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CASA PAISAGEM OU UM PRESÉPIO ABERTO
MADALENA FOLGADO
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da presença
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma arquitectura íntima
António Ramos Rosa
A referência no título a Um Presépio Aberto [1], em Outubro de 2022, faz por estar longe dos reis magos do consumo, que todos os anos fazem por antecipar um pouco mais o Natal no calendário do ano civil, e que até nos oferecem prendas: vales de desconto sem profundidade, engenhosas aplicações com cookies com sabor a invasão de privacidade, e, os mais refinados gatilhos para neuroses e psicoses. Discorrer-se-á não em torno de prendas, mas de dois arquitetos, que se propuseram ser presentes.
Casa Paisagem é um projeto performativo e de arquitetura enquanto vivência da paisagem da dupla Aidel, formada pelos arquitetos e artistas italianos Cristina Gallizioli e Marco Ferrari, documentado pelo fotógrafo Riccardo De Vecchi e apoiado pelas Oficinas do Convento e nctm-e-l’arte. De 29 de Setembro e 13 de Outubro, o Atelier Concorde, em Lisboa, acolheu a exposição consequente da ocupação de uso doméstico da paisagem de montado alentejano, no início do Outono de 2021 — Em particular, a extensão sensorial apreendida pela dupla enquanto Casa, nos limites do Concelho de Montemor-o-Novo. Casa essa, aberta à comunidade local, que ia chegando, paulatinamente, afinal: “toda [a] paisagem apresenta uma espécie de velocidade própria, que corresponde à forma do encontro entre o que chega e a sensibilidade que para ali se transporta”. [2]
Casa Paisagem, projeto por Aidel, 2021 © Riccardo De Vecchi
Não é à toa que a imagem do presépio aparece como chave simbólica possível para aceder a este projeto. Quando a proponho, a Cristina questiona-me se se usa a mesma palavra italiana em língua portuguesa, e recorda-me que o primeiro presépio foi criado por São Francisco de Assis — cuja atitude ecológica, ou Terra experienciada, tanto nos poderia ainda ensinar; inclusive, porque no despojamento tornado regra franciscana é o monge quem faz o hábito, e não o contrário. As ordens mendicantes como os franciscanos, clarissas ou dominicanos foram desde sempre as mais presentes em território português, dando origem a um gótico horizontal, em particular, no Alentejo, onde a horizontalidade da paisagem de Montado adia o pôr-do-sol, fazendo ressoar, pela demora, a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade através da renovada aliança com a Terra.
Mas este é Um Presépio aberto, refiro-me a um texto de Agustina Bessa-Luís escrito em Outubro de 1983, em torno de uma carta escrita por Franz Kafka, por sua vez, no Outono de 1921, dirigida à sua irmã Elli Hermann, a propósito da educação do seu sobrinho Felix de então dez anos, carta essa que, segundo a escritora, “situa Kafka numa luz pedagógica que esclarece a sua obra”. [3] Surpreendentemente, o texto de Agustina rasga um limiar; abre-nos para um sentido mais amplo e profundo do ecológico, i.e., mais eficaz, porque em direção ao nosso próprio abismo — O exacto contrário da história-histeria do “panfletário”, tantas vezes tornado personagem dos seus romances, para nos dar a conhecer estes arautos do “maior dos escândalos ao nível da divulgação dos conhecimentos [que] é insignificante se se distrai a pessoa desse profundo ermo onde não entra o pensamento”, pois a educação atual tende à “dispersão de todas as dúvidas da auto-observação”, conduzindo, acrescenta-se aqui, à total desresponsabilização, desimplicação…a intimar o íntimo, enquanto chave em-cada-um-de-nós para cuidar da Terra. Cada vez mais, “Tudo se consome como espetáculo não podendo ser conhecido como matéria profunda. Fica-se no domínio do egoísmo, que assume o papel do Bem e do Belo”. [4]
Na referida carta, Kafka fala de “baixeza", dir-se-ia, de uma horizontalidade, enquanto “factor de saber e experiência” dado que o jovem abastado é neste sentido, por egoísmo dos pais, privado de se saber “sangue do sangue dos outros”, [5] e todo o conhecimento por si adquirido por mérito, da música ao desporto, torna-se assim por acumulação fonte de tédio, podendo ficar “congelado” dos dez aos setenta anos, na medida em que “nada de sobre-humano intervém como guia desses conhecimentos”. [6] A proposta de Timothy Morton em Being Ecological, bem mais recente, é precisamente, que não tenhamos que ser ecológicos, pois já somos, que consideremos outras ordens de aceder ao mundo, ordens essas que não sabemos se mais inteligentes — de insetos a objetos inanimados — para interpolar o problema da ecologia. Assim como, que conheçamos as nossas sombras, e saibamos reconhecer que quando apontamos o dedo com demasiada cólera para o Outro, talvez estejamos a evitar (re)conhecer a nossa implicação no mundo, fazendo o filósofo britânico várias vezes referência à psicanálise de Sigmund Freud [7]. É assim, portanto, que o obscurecimento do nosso entretecimento vital tem vindo a dar lugar a um entretenimento mortal.
