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'A REALIDADE NÃO É UM DESENCANTO'
LÚCIA VALDEVINO
Onde o mestre pedreiro pousou o cinzel, Carla Varela Fernandes pegou na caneta para nos desvendar as histórias dos Santos, Heróis e Monstros que vivem no claustro da abadia de Santa Maria de Celas. Em entrevista, a autora da recém publicada monografia sobre este monumento medieval, explica a sua singularidade no património português enquanto nos faz viajar até ao tempo em que o sagrado convivia, lado a lado, com o mais profano da vida. Este é um livro escrito tanto para historiadores como para o público em geral. Ao mesmo tempo que prova que a História da Arte é um exercício cumulativo e contínuo, escrito a várias mãos, aborda iconografias e narrativas que fazem parte de Portugal desde a fundação da nacionalidade.
O fascínio pela Idade Média alimentou um repertório secular de lendas e histórias que ainda hoje constitui fonte de inspiração para a literatura, para o teatro e para o cinema. O tempo dos castelos e das pontes inclinadas, dos príncipes e das princesas, e das histórias de amor, guerra e traição, não deixaram Carla Varela Fernandes indiferente e foi na faculdade que esta época a escolheu, “concretamente numa aula de cultura e mentalidades da Idade Média dada pelo professor Hermenegildo Fernandes”. Se “as imagens enchem a nossa mente e isso leva-nos a gostar”, podem levar também a pensar e a concluir que a realidade supera a ficção porque “a Idade Média é uma impostura, como alguém disse há muitos anos atrás. É uma impostura classificar mil anos de história com um único nome. E é uma impostura imaginar que quem viveu no século V tem alguma coisa a ver com quem viveu no século XV. São realidades tão diferentes, que esse mundo a que chamamos Idade Média, que engloba esses séculos todos, é muito diferente entre ele”. A diversidade que vai do mundo dos Vikings ao mundo urbano dos mercadores e da construção das catedrais, descobriu-a a ler um livro de Jacques Le Goff, Os intelectuais da Idade Média: “não dormi nessa noite porque qualquer coisa me despertou. Estava a ler sobre o abade Suger e São Bernardo, sobre as disputas entre uns e outros, e sobre Abelardo e Heloísa, uma história de amor entre dois intelectuais incríveis”. Deu-se um “acelerar do coração” que se transformou numa paixão para a vida. Vinte anos depois, esta relação entre investigadora, documentação, obra e cultura visual, vive das interpelações constantes que é o “desafio enorme” de descobrir os segredos que o passado tem para contar.
LV: O desafio, enquanto historiadora, é esclarecer essa impostura, esses mitos sobre a Idade Média?
CVF: Sim. Às vezes parece que vamos dizer às pessoas que não há Pai Natal, e que vão ficar muito tristes e zangadas connosco. Mas eu tenho sempre o cuidado de dizer que a realidade das histórias é tão viva e tão intensa que ultrapassa, quase sempre, o fascínio que tem a invenção. E que viver com a realidade pode ser absolutamente fascinante. Basta lembrar uma outra história portuguesa, dos amores de Pedro e Inês: aquele amor trágico, o assassinato, a vingança e a guerra. Isso é material vivo de algo que poderia ter sido inventado por Shakespeare e que tanto resultado deu no século XVI para outras personagens. Por isso, a realidade não é um desencanto. Não é o facto de não trazermos para um livro as figuras dos dragões ou das harpias que vai tornar a Idade Média mais ou menos fascinante. Isso é uma pimenta, e que também faz sentido. Os homens da Idade Média, como os da época moderna, acreditavam que essas criaturas - que tanto sucesso fazem em séries como A Guerra dos Tronos e que muito fizeram pelo aumento do interesse por esta época - existiam. Para um homem do século XI ou XII, ou anterior, é lógico que essas criaturas existiam porque faziam parte do seu imaginário - só no século XIX se deixou de acreditar em unicórnios! Se olharmos para a iconografia medieval, vemos que a Idade Média representa os animais que existem, que o homem medieval conhece e com os quais convive, e aqueles que imagina que existem. Harpias, centauros, grifos, unicórnios, aparecem ao lado do cão e do tigre… porque eles acreditam que existem. Não os viram, mas é possível de virem a encontrar.
