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ENTRE O BANAL E O SINGULAR : UMA LEITURA DE LOOS, ROSSI E SIZA
JOÃO ALMEIDA E SILVA
O título, cuja ideia é apropriada de Álvaro Siza em Imaginar a Evidência (1998), reflecte um ponto que se afigura transversal às leituras aqui escolhidas, e especificadas na bibliografia: o equilíbrio entre o Banal e o Singular como chave de leitura da obra destes três autores [1]. Banal no “sentido da disponibilidade na continuidade” e Singular onde “reside o seu verdadeiro significado no tempo” (cf. Siza 2017 [ed. orig. 1998]: 133; 145). Intui-se que o objecto simultaneamente Banal e Singular poderá aspirar à intemporalidade, ou atingir o estatuto de obra de arte. Vejam-se como referência três cadeiras (porque mais imediatas que edifícios) de Loos, Rossi e Siza [Figs. 1, 2 e 3] [2].
1. Banal: Tradição e Progresso
Quando Aldo Rossi apresenta o texto Adolf Loos : 1870-1933 (1959) contextualiza de forma incisiva a Viena burguesa do início do Séc. XX (onde a presença do decorativismo de salão da Secessão de Otto Wagner é decisiva) e sublinha a personalidade do autor concedendo que “Adolf Loos, o arquitecto e o homem, é revolucionário diante o espírito retrógrado, reaccionário diante do espírito de destruição” (Rossi 1959: 49) [3].
Tal sugere a oposição entre “revolucionário” e “reacionário” como reflexo da busca de Loos pela simbiose natural entre tradição e progresso. Simbiose que perseguirá através de uma dimensão crítica em relação aos seus antecessores (vejam-se a este respeito as polémicas com a Secessão Vienense) e aos seus sucessores (não participando na Weissenhofsiedlung de 1927, por exemplo) [4].
Loos refere que a produção do homem deverá ter presentes as exigências e necessidades concretas da sociedade onde se insere. Neste sentido, a renovação da sociedade deverá ocorrer através da evolução das técnicas que caracterizam um período particular e terão a missão de fazer evoluir a tradição. Esta evolução, ainda segundo Loos, não significa a invenção de novas formas, antes a substituição dos objectos existentes por outros que resolvam melhor um determinado problema. E por isso, nos dois textos de Adolf Loos, o autor reivindica o fim do ornamento.
Segundo Rossi, “Goethe já tinha denunciado a redução da arte à ornamentação como sinal da imoralidade dos tempos, e tinha escrito que em especial a arquitectura não se podia adornar sem perder força”(Rossi 1959: 52).
Mas é Loos, primeiro em Ornamento y delito (1908) e depois em Arquitectura (1910), que afasta definitivamente a discussão sobre o ornamento das questões formais e coloca o debate em torno da moral, enquanto discussão cultural (cultura aqui entendida enquanto equilíbrio entre interior e exterior do ser humano) e associada a um determinado contexto, que persegue o espírito do tempo.
Não pretende ser uma questão estética, porque a “moralidade” aqui referida serve para validar a supressão do ornamento enquanto exclui, simultaneamente, a hipótese de criação de um novo “estilo” (possivelmente ancorado na depuração formal). O ornamento ou, neste caso a sua ausência, serve de argumento para o posicionamento de um objecto no seu próprio tempo. Segundo Loos “a evolução cultural equivale à eliminação do ornamento,” reforçando: “alguém que viva no nosso nível cultural não pode criar nenhum ornamento” (cf. Loos 1910: 25).
2. Singular: Intuição e Arte
Tal ideia de supressão do ornamento está intimamente ligada à valorização do artesanato e dos artesãos. É sintomático que Loos, a propósito da “casa na margem do lago” de Arquitectura refira que “o camponês cortou a relva verde onde vai erigir a nova casa e cavou a terra onde levantará as fundações. Então surge o pedreiro. [...] E enquanto o pedreiro assenta um tijolo sobre outro [...] o carpinteiro inicia o seu trabalho. Os golpes do machado soam alegres. Faz o telhado. Que tipo de telhado? Bonito ou feio? Ignora-o. O telhado” (cf. Loos 1910: 23-24).
Loos defende a obra do camponês e reconhece-lhe o valor da intuição, valorizando um saber ancorado na tradição e no domínio dos materiais e que se manifesta num “saber fazer” que não é refém do desenho. Tal valorização do artesanato leva Loos a desprezar a codificação própria da profissão, porque entende que “um arquitecto é um pedreiro que aprendeu Latim” (Loos 2004 [ed. orig.1908]: 254). É por isso que, e segundo Rossi, “em Loos, a novidade se apresenta como a novidade das formas da intuição (als Neues einer hoheren Anschauugsweise), e esta é a origem mais nobre de uma obra genial. Esta novidade nas formas da intuição implicava a reconstituição da linguagem, da técnica própria de cada disciplina artística particular. [...] Diante da novidade das formas da intuição tudo se dispõe numa nova ordem; as suas profundas raízes humanas se confundem com as raízes da sua arte” (Rossi 1959: 51).
