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NOTAS SOBRE PROJECTOS, ESPAÇOS, VIVÊNCIAS
LIZÁ RAMALHO E ARTUR REBELO (R2)
«...os espaços multiplicaram-se, fragmentaram-se e diversificaram-se. Existem de todos os tamanhos e de todas as espécies, para todos os usos e para todas as funções. Viver, é passar de um espaço para outro, tentando o mais possível não esbarrar.»
— Georges Perec, Espèces d’espaces.
Na sequência do trabalho que temos vindo a desenvolver para arquitectos e de projectos de comunicação visual relacionados com o espaço, seguem-se algumas reflexões.
Paisagem, encontro, referência
Já fora de Lisboa, num desvio no caminho, e sem procurarmos nada em concreto, demos com um descampado e duas barracas. Nesse vazio de vegetação, um pai tinha alinhado computadores obsoletos e televisores velhos. Estes formavam uma estação de trabalho com 5 postos, sem possível ligação à corrente eléctrica, para os seus filhos brincarem.
Erraticamente, noutro desvio, encontramos um «a» minúsculo à beira da estrada, na realidade uma peça industrial, ali abandonada. Um «a» verdadeiramente gigante para quem compõe diariamente «a»s, com cerca de 9 pontos para texto corrido. Também ele no meio do nada e à beira da estrada, inesperado naquele espaço, um volume contornável, escalável, imponente e bruto.
Noutras pesquisas tivemos igual sorte nos achados. Como o que aconteceu numa incursão à morgue de um conhecido hospital nacional. Percorrendo os seus corredores sombrios, entrámos numa das mais sinistras câmaras. Definindo a parede, um quadro de giz pregado para o registo da autópsia e, suspensos, um crucifixo e uma serra eléctrica.
É nestas paisagens, nem sempre descampadas, que encontramos perguntas e respostas para muitos dos projectos que desenvolvemos. São para nós deliciosos espaços, contentores ocupados que nos alimentam num diálogo entre vernacular, insólito, desordem e rigor, grelha, estrutura. Espaços e experiências que contaminam os nossos projectos e a nossa vida. Espaços habitados, interpretados, acasos, levaram-nos a encontrar preciosidades que coleccionamos quando a escala, o material e a propriedade o permitem.
Tipografia, matéria, textura
Os projectos constroem-se sobre diálogos permanentes que reenviam sistematicamente ao olhar crítico do outro. Com o conteúdo do projecto como ponto de partida, procuramos traduções com diferentes doses de interpretação, racionalidade e intuição. A envolvência impregna o nosso trabalho, opera associações e por vezes faz-nos integrar realidades e objectos, encontros na vida e no projecto, intencionais ou frutos do acaso. Coisas coleccionadas e analisadas, objectos descontextualizados, transformados, ajustados, desviados, alavancas de uma nova abordagem. Procuramos por vezes conferir materialidade à tipografia, a matéria dos espaços e dos objectos que nos rodeiam.
No cartaz desenhado para a peça de teatro Molly Bloom de James Joyce, utilizamos tipografia recolhida em diversos tecidos. Recorremos à textura e à forma das letras bordadas para conferir volume às palavras que jorram do interior de Molly. Esta materialidade foi também explorada na série de cartazes desenvolvidos para a divulgação da exposição Reunião de Obra (1), como derivação do conceito do projecto. Com enfoque na importância da passagem do projecto à execução, a tradução visual do evento no cartaz passou pela utilização dos materiais de construção e o desenho do projecto. Tratando-se de uma série, fez-se o levantamento sistemático de materiais representativos de cada Reunião de Obra (2), com os quais se procurou construir texto.
Na instalação que concebemos para a fachada da Ermida Nossa Senhora da Conceição (3), agora transformada numa pequena galeria, as letras ganham textura; aqui, a tipografia não sugere apenas volume – ela é de facto tridimensional. O conceito desta intervenção centrou-se na anterior função daquele espaço, que passou de local de culto a galeria. Cobrimos a parede da fachada com expressões características de uma oralidade tão religiosa quanto quotidiana, evocações nem sempre conscientes de uma divindade omnisciente e omnipresente. Através desta intervenção, tanto expressões como divindade regressam ao local onde antes convergiram, agora no seu imperecível muro. O acabamento do texto composto no tipo de letra Knockout (4) tem a mesma materialidade da fachada (pintada de branco para o efeito), dando a sensação que o texto, como que empurrado do interior do templo, surge da capela para a rua.
Escala, reprodução, projecto técnico
A reprodução de projectos de arquitectura em formatos mais pequenos (como acontece nas publicações) obriga a uma simplificação e um redimensionamento das espessuras das linhas. O desenho técnico do projecto reproduzido num livro chega a sofrer reduções na ordem dos seiscentos por cento. O tratamento do desenho implica que o traço mais fino tenha, para impressão em offset, pelo menos 0.5 pontos, indo até aos 0.4 se for computer to plate (5). No processo de impressão serigráfica, utilizado para os cartazes de rua, a linha mais fina não poderá ter menos de 0,71 pontos.