LV: E esta arca de Noé medieval está toda presente no claustro da Abadia de Santa Maria de Celas?
CVF: Está toda neste claustro porque corresponde às convicções dos homens e das mulheres desta época e os artistas respondem a isso. Enquanto parte obreira daquilo que é a mentalidade da época, os artistas têm de transformar em algo visual, e cativante, aquilo que está na mente dos homens do seu tempo. Contar histórias da maneira que contamos hoje nos filmes ou em livros, que apetece ver ou ler, também tinha de acontecer na Idade Média. Por isso representam-se os dragões com o ar mais assustador possível, e os santos com o ar mais bonzinho possível - que depois são comidos ou devorados ou maltratados de maneiras terríveis - para que aquilo seja, de facto, muito impactante. Hoje é muito fácil ir ao cinema e vemos televisão a toda a hora, mas nessa época não. Portanto, aquilo que era representado em escultura, em pintura ou em ourivesaria, nas chamadas artes figurativas, é aquilo a que as pessoas tinham acesso e aquilo em que acreditavam.
LV: Porquê dedicar uma monografia a este claustro? O que o torna único?
CVF: Várias coisas. A primeira é o facto de, em Portugal, ser o único claustro com capitéis historiados que chegou até nós - não foi o único construído na Idade Média porque sabemos, pela documentação, que havia pelo menos mais um com capitéis narrativos. Mas este foi o único que sobreviveu e isso é muito raro. Não é raro, por exemplo, em Espanha. Como só temos um, temos de o valorizar; o que não tem acontecido e era a minha tristeza. Daí merecer um estudo em que todos os capitéis fossem fotografados - contei com fotografias de José Pessoa e Sergy Scheblykin e com desenhos da Joana Santana - e que fosse também traduzido para uma outra língua para que chegasse a mais pessoas. Este claustro também faz parte de um grupo que, apesar de ser Românico tardio - tardio se pensarmos que os temas representados são idênticos, em muitas situações, a outros muito anteriores dos séculos XI e XII -, é de uma época a que, artisticamente, chamamos de Gótico. Podemos dizer que o claustro é Gótico, mas em data, porque ele ainda traz consigo a maneira de fazer, o pensamento, a mentalidade, o gosto e a iconografia do Românico dos séculos XI, XII e inícios do XIII (no máximo). Em Portugal, e não só, o Românico vai até muito tarde. Estamos sempre a dizer que Portugal está na cauda da Europa mas, na Idade Média, isso não corresponde à realidade - e é muito importante sublinhar isto. E em termos artísticos também não - o Gótico também só entra muito tardiamente em Inglaterra e na Alemanha. É, na minha opinião, e não só, uma opção de preservar um gosto e uma linguagem estética que corresponde ao tempo áureo da criação da nacionalidade. O século XII é muito importante em toda a Europa e Portugal não está fora disso. É o tempo da formação de Portugal, de Afonso Henriques, de Sancho I, dos grandes reis até D. Dinis, quando se definem as fronteiras. É muito importante marcar isso, daí as nossas catedrais medievais serem praticamente todas românicas. Até a Catedral de Évora e a de Silves, que são as mais tardias, respeitam essa herança.
Esta claustro é feito numa igreja que começou a ser construída no início do século XIII. Nasce da vontade da princesa D. Sancha, uma das filhas do rei D. Sancho I e neta de D. Afonso Henriques, que, juntamente com as suas irmãs Mafalda e Teresa, vão fundar ou refundar mosteiros e abadias, pedindo ao Papa o direito de adoptarem a observância cisterciense, ou seja, a Ordem de Cister. Foi a ordem que o fundador da nação escolheu para Alcobaça - o que também estava a acontecer noutros países, sobretudo nos reinos peninsulares. D. Afonso Henriques fez o que os seus contemporâneos também fizeram. E ele é filho de um francês, ainda é francês, e esta ordem é francesa. Por isso é natural que Cister, como ordem da nobreza, tenha tanta importância. Muitos destes mosteiros têm fundação real e por isso há essa ligação entre a grande nobreza e Cister: Lorvão, Arouca e Celas, das três filhas de Sancho I, não começaram por ser desta ordem mas passaram a sê-lo.