Mas, segundo Loos, “apenas uma parte, muito pequena, da arquitectura corresponde ao domínio da arte: o monumento funerário e o comemorativo. Todo o resto, tudo o que tem uma finalidade, deverá ser excluído do domínio da arte” (Loos 1910: 33). De facto, Loos entendia a arquitectura como uma técnica construtiva, quando se inclina pelo carácter prático da arquitectura. [5] “A habitação terá que parecer confortável; a casa acolhedora. O palácio da justiça deverá aparecer diante o vício oculto como um gesto ameaçador” (Loos 1910: 34).
Numa leitura mais desatenta dir-se-ia que Loos não se interessava por “arte”. Mas Rossi identifica neste momento uma contradição fundamental no pensamento de Loos e não se limita a uma interpretação superficial. Porque, diz Rossi, “seria injusto crer que há em Loos uma luta entre estes dois amores, ou cultos irreconciliáveis; [Loos] elege a continuidade, o contínuo interesse pelo progresso humano, pelo desenvolvimento do trabalho e inclusive pela obra de arte [...]. Esta tensão entre memória e futuro servirá para [Loos] enriquecer a concepção da história com um novo e poderoso significado” (Rossi 1959: 55). Para concluir, mais adiante, que o arquitecto Vienense “compreendia o que era a arte, e esta era a razão do seu apaixonado desejo de verdade” (Rossi 1959: 65).
Ora, talvez seja esse apaixonado desejo de verdade que leva Loos, através da condenação do ornamento e o consequente elogio do artesanato como expressão genuína de uma cultura num dado momento histórico, a referir que “uma obra arquitectónica verdadeira não causa nenhuma impressão no papel” (Loos 1910: 28).
Esta ideia remete novamente para Rossi. Quando este refere que o carácter da modernidade em Loos não surge baseado num princípio abstracto, mas do vínculo com o Homem e com a Sociedade. [6]
De facto, ao acolher a tradição construtiva anónima, Loos introduz nas suas obras o conceito de contexto (do qual a região faz parte). Defende que “não só os materiais, mas também as formas edificadas estão relacionadas com o lugar, com a natureza do terreno e com o ar” (Loos 1910: 33). Tal reflecte a sua visão de uma arquitectura que deve dar uma resposta de continuidade ao contexto cultural característico de cada lugar, numa acepção a que hoje poderíamos apelidar (com as devidas distâncias) de “regionalismo” [7], numa perspectiva de aceitação da tradição construtiva do artífice. Isto porque, esta “arquitectura das emoções”, equilíbrio entre a capacidade de se relacionar (banal) e a autonomia (singular), se afigura como um exemplo maior da relação encontrada entre intuição e arte.
3. Banal e Singular: Três Cadeiras
Karl Kraus e Loos insistiram em mostrar “que há uma diferença entre a urna e o urinol e que nestas diferenças se manifesta a cultura” (Rossi 1959: 54).
Também Álvaro Siza, em Imaginar a evidência (1998), refere que “as reflexões de Adolf Loos sobre design, importantes e actuais, sublinham como a necessidade, ainda mais do que a arte, é o fundamento primeiro para se alcançar o objecto perfeito. Loos também desenhou uma cadeira Thonet , [8] e é uma cadeira maravilhosa; olhando-a podemos dizer: “é uma cadeira Thonet!”, sem acrescentar mais nada”(Siza 2017 [ed. orig. 1998]: 135).
Mas Siza acrescenta, e isto é decisivo, “contudo é evidente algo de especial nas proporções e em alguns pormenores que dão pouco nas vistas, de modo que a impressão geral é de uma coisa absolutamente singular, sensacional, mas ao mesmo tempo banal”(Siza 2017 [ed. orig. 1998]: 135).
Segundo Siza, “todos os objectos têm uma história. E contudo, vistos à distância, podem ser ligeiramente diferentes e é exactamente nesta ligeira diferença que reside o seu verdadeiro significado no tempo.” Pois o projecto significa “captar o momento exacto, uma ideia perturbadora e errante – e repor a serenidade” (cf. Siza 2017 [ed. orig. 1998]: 133; 145).
De facto, o mundo dos objectos tem o seu quê de ancestral, de história (aqui manifestado num primeiro momento no saber dos artesãos, passado de geração em geração), que leva a que uma cadeira seja sempre uma cadeira, relacionada com as medidas do Homem tendo, simultaneamente, o lado artístico que as liga ao espírito do seu tempo (aqui identificado como singular), estando por isso entre o Banal e o Singular.
Focando o objecto cadeira pode-se intuir o ponto de contacto entre os três autores: a busca constante de conceitos tendo a história como base para, num momento posterior, os inserir num objecto (ou segundo Siza, “pensar a cidade, pensar o edifício, pensar o móvel,”(Siza 2017 [ed. orig. 1998]: 133) como actividades interdependentes) que se tornará eterno porque serve de charneira entre o passado e o futuro sendo o reflexo intemporal do tempo em que é concebido, singularizando-o. Intui-se que esta singularidade resida nas conjunturas históricas (nas circunstâncias particulares, nos tempos e lugares) que, associados à ideia de objecto banal “no sentido da disponibilidade na continuidade”(Siza 2017 [ed. orig. 1998]: 135), o recoloca no seu tempo e, simultânea e paradoxalmente, o torna intemporal [9].
