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“DELIRIOUS NEW YORK” EXPLICADO ÀS CRIANÇAS
LUÍS SANTIAGO BAPTISTA
Faz em 2008 trinta anos sobre a publicação original de Delirious New York de Rem Koolhaas. Apenas este ano, passadas três décadas, vemos finalmente surgir uma tradução portuguesa. Ainda hoje não verdadeiramente compreendido na sua relevância, DNY apresenta-se como o livro mais importante da segunda metade do século XX no campo da arquitectura, tal como Vers une Architecture de Le Corbusier (1923) o tinha sido na primeira metade. A analogia entre os dois manifestos não é gratuita. Disciplinarmente, ambos redefiniram a arquitectura através duma imersão na problemática da sociedade em geral. Programaticamente, ambos repropuseram um novo plano de acção afirmativo para o arquitecto. Mediaticamente, ambos reinventaram a ideia do que é um livro de arquitectura. Não negando a importância de L’Architettura della Citta de Aldo Rossi (1966), de Complexity and Contradiction in Architecture de Robert Venturi (1966), de Progetto e Utopia de Manfredo Tafuri (1973), de Learning from Las Vegas de Venturi, Scott-Brown e Izenour (1977) e Collage City de Colin Rowe e Fred Koetter (1978), DNY detém um outro alcance, abrangência e persistência disciplinar. DNY é um dos livros mais desconstrutivos dos fundamentos da arquitectura como disciplina. Com esta publicação seminal, deslocam-se as posições disciplinares, reescreve-se a história da modernidade arquitectónica, redefine-se a relação entre a teoria e a prática, reorienta-se o papel do arquitecto na sociedade e restabelece-se a conexão profissional com a realidade produtiva. Por outro lado, DNY apresenta-se como um dos maiores actos visionários da história da arquitectura. A concepção avançada por Koolhaas não é simplesmente da ordem do desejado e do imaginado, mas do antevisto e adivinhado. Para lá das dimensões utópica e idealista normalmente associadas ao campo do visionário, DNY apresenta por antecipação a nossa contemporaneidade realizada, por isso pré-vista, prevista.
Prospectiva / Retrospectiva
Delirious New York apresenta uma desconstrução dos regimes da temporalidade moderna, fundindo a lógica prospectiva do manifesto com a evidência retrospectiva do exemplo histórico. Este acto crítico é realizado por Koolhaas através do recurso à enigmática figura do «manifesto retroactivo». Com esta designação conceptual, consegue aliar a força explosiva e disruptiva do manifesto para uma «cultura da congestão» à fundamentação inequívoca do material histórico de Manhattan. Esta estratégia é intencional e consciente: “Como escrever um manifesto – sobre uma forma de urbanismo do que permanece do século XX – numa época desiludida com eles? A fraqueza fatal dos manifestos é a sua inerente falta de evidência. O problema de Manhattan é o oposto: é um conjunto de evidências sem manifesto. Este livro foi concebido na intercepção destas duas observações: é um manifesto retroactivo para Manhattan. Manhattan é a Pedra de Roseta do século XX.”(1) Existe algo de estranho nesta ideia de «manifesto retroactivo». Tanto a ideia de constituição de um manifesto de algo já concretizado, como a análise de uma realidade histórica através da figura afirmativa do manifesto revelam uma estrutura paradoxal. O espírito de antecedência do manifesto cruza-se com a sua realização prévia. Os objectivos a realizar apontam para o já realizado. De facto, DNY configura-se num tempo fora dos eixos. Ao interceptar a abertura prospectiva com a herança retrospectiva, Koolhaas desconstrói as duas tendências dominantes da modernidade arquitectónica: por um lado, a vanguardista, com a sua vontade indómita de ruptura com o passado, e, por outro, a culturalista, com a sua necessidade premente de continuidade histórica. No limite, a temporalidade de DNY é estruturalmente híbrida, simultaneamente heróica e historicista, afirmativa e revisionista. O «manifesto retroactivo» de Nova Iorque é por isso tão descritivo quanto especulativo, tão analítico quanto propositivo. É um programa radical para o futuro fundamentado num passado delirante.