LV: A fundação da abadia é da princesa D. Sancha, mas o claustro tem outra história.
CVF: O tempo da construção da abadia terá começado por volta de 1221, 1223 - segundo a datação que a Prof.ª Rosário Morujão identificou, e bem, na sua tese de doutoramento. É verdade que tinha de haver um espaço que servisse de claustro, mas de certeza que não é este que vemos hoje porque é claramente posterior. Esteticamente é posterior. Mas tinha de haver um claustro, provavelmente naquele sítio, até mais pequeno e em material mais efémero como madeira e argamassa, porque trata-se da parte mais importante da vida monástica. Tem de haver sempre um espaço capitular, nem que seja numa das alas do claustro - há uma ala que é dedicada a isso. E pode ter acontecido isso mesmo, tal como aconteceu noutros mosteiros na Alta Idade Média e depois neste início da Baixa Idade Média. Portanto, é provável que existisse um claustro prévio que depois foi substituído por este em pedra, na minha opinião, no século XIII. Uma construção que provavelmente começou pelas duas alas que ainda hoje existem, com os capitéis medievais, e que pode ter sido interrompida porque a patrocinadora terá dedicado o seu tempo e a sua fortuna ao mosteiro de Almoster, que tinha incumbência de fundar por vontade de sua mãe. Celas foi talvez o princípio de Almoster, porque foi em Celas que foram formadas as suas primeiras nove noviças. Há uma ligação clara entre as duas casas, pelo menos por parte de D. Berengária Aires de Gosende, já na segunda metade do século XIII, e que provavelmente é a protectora do mosteiro. Os nobres faziam-se patronos dos mosteiros pagando qualquer coisa ou protegendo-os militarmente, beneficiando da possibilidade de ter estadia quando quisessem. Neste caso, há a possibilidade de ter pago estas duas alas do claustro. Portanto, já andámos um bocadinho. Já não estamos no tempo de D. Sancha.
LV: Esta monografia avança com a novidade da patrona do claustro, mas não se sabe a autoria dos capitéis. O que é claro é que a mão de obra não é local.
CVF: Dificilmente é obra local porque, nesse caso, há antecedentes do ponto de vista estilístico que reconhecemos. Antes do claustro de Celas não há nenhuma obra que se possa dizer “é deste escultor” ou “é desta oficina”. E depois de Celas, ou mesmo contemporâneo, não conhecemos nada de que se possa dizer a mesma coisa. Quem veio para fazer, o magister desta oficina, contratou certamente gente local para trabalhar. Não é a única situação assim no país, porque algo que caracteriza muito a arte medieval em Portugal é a vinda de artistas para fazer uma obra específica, não querendo dizer que não juntem a esse estaleiro mão de obra local. Neste caso, a documentação não nos dá essa informação. Mas quando se manda vir um artista de fora, é porque não se encontra alguém com o qual o encomendador se revê e porque se quer uma coisa diferente. Estes encomendadores, religiosos ou laicos, têm bastantes posses, viajam e estão bem informados. Por isso chamam a si artistas que lhes permitam superar obras que já conhecem em Portugal. E nem todas as décadas são gloriosas na produção nacional pelo que a vinda de artistas estrangeiros acaba também por ajudar a dar um salto em frente.
LV: Que outras histórias faltavam ler, não nas entrelinhas mas, no entre pedras?