Nos quatro textos parece pois existir esta mesma ideia comum, iniciada por Loos e revisitada por Rossi e Siza em momentos históricos diferentes, mas servindo os propósitos da obra dos três autores: a ideia de projecto e memória, o singular e o banal, na busca de uma certa verdade das coisas; ou a forma como o resultado de uma ideia colectiva que se materializa num dado momento e que, por isso, lhe é sensível [10].
Vejam-se novamente e como referência as três cadeiras de Loos, Rossi e Siza.
João Almeida e Silva
Arquitecto e Investigador no CEAU da FAUP, Visiting Scholar na Universidade de Princeton.
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Notas
[1] Note-se que esta chave de leitura representa uma linha de pensamento que procura e valoriza as semelhanças encontradas nos textos escolhidos de Adolf Loos, Aldo Rossi e Álvaro Siza, descritos na Bibliografia, focando-se nas complexas relações entre o banal e o singular. Tal não significa, contudo, que não existam outras semelhanças e, igualmente importante, inevitáveis diferenças.
[2] A comparação entre as Cadeiras Loos, Rossi, e Siza exploram esta dualidade enquanto metáfora acessível, procurando mostrar de que modo o dia a dia pode ser elevado a partir do Design e da Arquitectura. Como tal, por motivos de simplicidade na leitura, optou-se por exemplificar graficamente a linha de pensamento escolhida com três cadeiras, sendo que teria sido igualmente possível fazer a comparação utilizando outras obras dos autores em estudo.
[3] Rossi socorre-se das palavras , de 1931, de Franz Gluck, amigo de Adolf Loos.
[4] Loos considera a existência do mesmo tipo de problemas na arquitectura desde a Antiguidade. No entanto, tal não supõe um regresso aos elementos originários. De facto, recusa a herança Romântica, para acolher a Antiguidade Clássica de Von Erlach ou Schinkel e, neste sentido, nunca se interessa pelo conceito da Cabana Primitiva, o mito originário da arquitectura. Procura antes a disponibilidade na continuidade na tradição anónima e na Antiguidade Clássica.
[5] Há aqui alguma proximidade ao movimento Arts and Crafts de William Morris no entendimento da arquitectura enquanto artesanato. Mas Loos via a técnica como um meio, pragmático, de fazer evoluir a tradição (note-se ainda que nunca lhe atribuiu um carácter salvador como os seus sucessores; nem a recusou como como os seus antecessores).
[6] Neste texto de Rossi sobre Loos, percebe-se que este define um território fundamental, onde Rossi coloca em debate uma alternativa ao conservadorismo e ao seu extremo oposto, o vanguardismo radical. Note-se que em 1959, ano de formação de Rossi e do texto em análise, se inicia o debate em torno da evolução do Moderno entre o progressismo tecnológico e o programa ideológico (R. Banham / Architectural Review VS E.N. Rogers / Casabella). O primeiro mais restrito formalmente, porque ancorado na renovação formal; o segundo, porque definido por princípios, mais livre para encontrar analogias com o passado.
[7] Note-se que o que se convencionou chamar Regionalismo Crítico, apesar de partilhar algumas das preocupações referidas, distingue-se, pelo menos, pelo facto de surgir como reacção a um certo desenraizamento do Movimento Moderno, usando a contextualização e sentido de lugar para devolver o significado à Arquitectura.
[8] Em 1898, Adolf Loos concebe o modelo Thonet para o Café Museum em Viena projectado por si e tendo por base a cadeira patenteada em 1856 por Michel Thonet, que usava a técnica da envergadura em madeira, e se destacava pelo design simples, funcional e económico.
[9] De resto, esta é uma ideia que percorre, de uma forma transversal, a Arquitectura Portuguesa do Séc. XX. Note-se Fernando Távora que evoca a necessidade de saber ver para além da forma, no sentido de extrair do passado lições de método para o presente e que com essa atitude abre caminho ao que se convencionou chamar Terceira Via.
[10] Refira-se que Rossi e Loos se filiam de certa forma na arquitectura de Boulleé, reconhecendo a insuficiência de uma arquitectura baseada exclusivamente na razão e abrindo uma dicotomia entre o objectivo e o subjectivo, no limite entre banal e o singular.
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Bibliografia
Loos, A. (1910). Architectura. Adolf Loos. Escritos II, 1910-1931. A. Opel and J. Quetglas.
Loos, A. (2004 [ed. orig.1908]). Ornamento e Crime. Lisboa, Cotovia.
Rossi, A. (1959). Adolf Loos: 1870-1933. Casabella.
Siza, Á. (2017 [ed. orig. 1998]). Imaginar a evidência, Edições 70.