No catálogo que acompanhava a exposição de Raoul De Keyser (6) reflectimos de uma forma mais incisiva sobre como poderíamos manter uma relação mais próxima entre a real variação das proporções das obras reproduzidas ao longo desta publicação. A amplitude de tamanhos e escalas entre elas impedia uma óbvia redução proporcional. A solução encontrada assentou num agrupamento de obras de acordo com a sua dimensão, tendo cada conjunto uma redução correspondente. Na capa, um pormenor de uma das pinturas é apresentado à escala real.
Noutros casos, como no cartaz Boca (7), procurando um certo efeito de estranheza e simultaneamente de proximidade, ampliámos aproximadamente novecentos por cento a imagem de duas bocas tocando-se levemente. Tanto o conteúdo, como a escala da imagem, reforçaram os diálogos estabelecidos entre esta e a cidade nas paredes, tapumes e janelas cimentadas onde o cartaz foi afixado. Aqui, é o contexto que, por oposição, acrescenta significado à imagem.
Letra, signo, edifício
Adrian Frutiger refere frequentemente a proximidade existente entre a arquitectura e a tipografia. No prefácio do livro sobre a obra do arquitecto Paul Andreu (8), Frutiger menciona esse tema como recorrente na colaboração de ambos para o projecto do Aeroporto de Charles de Gaulle. O seu é apenas um exemplo da linguagem comum entre tipógrafos e arquitectos; como refere Félix Studinka (9), ambos falam sobre grelhas e estratificação, proporção e estabilidade visível, e como organizar o preto e o branco.
Foi também essa proximidade que contribuiu para um I Love Távora inteiramente tipográfico. O evento que publicitou devia o seu nome ao próprio arquitecto Fernando Távora que, enquanto docente, concebeu uma t-shirt com estas palavras para que os seus alunos e outros interessados a adquirissem. No cartaz, recorremos a caracteres e outras peças tipográficas que, como se de edifícios se tratassem, procuram evocar um plano urbanístico onde se pode também ler um coração.
No desenvolvimento de símbolos para identidades visuais para arquitectura, tivemos projectos em que utilizamos referências ao edifício. Por mera coincidência, dois deles desenhados pelo arquitecto Álvaro Siza: o Pavilhão de Portugal, para a Trienal de Arquitectura de Lisboa e o Conjunto Habitacional da Bouça no Porto, para o Atelier da Bouça. Na Trienal, partimos da forma do edifício sendo que durante o processo de investigação experimentamos uma aproximação que traduzisse de forma mais literal a «pala» do Pavilhão de Portugal. Contudo, uma maior abstracção revelou-se mais eficaz: a evocação à existência da pala é feita através de um reforço ao braço do «T», conferindo mais carácter ao símbolo. A forma é um híbrido – parte letra, parte edifício – que nasce de uma sugestão da forma do Pavilhão ao integrar igualmente as letras «T» e «L» de Trienal de Lisboa.
A problemática da representação de um edifício em projectos de identidade visual tem particular interesse no caso do Centre Georges Pompidou (10). O símbolo da instituição, inspirado na fachada do edifício onde se destacam as escadas mecânicas, foi interpretado em 1977 por Jean Widmer. A primeira proposta apresentada – e recusada – não traduzia literalmente os pisos existentes, procurando um equilíbrio próprio. A forma inicial foi então substituída por uma versão menos abstracta do símbolo, reflectindo os 5 pisos reais do edifício.
Percurso, inventário, cartografia
A nossa foi a penúltima de uma série de onze intervenções no edifício da Casa da Música realizadas por designers, arquitectos e artistas portugueses (11). Não incidiu numa das suas salas em particular, mas concentrou-se nos vários espaços e percursos do edifício. Iniciámos duas análises distintas: por um lado, procurámos trajectórias e percursos; por outro, quisemos encontrar uma apreciação emocional das diversas salas por parte dos seus visitantes. Questionámos os trajectos usuais, propondo novas formas de descobrir estes espaços, organizados por ordem alfabética, escala, lotação, cor... Inventariámos, classificámos, contextualizámos; estabelecemos relações entre construído e o habitado. Cartografámos os seus conteúdos e as experiências que proporcionaram aos seus visitantes, representadas de diversas formas em séries inacabadas de «partituras» de dados. Os dados recolhidos foram apresentados sob forma de um livro aberto em cada degrau da escadaria norte da Casa da Música. Parte do conteúdo de cada dupla página contaminava as paredes e listava as palavras obtidas, em questionários aos visitantes (12), para caracterizar cada um dos espaços.
Edifício, signo, intersecção
Há edifícios que se deixam contaminar literalmente pelo seu conteúdo: o Pato de Long Island (13) é o ex-libris dessa categoria. Outros podem representar para os designers um espaço incontornável na procura de uma marca gráfica, como explica Stefan Sagmeister sobre a imagem que desenvolveu para a Casa da Música (14). Este refere que, por mais que se tentasse afastar do edifício de Koolhaas, todos os seus desenvolvimentos lhe pareciam arbitrários face à forma única deste edifício. Em oposição, a sede da Citröen nos Campos Elísios, projectada por Manuelle Gautrand, é sugerida pela marca gráfica originalmente desenhada por André Citröen. Em alguns casos, a intervenção gráfica num espaço pode ser tão essencial que, sem ela, todo o edifício que o proporciona perderia; um exemplo disso é a Printshop Veenman, projectada por Neutelings Riedijk Architects e com intervenção gráfica de Karel Martens.