CVF: A D. Berengária Aires de Gosende foi uma surpresa porque, até agora, não tinha sido referida. Mas tenho de ser justa porque, antes de mim, obviamente outras pessoas se interessaram por este claustro. Alguns anos antes, o Prof. Francisco Teixeira tinha dedicado uma parte da sua tese de doutoramento ao claustro de Celas e, de facto, estudou capitel a capitel, bastante aprofundadamente. Mas achei que tínhamos matéria para ir mais longe e que a cronologia podia ser revista. Apesar de identificar muitos capitéis como sendo claramente de temática própria dos claustros românicos - como encontramos em importantíssimos claustros românicos como São Pedro de Moissac ou Santa Maria de l’Estany, em Barcelona - a verdade é que há situações que me chamaram a atenção porque caracterizam claramente o século XIII e que não existem no século XIV. Não é normal um empenho tão grande em construir um claustro historiado, ainda por cima numa abadia cisterciense. Este claustro é feito numa época em que há um certo relaxamento naquilo que o fundador da ordem tinha determinado: os claustros das abadias românicas não devem ter muitas figuras, ou seja, distracções para os monges e para as monjas, devendo ser o mais simples possível, no máximo com decoração vegetalista. Aqui vemos uma decoração imensa, com temas religiosos e moralizantes, com uma série de figuras, de monstros e de lendas da cavalaria da época, que São Bernardo não teria apoiado. Mas já tinham passado cem anos e porque não fazer um claustro à maneira das abadias beneditinas românicas que eram tão apelativas? Este claustro também é único por isso, porque é um claustro dentro de uma abadia cisterciense, completamente diferente de todos os claustros que conhecemos em Portugal dentro das abadias desta ordem. O mosteiro cisterciense de Santes Creus, na Catalunha, é dos mais exuberantes, mas é já século XIV (avançado). Aquilo que ainda hoje se pode ver em Celas e que, apesar da destruição, está bem conservado, faz deste claustro um caso único. Na minha perspectiva, naquilo que é a análise destes capitéis, e que tentei fundamentar em comparação com tantas outras obras de escultura, iluminura e pintura da época, não necessariamente portuguesas, em Celas estamos ainda no último quartel do século XIII. Não se pode pensar que ‘se não há em Portugal é porque não se faz’ porque, na época, não se pensava nas fronteiras como hoje. Pensava-se na Cristandade, num mundo muito maior do que aquele que é o das nossas fronteiras. E, portanto, olhava-se para fora. E como os artistas são itinerantes, traziam consigo o que conheciam de memória - raríssimos são os que têm consigo cadernos de desenhos - e como é feito manualmente, não fica igual mas é muito parecido. Por isso, neste livro, consegue-se perceber que é possível fazer comparações entre coisas que aparecem a mais de mil quilómetros daqui. Há uma linguagem, uma estética e um tema que é reproduzido quase sempre da mesma maneira. E a iconografia também tem essa característica que é a repetição. Uma coisa que tem sucesso é repetida até à exaustão para ser facilmente reconhecível.
O encomendador de certeza que ficou contente com aquilo que viu porque tem também uma linguagem que, em algumas situações, tenta ser contemporânea. Por exemplo, a maneira de representar Cristo crucificado no Calvário já identificamos com a dos Cristos góticos: um Cristo mais sofredor, de braços e cabeça pendida, que já não é um Cristo triunfante. A Virgem e São João também mostram algum sofrimento. Isso é diferente daquilo que vemos nos claustros românicos. Mas se olharmos para outros capitéis, sobretudo os da ala Oeste, os temas são tipicamente românicos, como aqueles que vemos em São Pedro de Moissac. Portanto, há o conhecimento daquilo que é importante. O claustro de Moissac foi feito nos primeiros anos do século XII e, para Portugal de meados do século XIII, mantém ainda uma aura de modelo ideal onde os artistas se inspiram. Ao mesmo tempo, vão aderindo a novas formas de representar porque a mentalidade também mudou. Mas temas tipicamente românicos, como a subida de Alexandre o Grande aos céus, não desaparecem no universo gótico. Continuam, mas aparecem em claustros românicos. A figura de Alexandre tem um lado muito curioso. É um herói da Antiguidade adorado pelo mundo da cavalaria como o maior militar de todos os tempos. E o universo religioso também o aceita porque ele foi um construtor de templos. Para a Igreja, a subida de Alexandre aos céus é vista como uma forma de orgulho e uma tentativa de obter mais conhecimento, o que é criticável, mas é também a sua remissão porque ele desce ao perceber que não consegue lá chegar. É a ideia do pecado, mas também do perdão.