Segundo Agustina, interpolar o tédio em Kafka, é precisamente permitir essa abertura ao mundo, intimamente ancorados, no “profundo ermo”. Só habitando o “profundo ermo" — conhecendo @ alter-nativ@ — é que podemos sentir o verdadeiro compelir para o Outro como é — a alteridade ou a alternatividade. Diz-nos a escritora: “Kafka dá como exemplo o nascimento de Cristo num presépio aberto onde o mundo é imediatamente presente na figura dos Reis Magos e dos pastores”. [8] Mas não se pense que Agustina se refere “às formulas dum comportamento que visa o perpétuo recomeçar” e portanto o congelar da ação sob o rótulo da divulgação do seu contrário [9] — Somos a Terra, estamos no mundo. “Como vêem, a obra de Kafka é minuciosa e não se reduz a dois ou três livros célebres. Ele é um presépio aberto, um facto messiânico de nascimento em que o mundo está presente. Todos nós o podemos abordar, visitar, amar”. [10] Sem qualquer auto-proclamação messiânica, por parte da dupla, o projeto da Cristina e do Marco é também este. Reconhecê-lo como Um Presépio Aberto é, paradoxalmente, morremos um pouco mais para um certo provincianismo global que envolve as grandiosas programações de arte e arquitetura, e por conseguinte, as suas grandiosas produções.
Num momento em que Lisboa acolhe a Trienal de Arquitetura sob o tema Terra, por crer que “Cronos não é o único programador” — e socorro-me de palavras longínquas de João Bénard da Costa — “Se o fosse, Zeus nunca teria chegado a grande e tinha sido mais um dos filhos devorados [11] — encontro-me com a exposição Casa Paisagem, que aliás não faz parte da Trienal, nem de nenhum dos seus eventos associados, no dia em que foi agendada uma conversa com a dupla e o fotógrafo, assim como com Margarida Carvalho, curadora do Museu da Paisagem; Mariana Castro, arqueóloga da paisagem e Natalie Woolf, artista e educadora. Enquanto arquiteta, Cristina começa por nos falar da ironia que envolve o documento de autorização da instalação/performance artística por parte da Divisão de Ambiente, Ordenamento do Território e Urbanismo, do Município de Montemor-o-Novo, na medida em que autoriza, precisamente, do ato de não construir. Todavia, e tendo presente o tal ‘lugar ermo para o pensamento’, o documento torna poeticamente mais claras as seguintes palavras de Martin Heidegger, da conferência “Construir, Habitar, Pensar”, tão cara a alguns arquitetos: “Somente em sendo capazes de habitar é que seremos capazes de construir”. [12]
A constelação dos autores e imagens que proponho neste ensaio, esteve, de certo modo, exposta sobre uma mesa na exposição: O documento é exposto lado a lado com desenhos e maquetes de barro, que não apenas nos lembram figuras de presépio, como essas outras escalas de nos encontrarmos com o mundo e a sua inteligência; como a das formigas e os seus trilhos tornados traços na paisagem, que inevitavelmente — porque o projeto dos Aidel é, de certo modo, a própria criação de hospitalidade e portanto disponibilidade para o Outro —, se cruzaram com os trilhos tornados traços também na paisagem, deixados pela Cristina e pelo Marco, através da sua vivência enquanto Casa, i.e, enquanto o oikos de ecologia. No jogar das escalas, nada há de arquitetos demiurgos na concepção destas maquetes de Terra. E, a pureza enquanto estado de tensão cocriativa, é colocada ao serviço da suspensão da descrença, do que é; do que está para lá do que podemos conceber dentro dos limites da nossa mente — demasiado — humana, aquilo que nos escapa, pois está nesse abismo entre a coisa e o modo como a coisa nos aparece. [13]
Procuraram investigar através dos limites do corpo — até onde vejo, escuto, cheiro, sinto…etc. — esse imenso fora como um dentro. Enquanto performance e arquitetura, a obra dos Aidel é o (re)conhecimento das propriedades de exposição e de abrigo da Terra. Neste sentido, o seu projecto, enquanto um projectar-se, implica-nos num ajuste de temporalidades, confrontando-nos com a voracidade dos nossos ‘quereres’ ou ‘teres’ — a cultura intensiva do nosso tempo — em detrimento do Ser. Não erguem por isso paredes, pavimentam o chão ou constroem um tecto e alegram-se com a possibilidade de ter núvens dentro de casa. Procuraram antes encontrar limiares; compreender internamente, fazendo recurso à mediação do corpo que também é Terra, o que cessa e o que dá início; o que agride, o que protege…até onde? Quem responde é a Paisagem, em íntimo acordo com a Cristina e o Marco, como n’Um Presépio Aberto “onde o mundo é imediatamente presente”.
