervenção artística um contributo para repor equilíbrios humanos e territoriais? A incógnita persiste e são projectos como estes que a alimentam.
Laura Castro
Professora na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. Investigadora e do Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da mesma Escola. Entre o início da década de 90 e 2006 trabalhou no sector cultural. Escreve sobre arte moderna e contemporânea; museologia; arte, natureza e paisagem; arte pública.
É membro da APHA (Associação Portuguesa de Historiadores de Arte) e da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte), e presidente da direcção do Círculo de Cultura Teatral / Teatro Experimental do Porto.