LV: Estamos num mundo em que se comunica pela imagem, em que cada figura conta uma história, que ultrapassa fronteiras geográficas porque estamos no universo maior da cristandade…
CVF: Sim, mas há um tema específico em Celas que tem uma fronteira peninsular. É a figura de um cavaleiro que segura um escudo carregado com brasões com vieiras, e que foi sugerido como o primeiro tema do Santiago Matamouros. Talvez não seja o Santiago Matamouros como o vamos conhecer no século XIV, porque esta é uma iconografia que se começa a desenvolver no século XIII, na Galiza, e que para estar completamente definida os mouros tinham de aparecer espezinhados pelo cavalo. Neste capitel vê-se apenas um cavaleiro com um escudo cristão, com a vieira de Santiago, a combater um gigante com um escudo que se identifica de um muçulmano. Talvez seja ainda uma ligação a esses romances da cavalaria que mistura a história de Rolando e Ferraguto. Rolando é uma grande figura da cavalaria que vence o gigante Ferraguto e que pode ter sido adaptada ao contexto peninsular, daí as vieiras de Santiago. Mas Celas tem, talvez, das primeiras representações desse tema, que depois se veio a codificar e a chamar de Santiago Matamouros.
LV: Cada capitel, ou figura, conta uma história que pode ser tão piedosa quanto violenta. Monstros a devorar homens de cabeça para baixo convivem, lado a lado, com santos. Como é que se lêem estas histórias? Que tempo é este em que os contadores de histórias têm a vida das gentes à sua mercê?
CVF: Monstros a devorar pessoas pelos pés é o tema do castigo (está na capa do livro), vem do mundo românico e é muito representado em Portugal. É uma cena de condenação e o pecado era condenado assim, o que persiste até meados do século XIII e convive com toda a naturalidade com temas devocionais e com as histórias do menino Jesus. Mas quando aparece uma figura que interrompe, que não tem nada a ver, para depois retomar a história, surge essa questão muito interessante e para a qual não temos uma resposta cabal. Isso vê-se noutros claustros. Voltemos a Moissac, porque talvez seja dos mais estudados e onde se percebeu rapidamente que a ideia de que o claustro tinha sido desmontado e mal remontado não batia certo. O não haver sequência narrativa repete-se noutros claustros. A ‘sequência’ era interrompida em momentos específicos e a hipótese que tem sido colocada é de que estas ‘interrupções’ são colocadas em capitéis que correspondem a lugares de paragem para obedecer a uma certa liturgia. Estamos a falar de um espaço religioso onde acontecem momentos, durante o dia e durante o ano, que implicam procissões com paragens num determinado sítio para rezar. Essas procissões passavam muitas vezes pelas naves, galilés e altares, mas iam sempre ao claustro. O claustro é fundamental e tem lugares de paragem obrigatórios, sendo normal que haja, num claustro cisterciense, no meio de uma história, um capitel dedicado, por exemplo, a figuras importantes da ordem. No caso de Celas, encontra-se a representação de São Bento e de São Bernardo (São Bento é o fundador da regra, São Bernardo é o grande dinamizador de Cister). Parece que interrompe mas não interrompe. Ou seja, numa data em que se celebre algum momento da ordem, parava-se ali de certeza. E é um capitel muito interessante porque levanta uma outra questão. Há um orifício por cima de uma das cabeças de um desses santos, também como acontece em Moissac - no capitel dedicado a São Pedro descobriu-se que havia um orifício para a colocação de relíquias. A ideia de que um capitel pode ser um relicário é muito interessante. Em Celas, encontramos um orifício demasiado bem feito para ter sido erosão do tempo, o que possibilita uma intenção inicial de colocar sobre a cabeça de São Bernardo uma relíquia sua. A imagem em si já era sagrada, apesar de estarmos num mosteiro cisterciense, e ter um capitel com uma relíquia do santo de certeza que o tornaria num claustro importantíssimo. Estes capitéis interrompem a narrativa por motivos provavelmente litúrgicos, ligados à vida religiosa destas comunidades e com uma importância que hoje não existe. Já não há comunidades religiosas a habitar estes espaços. Ficaram espaços vazios, que não entendemos e que fascinam pelo que podem ter sido.