E, a resposta é sempre uma escuta ativa, um novo espaço criado dentro, e por conseguinte, uma arquitetura. Como referiram na conversa, “ler a morfologia da paisagem como se fosse arquitetura”, e só então encontrar os espaços da casa, o seu programa; a sala, o quarto, a cozinha etc., mapeados através de uma seleção de objetos, mobiliário e infra-estruturas, que transportaram para o lugar. Porque a Casa é aberta é preciso aceitar a proteção estavél da elevação da colina para o quarto, já que a sombra dos sobreiros é instável. As paredes são feitas de distâncias; essencialmente de gradientes sonoros e visuais, medidos pela atenção e pelos passos, que desdobram novos sentidos para o que podem ser pégadas ecológicas.
Interessou-lhes deixar o mínimo de traços na paisagem, investigando os traços que a paisagem lhes deixou no corpo, falam-nos por isso de uma experiência corpórea e intercorpórea; referem-se, objetivamente, aos arranhões, às picadas de insectos e até aumento da massa muscular, devido ao acréscimo de tarefas diárias e distâncias a percorrer. Na conversa, Margarida Carvalho recorda-nos, precisamente, da “infinita fragilidade que todos somos feitos, tantas vezes esquecida — demasiadas vezes — e que esta sua presença reflexiva, leve e afetiva no lugar, possa aprofundar este diálogo”.
Casa Paisagem, projeto por Aidel, 2021 © Aidel
E que outro diálogo estará por acontecer, se não um diálogo de implicação mútua? Ainda que a Terra, como sabemos, não precise de connosco nada dialogar, muito menos negociar. Entre os objetos escolhidos, há um pequeno espelho posicionado de maneira a apenas refletir o entorno, e não essa miragem do que somos; o que nas selfies aparece é menos importante do que sentir o ADN partilhado. Como se de um neurónio espelho se tratasse, é intencionalmente posicionado ao lado da indicação do ano de recolha da cortiça de um sobreiro, porventura, expondo o símbolo da ferida narcísica e o pacto de a sarar — não fosse este um afeto exclusivo de humanos, porém, tão determinante no modo como se torna para nós insuportável a solidão criativa; como a substituímos pelo consumo, ou até, no triste modo como glamorizamos os desafios ambientais. Vemos, tantas vezes, o vigor da urgência de medidas concretas ambientais ser desperdiçado nas urgências várias de atenção de ambientalistas emergentes.