Tradicionalmente, o designer de comunicação – como refere Ellen Lupton (15) – enquadra os espaços, sítios e objectos e torna-os legíveis, funcionando como mediador. A contribuição actual à reflexão do espaço e da arquitectura por parte de alguns designers esteve patente na exposição Forms of Inquiry (16), cuja itinerância teve início na Architectural Association em Londres em Outubro de 2007. Entre outras coisas, esta exposição apresentou explorações críticas de vários designers face às problemáticas do espaço e da sua representação.(17) Apesar de desenharmos para diferentes funções, partilhamos a mesma linguagem. É essa linguagem comum que torna possível uma colaboração próxima e um diálogo profundo entre designers e arquitectos. É dela que nasce a discussão sobre o interesse mútuo das duas profissões. E é nos territórios partilhados, assim como nas intersecções do espaço urbano, que juntos abrimos novas perspectivas.
Lizá Ramalho e Artur Rebelo
Licenciados em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes Universidade Porto. Têm um Diploma de Estudos Avançados pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona. Em 1995 fundaram o atelier R2 Design, no Porto, onde têm desenvolvido projectos de design de comunicação visual. Membros da AGI—Alliance Graphique Internationale desde 2007.
NOTAS
(1) Série de exposições realizadas pela Ordem dos Arquitectos Secção Regional Norte. Reunião de Obra nº1: arquitectos Fernando Távora + José Bernardo Távora, 15 Dezembro 2005 a 12 Março 2006; Reunião de Obra nº2: arquitecto José Paulo dos Santos, 30 Março a 21 Maio 2006; Reunião de Obra nº3: Atelier Guedes+deCampos 29 Junho a 17 Setembro 2006; Reunião de Obra nº4: arquitecto Álvaro Siza Vieira com arquitecto António Madureira, 30 Outubro 2006 a 14 Janeiro 2007, Reunião de Obra nº5: arquitecto Eduardo Souto de Moura, 9 a 29 de Abril 2007.
(2) À excepção da Reunião de Obra nº1, por se tratar do primeiro evento, recorremos a um elemento generalista.
(3) Situada na Travessa Marta Pinto em Lisboa, reabriu como galeria em 2008.
(4) Família de tipos desenhada por Hoefler & Frere Jones.
(5) Tecnologia de impressão mais moderna que permite passar directamente de um ficheiro criado digitalmente para a impressão da chapa de offset.
(6) LOOCK, Ulrich, Raoul De Keyser, Fundação de Serralves, 2005.
(7) Cartaz desenhado em 2004 para o Teatro Bruto, com base numa fotografia original de Marco Maurício.
(8) ANDREU, Paul; JODIDIO, Philip; FRUTIGER, Adrian, «A Building, a typeface», Paul Andreu, Architect, Birkhäuser, 2004, 6-7.
(9) STUDINKA, Félix, Poster Collection: Typotecture, Typography as Architectural Imagery. Museum fur Gestaltung Zurich & Lars Muller Publishers, 2002, 5.
(10) SMET, Catherine de «Histoire d’un rectangle rayé», Les Cahiers du Musée national d’art moderne, Édition du Centre Georges Pompidou, 2004, 4-23.
(11) Nuno Grande, Ricardo Jacinto, Flúor, Pedro Bandeira, Luísa Cunha, Pedrita, as*, Fernanda Fragateiro, Miguel Palma e Filipe Alarcão são os autores das outras intervenções.
(12) Questionários realizados entre Setembro e Outubro 2007, a 106 visitantes. Foram analisados os seguintes espaços: Cybermúsica; Entrada; Sala 2; Sala Laranja; Sala Renascença; Sala Roxa; Sala Suggia; Sala VIP; Terraço.
(13) VENTURI, Robert; IZENOUR, Steven; BROWN, Denise Scott – Aprendiendo de Las Vegas: El simbolismo olvidado de la forma arquitectónica. 2ª ed. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1982.
(14) RAMALHO, Lizá, «Un logo, des locaux», Étapes França nº148, 2007, 52-56.
(15) LUPTON, Ellen; MILLER, J. Abbott , «Critical Wayfinding», The Edge of the Millennium,. ed. Susan Yelavich. New York: Whitney Library of Design, 1993, 220-232.
(16) KYES, Zak; OWENS, Mark – Forms of Inquiry: The Architecture of Critical Graphic Design. London: Architectural Association Publications, 2007.
(17) Entre os projectos apresentados, destacamos a interpretação gráfica da capela de Notre Dame du Haut (ou Ronchamp) de Le Corbusier, por Karel Martens e David Bennewith para a Architectural Association em Londres.