Projecto / Processo
Delirious New York redefine os pressupostos da modernidade arquitectónica, através da reescrita da história da arquitectura moderna. Invertendo a concepção dominante, DNY adopta uma perspectiva processual do projecto arquitectónico moderno. Para Koolhaas, o fundamento determinante da modernidade arquitectónica está na interiorização da emergente condição metropolitana, tendo em conta o seu impacto violento e consequentes rupturas irreversíveis nas dimensões social, económica e produtiva da existência humana. É neste sentido que Nova Iorque se pode apresentar como exemplo paradigmático: “Especialmente entre 1890 e 1940, uma nova cultura (a idade da máquina?) escolheu Manhattan como laboratório: uma ilha mítica onde a invenção e teste de um modo de vida metropolitano e a sua arquitectura respectiva podiam ser procuradas como uma experimentação colectiva na qual toda a cidade se converteu numa fábrica de experiência humana, onde o real e o natural deixaram de existir. (…) Manhattan como um produto de uma teoria não formulada, Manhattanismo, cujo programa – existir num mundo totalmente fabricado pelo homem, isto é, viver dentro da fantasia – era tão ambicioso que, para ser realizado, nunca poderia ser abertamente expresso.”(2) Este exemplo cirúrgico revelava não a perfeição dos modelos abstractos e idealizados do movimento moderno, mas a evidência concreta de uma realidade efectivamente construída. Para Koolhaas, Manhattan foi a modernidade em acto, em tempo real, ou seja, a concretização de um protótipo não formulado de uma «cultura da congestão». Nova Iorque era essencialmente um laboratório de experimentação da condição metropolitana. E esta eleição implicava a inversão da concepção moderna, uma vez que afirmava a prevalência da realidade sobre o conceito, da acção sobre o pensamento. Se o programa moderno se plasmava em modelos unitários e universais, esta «outra modernidade» constituia-se de forma inesperada e imprevisível, sem modelo prévio nem teoria estabelecida. Para Koolhaas, ao contrário dos teóricos modernos, é a dinâmica do processo produtivo que alimenta o projecto conceptual. Mas essa abertura à indeterminação dos processos produtivos não negava a dimensão emancipatória que caracterizou a modernidade arquitectónica. De facto, a não formulação do projecto não implica a sua inexistência. Inversamente à concepção moderna, que separa o projecto modelar do processo produtivo, tornando o primeiro essencial e um segundo circunstancial, Koolhaas defende a sua coexistência e determinação mútua. Por isso, qualquer mutação no processo implica uma redefinição do projecto, e vice-versa.
Público / Privado
Delirious New York reorienta as relações produtivas entre o interesse público e a iniciativa privada, tendo em conta a centralidade da dimensão programática da arquitectura. Como «capital da crise perpétua», Manhattan podia ser a verdadeira realidade revolucionária ambicionada pelos arquitectos modernos através da mutação radical dos modos de vida. A condição metropolitana, como fenómeno histórico incontornável, pressupunha que a arquitectura moderna mais do que delinear um plano disciplinar, passava pela imersão num turbilhão incontrolável de movimentos de transformação de natureza social, económica, produtiva, técnica e tecnológica. E esse explorar dos limites da possibilidade tendia naturalmente para o excesso, fomentando a densidade e congestão, e para o imprevisível, produzindo inovação e mutação. Só através desta equação se torna possível compreender o extremar da lógica capitalista como força positiva de produção revolucionária de realidade. Esta é a tese central de DNY, a realização da verdadeira revolução social está na exacerbação do modo de produção capitalista. Neste sentido, em vez de entender o projecto moderno como um contrariar da lógica capitalista, como o defenderam os arquitectos modernos europeus, Koolhaas compreende-o como a sua realização plena e absoluta. O verdadeiro programa moderno, a «cultura da congestão», resulta do funcionamento produtivo da máquina capitalista no espaço territorial, urbano e arquitectónico da metrópole, quando exponenciada pela invenção tecnológica e pela imaginação humana. Disciplinarmente, DNY realiza um duplo movimento, criticando violentamente o heróico programa arquitectónico moderno, ao mesmo tempo que possibilita em novos termos a sua continuidade no presente. Koolhaas responde directamente à negatividade programática a que a historiografia europeia tinha chegado, com a consciência traumática da ingenuidade e ilusão profissional sobre a qual a arquitectura moderna tinha assentado as suas bases, ao procurar realizar a revolução social disciplinarmente através dos instrumentos da própria arquitectura. De facto, o historiador italiano Tafuri tinha, no final da década de setenta, desmontado as premissas do projecto arquitectónico moderno, demonstrando a sua dependência estrutural em relação às forças produtivas do capitalismo e assim revelado a insustentabilidade da utopia moderna. É a este beco sem saída disciplinar que Koolhaas responde com DNY, avançando com uma nova perspectiva libertadora da modernidade arquitectónica.
