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SOBRE O ESPAÇO DE REPRESENTAÇÃO MODERNO
PEDRO BELO RAVARA
No primeiro livro dos Dez Livros, Vitruvius apresenta-nos a vista profunda ou penetrante sobre os edifícios de arquitectura como uma sucessão de planos, denominando-a de cenografia. SCIOGRAFIA, correspondia ao corte do espaço, de forma a conseguir-se uma vista através dos interiores de um dado edifício. A planta, ou a marca desse edifício no solo, como que pegada, que acusa não só a sua estrutura interior mas como a relação entre os seus compartimentos, corresponde à vista iconográfica, ICHNONOGRAFIA, não sendo nunca visível, mas e só, intelectualmente construída. A descrição das alturas da construção, a planificação dos alçados, ou vistas de frente, laterais e tardoz, são as vistas ortográficas, ORTHOGRAPHIA, apenas as faces exteriores do invólucro do espaço interior (1).
A estes três tipos de representação associam-se valores diferentes, à planta, valores iconográficos, do sentido e da organização, aos alçados, das suas vestes ou revestimentos, afinal do seu aspecto, e o do corte pelo interior, que acusa a profundidade, as transparências e as opacidades entre planos que definem a sequência cenográfica.
Esta vista através de acompanha a produção artística até aos nossos dias, sendo potencializada a sua representação através da invenção da perspectiva. No entanto, e devido à descoberta da perspectiva como método científico de descrição espacial, os sentidos últimos para que tendem cada um dos tipos de representação clássica, perdem-se pelo simples entendimento da geometria de Monge, como vistas em corte, planta e alçados.
Erwin Panofsky percorre os sentidos da perspectiva e vistas, que atravessam a produção pictórica, remetendo-se a arquitectura aí representada como garante dos efeitos de perspectiva, e como tal da vista através do espaço, ou das salas (2). O sentido das diferentes perspectivas configura duas situações diferentes sobre a noção do espaço interior, sobre o qual a arquitectura se centra: a- a sala ou espaço apresenta-se como unidade própria, destacando-se figuras e imagens nela introduzidas; b- a sala ou espaço é uma continuidade de acontecimentos, de escalas e valores diferentes, nas quais se representam, também, as figuras e imagens. A diferença entre o primeiro e o segundo tipo de representação pictórica da perspectiva, reside essencialmente na condição antropomórfica do primeiro tipo face à descorporização do segundo tipo de representação (3).
Infinitude resolve sentidos ontológicos da religião e cultura calvinista, apresentando uma nova dimensão para a existência do homem na terra, esta última já de dimensão supra-psicológica ou supra-espiritual.
Igualmente, a perspectiva, nomeadamente as novas perspectivas dos novos espaços góticos do norte da Europa, tornam-se mais transparentes a uma profundidade também ela de dimensão infinita (4).
A perspectiva passa de palco, de constituição simbólica da sala através do efeito cenográfico de Vitruvius, a um espaço contínuo e infinito, de dimensão também parapsicológica.
Saliente-se, que esta perspectiva sobre linha de infinitude, demonstra uma capacidade iconográfica porque combina no seu desenho, representações ortográficas e iconográficas, em que a planta é representada sobre a dimensão da profundidade. Assim a profundidade entre dois corpos, ou o vazio entre eles, passa a ter uma dimensão simbólica na representação artística (5).
Esta possibilidade de leitura por camadas diversas, representando-se, inclusive, sentidos diferentes a cada uma delas, permite leituras diversificadas das obras (ou representações nelas existentes) de acordo com o olhar cultural do observador.
A transparência consiste na capacidade de leituras de vários planos de realidades sobre o plano de representação, seja a obra uma pintura ou uma obra de arquitectura.
A transparência de uma obra e de um edifício, lê-se através da percepção de diversas profundidades, sejam elas traduzidas pela imaterialidade mais ou menos relativa do material (caso do vidro ou da luz) ou pela opacidade dos planos colocados em cena, através de aberturas e variações que permitam ler um segundo espaço, e aí por diante (6).
A transparência de um palácio como o Cádoro não consiste nas características únicas da sua materialidade, mas na capacidade de materializar uma construção que nos ofereça a possibilidade de ver através de, seja de uma forma literal, seja sob a forma da descoberta do olhar.
A esta forma de descoberta, corresponde a transparência fenomenal (7) que respira de certos sentidos e entendimentos sobre o construído sem os quais as leituras serão necessariamente divergentes.
Colin Rowe e Robert Slutzky, em Transparência Literal e Fenomenal, concluem que é essencial diferenciar as espécies arquitectónicas que oferecem leituras através de uma transparência literal (em que a característica do material é predominante) das de uma transparência fenomenal (em que a opacidade do material é inevitável). Sobre esta diferenciação Rowe e Slutzky nomeiam o edifício escola da Bauhaus, em Dessau, como exemplo do primeiro caso e a Villa Stein (Garches) como exemplo do segundo caso de transparência (8).