Mariana Castro, arqueóloga da paisagem, por sua vez, lembrou-nos que “paisagem é o território vivido através do olhar humano, não existe uma paisagem sem o ser humano […] mas hoje, dentro da geografia humanista, que tem vindo a influenciar muito a arqueologia, opõe-se à ideia de território, e é vista como uma entidade relacional”. Sendo esta uma Casa Paisagem — e não na paisagem — ela constitui acima de tudo uma possibilidade de renovação do olhar humano através desse habitar que nos fala Heidegger, o único que nos permitirá construir. Esse habitar que demanda solidão, e que é sinónimo de Ser, pois “Ser é habitar, em criativa continuação, o seu próprio inacabado e do mundo”. [14]
No centro do espaço expositivo, em Lisboa, vemos a arqueologia da sala de estar da Casa Paisagem. Cristina e Marco — atrevo-me a indagar e enquanto dupla de criadores — parecem dar abrigo à solidão de cada um. A sala de estar é uma conquista recente por parte das classes pobres. Talvez o presente da “baixeza” a que se refere Agustina enquanto “factor de saber e experiência” e que os Aidel, de modo messiânico nos ofereçam, seja a sua metamorfose em sala de Ser. E, talvez como Kafka, estejam numa encruzilhada:
Kafka está na encruzilhada duma nova forma de pureza e sensibilidade. Ouçamos Kafka: "Duma maneira geral compreendi que é uma grande prova e força para uma desgraça a de continuar a dominar constantemente um ser na solidão. A solidão é mais poderosa do que tudo e impele-nos de novo para os homens. Em seguida, naturalmente, tenta-se encontrar outros caminhos, aparentemente menos dolorosos, na realidade simplesmente desconhecida ainda". Estas são palavras, que se encontram na Recordação do caminho de ferro de Kalda, são muito reveladoras dum génio inovador e perfeitamente de acordo com o seu século na perseguição dum caminho que sai do humano. São ainda palavras de Kafka. A solidão perde todo o seu equívoco e atinge o auge. Onde nos levará? A perseguição desse caminho, o assalto contra a última fronteira terrestre, começou já. Isso exige o génio, génio que tempera as forças nos séculos passados, que mal começam a ser dispensadas e estão longe de serem apenas atributo de Kafka. O presépio aberto alude a isso, e representa o génio comum em que a solidão perde o seu mal-estar e a sua fraude. [15]
E por génio, lembro-me das nunca reveladas prerrogativas de se ser ingénuo, a par do sentido de génio comum, segundo Agustina com Kafka — ou de in-génio porque conhecido pela interioridade; i.e., pela solidão. Trata-se agora de um aforismo não de Kafka, mas de Piet Hein, a saber, presidente da liga antinazi dinamarquesa durante a 2ª Grande Guerra Mundial. No período da ocupação Nazi, na clandestinidade, inventou e fez circular gruks, que nada mais são do que aforismos. Este, com que termino, tem o título de “Ingénuo”:
Ingénuo és, / se acreditares / que a vida não favorece os ingénuos. [16]
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Aidel
É uma dupla formada pela artista Cristina Gallizioli e pelo arquiteto Marco Ferrari. A sua abordagem recorre a práticas artisticas enquanto modo de investigar o espaço arquitetónico, estando particularmente interessados em revelar as relações entre corpo, arquitetura e paisagem.
Riccardo De Vecchi
É um fotógrado com formação em arquitetura sediado em Roterdão. Depois de obter o grau de mestre na Universidade Técnica de Delft, tem-se vindo a focar e a desenvolver uma abordagem multidisciplinar dirigida ao design e comunicação visual, baseada na relação mútua entre as duas práticas. Atualmente trabalha como fotógrafo independente, colaborando com empresas de arquitertura e design, artistas e instituições públicas, assim como desenvolvendo os seus próprios projetos autorais.
Madalena Folgado
É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.
Notas:
[1] Agustina Bessa-Luís, “Um Presépio Aberto”, in Contemplação carinhosa da angústia, Lisboa, Guimarães, 2000, pp. 133-143.
[2] Jean-Marc Besse, Ver a Terra: Seis Ensaios sobre a paisagem, São Paulo, Perspectiva, 2006, p. 111.
[3] Agustina Bessa-Luís, op. cit., 2000. p. 133.
[4] Cf. ibid., quanto ao problema do egoísmo, considerado pela escritora como tema agitador e revolucionário em Kafka, aqui, referindo-se aos pais, com consequências severas na nossa sociedade, dir-se-ia, hoje mais do que nunca, visível no modo como se aparece nas redes sociais, pp. 136, 137.
[5] Ibid., p. 134.
[6] Ibid., p. 135.
[7] Cf. Timothy Morton, Being Ecological, Sl., Pelican Books, 2018.
[8] Agustina Bessa-Luís, op. cit., 2000. p. 137.
[9] Ibid. p. 139.
[10] Ibid. p. 137.
[11] João Bénard da Costa, “O dom das lágrimas”, in Público, 4 de Outubro 2002, consultado a 13 de Outubro 2022.
[12] Martin Heidegger, “Construir, Habitar, Pensar”, in Martin Heidegger, Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2012, p. 139.
[13] Cf.Timothy Morton, op. cit., 2018, quanto ao buraco transcendental e os hiperobjectos p. 22.
[14] José Tolentino Mendonça, A mística do instante, Prior Vellho, Paulinas, 2014, p. 166.
[15] Agustina Bessa-Luís, op. cit., 2000. pp.142, 143.
[16] Piet Hein, Gruks, Lisboa, Morais, 1973, p. 16.