LV: Portanto, partir para a leitura de um claustro destes pensando que, de uma ponta à outra se conta uma história só, é o nosso olhar a funcionar, habituado a ler histórias da primeira à última página…
CVF: Antigamente os medievalistas tinham a ideia de que a arte medieval é uma Bíblia de pedra. Que a arte só era feita para os que não sabiam ler conseguirem aprender as histórias bíblicas. É verdade que ajuda. Mas também é verdade que há muitos capitéis e retábulos que as pessoas só entendiam se estivessem por dentro dos temas. O que estas imagens são é ajudantes da memória e da oração, por isso a ideia da Bíblia de pedra está posta de parte. O que este claustro faz é mostrar histórias e sublinhar temas importantes, como um ‘post-it’. Mas não é, de todo, uma leitura contínua (o que até é muito mais interessante). E encontram-se temas pelos quais a Idade Média tem particular fascínio, sobretudo neste século XIII, depois da escrita de um livro que mudou completamente a maneira de contar as histórias. A Legenda Dourada veio compilar aquilo que já se conhecia das vidas de santos, a que o autor italiano, Giacomo de Varagine, vai acrescentar (e inventar) imenso. E os artistas vão usar o que é contado, sobretudo a parte mais horrível e que tem a ver com os martírios.
LV: Porque não estamos num mundo piedoso, tem de impressionar e de causar medo.
CVF: Tem de causar medo. O objectivo é esse. Estamos num tempo em que a educação não tem a facilidade de agora. Hoje dizemos que é terrível a igreja ter ensinado pelo medo, mas não podemos ver dessa forma. Isso é muito contemporâneo, muito mau, e nos dias de hoje até convém falar sobre isso porque as pessoas estão com uma certa tendência de olhar para o passado como se estivéssemos a falar da actualidade, e não pode ser. A Igreja desempenhou um papel muito importante (mesmo não sendo católica digo isto com toda a tranquilidade). Mesmo que não educasse claramente as pessoas, controlava os comportamentos um pouco selvagens com os quais nascemos naturalmente. E isso só se conseguiu através do medo dizendo que, ao pecar, um monstro os iria apanhar na verdadeira vida, depois da morte.
LV: Numa época de condições de vida tão difíceis, sendo a Igreja aquela que ajudava a minimizar essas dificuldades, a palavra sobre o que pode acontecer na ‘verdadeira vida’ acaba por valer mais.
CVF: E valia muito. As imagens dentro do claustro serviam a comunidade monástica e alguns convidados, mas estes capitéis também existiam nos portais das igrejas e as pessoas assustavam-se e aprendiam com isso. A ideia do Juízo Final era uma realidade em que se acreditava. Na época moderna acreditavam, e na época contemporânea também. Portanto, a imagem, num tempo em que poucos sabiam ler, tinha muita importância. Não é uma Bíblia de pedra, mas é uma forma de comunicação muito eficaz. E estas obras, pintadas, atraíam ainda mais as pessoas.
LV: A ideia de uma Idade Média cinzenta e acastanhada já está desconstruída.
CVF: Havia muita cor, e a paixão da Idade Média pela cor é impressionante. Havia música, teatro, vida na rua. As catedrais eram da população, e se pensarmos na cor dos vitrais que inundava os interiores constatamos que a cor tinha uma importância enorme. Talvez assim percebamos melhor porque vemos escultura sem cor - porque desapareceu -, mas muitas eram pintadas e douradas até. O ouro tem uma conotação celestial. Há capitéis em Celas que têm vestígios de policromia, embora não saibamos ainda se é original ou posterior. Até pode ser medieval, mas não necessariamente da mesma época. O estudo da policromia está a ser feito pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, pela Isabel Pombo Cardoso e outros colegas, mas está ainda numa fase inicial.