Poder-se-á fazer uma ligação iconográfica entre os dois tipos de transparência, literal e fenomenal, com os dois mundos da perspectiva de Panofsky, a que à transparência literal corresponderá uma perspectiva unificadora e infinita, e à fenomenal uma perspectiva autonomizada dos espaços, mais corporizada e também, por isso, finita.
No fundo, o simbolismo entre qualquer coisa unificadora e infinita e outra autónoma e finita, resume em si aspectos essenciais da nossa cultura cristã, nomeadamente após as cisões da igreja no tempo da Reforma.
A perspectiva linear, método racional de representação de raiz escolástica renascentista italiana, substitui o espaço dos planos de profundidade pela ordem representativa da linha. Os espaços, interiores e exteriores, definem-se pelas suas esquinas, limites, encontros e perfis lineares. O valor da Geometria Descritiva enquanto método científico de organização e agregação espacial substitui uma tradição empírica sobre ocupações e potencialidades espaciais de raiz mais representativa, ou se se quiser, pictórica (9).
A questão da representação simbólica em arquitectura, com o movimento moderno, sintetiza uma tradição secular sobre a iconografia do desenho e pintura na arte ocidental. Genealogicamente a arquitectura do movimento moderno situa-se numa dialéctica de antagonismos entre culturas do norte e do sul, correspondendo a cada uma delas as imagens e ideais culturais específicos à tradição calvinista e católica.
Este antagonismo poder-se-á ler nas obras de arte da pintura e arquitectura como o fizeram Rowe e Panofsky, remetendo a leitura da historiografia sobre o International Style para uma continuidade reaccionária, e não revolucionária, sobre tudo o que o precedeu.
A invenção da perspectiva linear e mais tarde do método de projecção de Monge, retira valores representativos próprios das vistas de Vitruvius, para genericamente as considerar como apenas vistas, acontecendo que algumas delas são horizontais (as plantas) ou verticais (alçados e cortes) ou oblíquas (perspectivas). A frontalidade da representação pictórica dos mestres italianos renascentistas é ultrapassada pela inovação das vistas oblíquas de Albrecth Dürer (10), retirando o valor objectivo à sala contentor para lhe conferir um valor subjectivo de espaço contínuo. A figura humana deixa de se centrar como medida para ser um interveniente ocasional que lhe apenas confere escala. Os interiores das Le Carcieri de Piranesi representam um mundo de interioridades cruzadas, de escalas disformes demonstradas através da figura humana que aí aparece de forma circunstancial.
Mas na arquitectura moderna, nomeadamente nas duas vertentes genealógicas perceptivas identificadas por Rowe e Slutzky, a frontalidade versus a vista oblíqua, ou de canto, inspira obras de transparências mais opacas e de sentidos mais figurativos, versus outras de características mais abstractas e imateriais como que revogando um direito a uma existência de invisibilidade (11).
A subjectividade do espaço arquitectónico moderno (quase sideral) é passível de ser totalmente representado através do uso da perspectiva axonométrica, objecto de design por si só validado. Desta forma a axonometria torna-se peça de representação querida dos arquitectos modernos, representando o edifício como objecto “sem escala”, cujo exemplo acabado será o desenho de Alberto Sartoris para a Notre-Dame du Phare, que servirá, inclusive, de capa a Modern Architecture: a critical history, de Kenneth Frampton.
Referências no texto:
(1) Vitruvio, M., "I Dieci Libri DellÁrchitettura", tradução e comentários de Daniele Barbaro, Bardi Editore, Roma, 1999, páginas 30 a 32.
(2) Panofsky, Erwin, "Perspective as Symbolic Form", Zone Books, New York, 1997.
(3) Ibid, páginas 47 a 56.
(4) Ibid, páginas 65 e 66.
(5) Ibid, páginas 67 e 68.
(6) Rowe, Colin, "Transparency: Literal and Phenomenal", Part II, in "As I Was Saying: Recollections and Miscellaneous Essays", Vol One, Texas, Pre-Texas, Cambridge, edição de Alexander Caragonne, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1996, páginas 73 a 106.
(7) Rowe, Colin, com Robert Slutzky, "Transparency: Literal and Phenomenal", in "The Mathematics of the Ideal Villa and Other Essays", The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 11ª edicão, 1997, páginas 159 a 183.
(8) Ibid.
(9) Panofsky, Erwin, Perspective as Symbolic Form, Zone Books, New York, 1997, pág. 70.
(10) Ibid, páginas 68 e 69.
(11) Rowe, Colin, com Robert Slutzky, Transparency: Literal and Phenomenal, in The Mathematics of the Ideal Villa and Other Essays, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 11ª edição, 1997, páginas 159 a 183
Pedro Belo Ravara, arquitecto
Master of Architecture pela Sate University of new York, Buffalo, 1991.
Doutorando pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa