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CENAS PARA UM NOVO PATRIMÓNIO
LIZ VAHIA
Em Novembro de 1986 o centro histórico de Évora era classificado como Património Cultural da Humanidade pela UNESCO. 30 anos depois, o Fórum Eugénio de Almeida teve patente este verão uma exposição intitulada “Todo o Património é Poesia”, cujo propósito era “pensar o significado de património hoje” e sugerir para o mesmo “um novo pensamento e uma nova agenda”, segundo as palavras da curadora Filipa Oliveira.
Entre vários tipos de abordagens conceptuais e técnicas, a exposição contava com obras de Ai Weiwei, Anri Sala, Clemens Von Wedemeyer, Danh Võ, David Maljković, E.B. Itso, Elisabetta Benassi, Francisco Tropa, Lara Almarcegui, Lida Abdul, Mariana Castillo Deball, Mariana Silva, Oswaldo Maciá, Pablo Bronstein, Pedro Cabrita Reis, Richard Wentworth, Rirkrit Tiravanija, Susana Mendes Silva, Tonico Lemos Auad e Vasco Araújo. Algumas das quais foram produzidas especificamente para esta exposição.
Os trabalhos apresentados contribuíam não só para se fazer esta reflexão sobre o que é o património na actualidade, em termos de legado material e simbólico, tanto agregador identitário como mercadoria cultural, como também propunham um questionar do papel que os museus representam ainda na manutenção de um certo tipo de visão e relação com o património.
Através de algumas das obras em vídeo presentes nesta exposição podíamos criticamente observar esta relação por vezes difícil com o passado, e a sua integração no espaço de hoje, do nosso quotidiano.
Neste aspecto, o trabalho do croata David Maljković, “Scenes for a New Heritage” (2004) - primeira parte de uma trilogia com o mesmo nome filmada entre 2004 e 2006 – serve de base para pensarmos sobre a ideia de herança cultural, sobre este constante ajuste entre o passado, o presente e o futuro, entre a constância e a inevitável mudança.
O vídeo de Maljković apresenta um cenário futurista localizado em 2045, em que um grupo de homens viaja de carro até ao memorial em homenagem às vítimas da Segunda Grande Guerra, construído em 1981 em Petrova Gora, na Croácia, pelo governo comunista da então Jugoslávia. O memorial é um edifício alto com linhas curvas e paredes metálicas brilhantes, situado num local isolado e invadido por ervas, com um aspecto já de abandono. As personagens, à medida que visitam o monumento, numa “demanda pelo património” (“We set out in quest of heritage”), comunicam através de uma espécie de canto, interrogando-se sobre o significado daquele monumento, incapazes de se relacionarem com ele de alguma maneira. Este monumento, com um propósito tão claro aquando da sua construção, é agora no futuro um volume à mercê dos novos significados que o grupo possa projectar. “Eu sugiro mudarmos a função deste edifício”, diz uma das personagens. Algumas sentem que aquele é um sítio diferente, mas outras não: "é só porque tu queres sentir isso".
A brutalidade dos acontecimentos a que o monumento faz referência – a Segunda Guerra Mundial – e a sua origem – o período comunista na Jugoslávia - transformaram-se totalmente num futuro próximo. A história e os monumentos alteraram-se, deixando aquelas personagens numa busca errante de novos significados. Tal como o canto-linguagem destes homens nos é totalmente incompreensível, também o monumento se lhes apresenta completamente intraduzível.
Há sem dúvida uma sensação de nostalgia neste trabalho, neste deslizar entre o passado e o futuro, a partir da nossa suposta posição privilegiada de eterno presente.
O uso de papel de alumínio a cobrir os carros, como num filme de ficção científica sem orçamento, e a própria estrutura de contraplacado onde está instalado o vídeo (uma estrutura de várias camadas, como um vórtice), nos coloca sempre num certo estranhamento. Maljković não pretende criar uma realidade credível do futuro – este é apenas um futuro possível – e alerta-nos para o carácter “emoldurado” do vídeo – este é um vídeo a ser projectado dentro de uma moldura, não imagens sem fronteiras vindas do nada.
É na percepção do construído, da ideia de monumento como culturalmente arquitectado e activado pelos que o usam, veículo de memórias e relações de poder, que podemos continuar a manter e a partilhar o património e não apenas o que é edificado.
Liz Vahia