LV: A grande questão mantém-se…
CVF: ...quem foi contratado! Já conseguimos, através de um capitel, identificar o brasão de D. Berengária. Deixou uma assinatura, tal como deixou noutros sítios onde foi patrona. Estas senhoras da aristocracia, e homens também, quando pagavam uma obra deixavam a sua marca. E a marca mais fácil de deixar é a heráldica. E essa marca chegou-nos, por acaso, nas reservas de um museu, num capitel em que ainda ninguém tinha reparado. Esta é uma grande novidade no livro: nas reservas do Museu Nacional Machado de Castro tínhamos a patrona desta obra! A hipótese que coloco no livro é de que esta senhora patrocinou as duas alas com os capitéis historiados, e que talvez se tenham mantido as outras duas alas em madeira até ao século XVI, quando se colocaram as colunas lisas - o que está documentado. Mas é claro que as duas alas medievais são da mesma oficina porque têm o mesmo programa iconográfico. E que o capitel de D. Berengária veio de Celas porque está também documentado.
LV: A História da Arte não tem fim.
CVF: É impossível! Antes de mim, outras pessoas escreveram sobre Celas e eu achei que não estava terminado. E depois de mim, outras pessoas vão escrever… e ainda bem. Enquanto historiadores não conseguimos dar resposta a tudo. E um olhar novo tem outras coisas a acrescentar. Há tantas situações possíveis de permitir novas leituras! O actual director do Museu Nacional de Arte Antiga, o Dr. Joaquim Oliveira Caetano, dizia, há anos, que uma obra nunca está completamente estudada sem ter tido pelos menos dez autores a escrever sobre ela. E ele tem toda a razão. Pessoas antes de mim estudaram este claustro e disseram coisas interessantíssimas, acertadíssimas na minha maneira de ver, outras não tanto, mas colocaram hipóteses e avançaram. Eu também dei o meu contributo, mas, como é óbvio, não posso dizer que está tudo resolvido. Em 2020 é isto que eu consigo dizer. E eu, ou outras pessoas, poderemos vir a acrescentar outras coisas. O grande desafio é esse.
LV: Retomar o discurso onde o mestre pedreiro o deixou.
CVF: Sim, e de alguma forma perpetuar a sua obra escrevendo e falando sobre ela, mostrando a outras pessoas, porque às vezes os nossos livros podem não chegar ao público - podem pensar que por ser um livro de História da Arte é muito técnico. Eu sempre tive a preocupação de escrever para que as pessoas percebam. Num tempo em que as universidades se encerram muito no âmbito dos investigadores que publicam em revistas de alto impacto, eu gosto, para além disso, de que se escreva para o público todo.
Todos os anos, Carla Varela Fernandes “descobre” tesouros que, tal como o claustro da abadia de Santa Maria de Celas, parecem esquecidos no tempo. A professora e investigadora fala, acima de tudo, de um espírito guiado pela curiosidade enquanto percorre os caminhos que estão fora dos roteiros turísticos. Há tesouros escondidos de Norte a Sul de Portugal, pelo que é preciso “apontar e explicar a importância que as coisas têm”. O encanto pela Idade Média é fácil de acontecer, ainda que muita coisa “não tenha sobrevivido à voragem dos tempos”. Do Algarve ao Alto Minho, há monumentos que são testemunhos vivos da história do início da formação da nacionalidade.
Numa altura em que a cultura é uma preocupação maior, Carla Varela Fernandes tem, em relação ao património, uma postura optimista ao verificar um crescente interesse por parte da cidadania. Na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, onde lecciona, “há mais alunos e de todas as idades”. E apesar de ser uma classe profissional pequena, “nos últimos trinta anos” o próprio sector tem visto melhorias significativas nos recursos que coloca à disposição dos visitantes. Surgiram “empresas que se dedicam à musealização de monumentos” e “mesmo a associação de guias investe na sua formação e na actualização do seu conhecimento”.
O objectivo é o mesmo: “queremos é que sejam cada vez mais interessados, para criarmos grupos de trabalho e avançar no conhecimento”.
Lúcia Valdevino
Licenciada em Dança, mestre em Comunicação e Gestão e Cultural e a terminar a licenciatura em História da Arte, sempre dedicou a sua actividade profissional à produção e comunicação em artes performativas. Na Moda, divide-se entre o styling e a direcção criativa de campanhas, editoriais e filmes publicitários, trabalhando particularmente com criadores nacionais e marcas emergentes. Sempre presente está a escrita, encarada com o sentido de missão de aproximar e facilitar o diálogo entre os criadores e o público. @luciavaldevino
Carla Varela Fernandes
Historiadora de Arte, doutora em História da Arte Medieval (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa), Professora Auxiliar de Arte Medieval na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e membro integrado do Instituto de Estudos Medievais (IEM-FCSH/UNL). Na sua vida profissional, sempre muito ligada aos museus, tentou associar a vida académica ao trabalho museológico. Foi Conservadora do Museu Arqueológico do Carmo (Lisboa), Coordenadora do Fórum Cultural de Alcochete e Chefe da Divisão de Museus da Câmara Municipal de Cascais. Ao longo dos anos tem desenvolvido vários trabalhos sobre iconografia e escultura medieval, apresentado palestras em congressos nacionais e internacionais, e publicado diversos artigos e livros sobre arte medieval.
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Legenda completa das imagens
[1] Capa do livro. Monstros andrófagos numa cena de condenação de “um homem preso ao pecado e punido por isso sendo devorado a partir dos pés”. A devoração pelos pés é “a representação de um castigo infernal infligido a personagens do universo laico” (Fernandes: 2019: 96). Faces (a, b, c, d) do capitel 1 da Ala Oeste do claustro © José Pessoa.
[2] Alas Sul e Oeste © José Pessoa.
[3] Vista superior do claustro e da cobertura do corpo original da igreja (octogonal) com contrafortes quinhentistas © Sergy Scheblykin.
[4] O Calvário é o tema maior da arte cristã. Respeita o modelo iconográfico bem difundido no século XIII, mas que sofre uma forte influência da arte oriental marcada pela figura mais humanizada de Cristo. O Cristo Triunfante dos séculos XI e XII começa a dar lugar a um Cristo que agoniza - Christus Patients. Face (b) do capitel 10 da Ala Sul do claustro © José Pessoa.
[5] O Voo de Alexandre, erguido aos céus por dois grifos. Este tema “não aparece representado em qualquer outro suporte da escultura românica ou gótica portuguesa” (Fernandes: 2019: 92). Face (a, b, c,
d) do capitel 13 da Ala Oeste do claustro © José Pessoa.
[6] Santiago Cavaleiro de Cristo. “Dentro das fronteiras portuguesas (...) esta pode ser a representação mais antiga de Santiago Cavaleiro que chegou aos nossos dias” (Fernandes: 2019: 77). Face (c) do capitel 8 da Ala Sul do claustro © José Pessoa.
[7] Cristo desce ao Inferno dos Justos (Limbo), naquela que foi a sua primeira experiência além-túmulo, segundo o evangelho apócrifo de Nicodemos. Cristo começa por resgatar Adão e Eva da Boca do Inferno (o monstro Leviatão), redimindo-os do pecado inicial (Fernandes: 2019: 64). Face (c) do capitel 10 da Ala Sul do claustro © José Pessoa.
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Santos, Heróis e Monstros
O claustro da abadia de Santa Maria de Celas
Carla Varela Fernandes Monografia bilingue PT/EN Edições Colibri
Mecenas: Fundação Millennium BCP
Apoio: Câmara Municipal de Coimbra, Turismo do Centro de Portugal
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A pedido da autora este texto não segue o acordo ortográfico.