URSS / USA
Delirious New York reafirma a dimensão programática da disciplina, conectando de forma improvável os fundamentos da cidade norte-americana à experimentação das vanguardas russas. DNY realiza uma sintese entre a lógica urbana norte-americana e a especulação programática dos construtivistas. Por um lado, a exigência de uma imersão nos desafios da realidade concreta, por outro, a necessidade de uma plataforma teórica que constantemente se confronte com ela. Sintomaticamente, dois projectos conceptuais, incluídos em anexo em DNY, atestam essa inesperada fusão entre os contextos norte-americano e soviético. Se, por um lado, em The City of the Captive Globe de 1972, Koolhaas incorporava “uma primeira exploração intuitiva da arquitectura de Manhattan, desenhada antes da investigação substanciar as suas conjecturas”, por outro, com The Story of the Pool de 1977, o arquitecto presta tributo aos construtivistas russos, propondo alegoricamente uma conexão estrutural entre a Rússia revolucionária e Nova Iorque. Em termos gerais, DNY propõe uma nova perspectiva da história da cidade norte-americana, como berço de uma verdadeira cultura metropolitana, invertendo radicalmente as visões tradicionais da historiografia da cidade. Efectivamente, os teóricos da cidade sempre olharam com condescendência para a urbanização norte-americana, devido ao seu carácter estritamente pragmático e utilitário, considerando-a um derivado inconsistente dos modelos urbanos europeus. Para Koolhaas, estas fraquezas são nem mais nem menos que as suas virtudes. A força oculta da cidade americana, a “metrópole do caos rígido”, estava precisamente na sua interiorização do imprevisível e impensável. A «cultura da congestão» emergia exactamente da «disciplina bidimensional da grelha» que potenciava a «anarquia tridimensional». Neste sentido, as inovações americanas, a saber, a neutralidade da «grelha», a autonomia do «bloco» e a indeterminação do «arranha-céus», são a própria base da condição metropolitana. Em primeiro lugar, a «grelha», manifestando a «superioridade da construção mental sobre a realidade», apresenta-se como um acto fundador desmesurado, impondo sobre o território uma regra unificadora, nada propondo em avanço: “efectivamente, é o mais corajoso acto de previsão da civilização Ocidental: o terreno que divide, desocupado; a população que descreve, conjectural; os edifícios que implanta, fantasmas; as actividades que insere, não existentes.” (3) Em segundo lugar, o «bloco», sem definição morfológica e tipológica prévia além do seu limite perimetral, revela que a sua rigidez e autonomia geométrica é inversamente proporcional à sua indeterminação programática e formal: “Uma vez que os blocos de Manhattan são idênticos e enfaticamente equivalentes na não declarada filosofia da Grelha, a mutação num único lote afecta todos os outros como possibilidade latente: teoricamente, cada bloco pode agora tornar-se um enclave auto-contido do Irresistível Sintético.” (4) Em terceiro lugar, o «arranha-céus», como processo de capitalização por «extrusão», afirma-se como o modelo lógico da «cultura da congestão», revelando a «discrepância entre contentor e conteúdo» através da cisão irreversível entre a «instabilidade programática perpétua» interior e a «auto-monumentalidade» exterior: “O Arranha-Céus é o instrumento de uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar da sua solidez física, o Arranha-Céus é o grande desestabilizador metropolitano.”(5) No entanto, Koolhaas sabe que os instrumentos base da cidade norte-americana não produzem por si só uma verdadeira realidade metropolitana. Se assim fosse, o seu elogio estender-se-ia não só à história recente de Nova Iorque, mas também à generalidade das metrópoles americanas. Para Koolhaas, algo de extraordinário aconteceu em Manhattan entre 1890 e 1940, fazendo de Nova Iorque um laboratório experimental extremamente produtivo. É aqui que a URSS do período revolucionário se aproxima desse momento feliz de Nova Iorque, partilhando uma vontade e empenho de entrar sem resistências na aventura criativa e produtiva metropolitana e revelando uma abertura aos efeitos inesperados e imprevisíveis das solicitações da realidade concreta.
Ideia / Exemplo
Delirious New York reinventa as estratégias de investigação da condição metropolitana, correspondendo conceitos programáticos a exemplos concretos. A sua força e fascínio residem exactamente na tradução de ideias claras em realidades históricas reconhecíveis. Todos os exemplos da história de Nova Iorque recuperados por Koolhaas não se limitam a uma apropriação circunstancial e particular, mas adquirem o estatuto de conceitos inerentes a uma cultura metropolitana. Em primeiro lugar, Coney Island, como «instrumento técnico compensatório», permite-lhe revelar a irrealidade e fantasia intrínsecas da cultura metropolitana que, com a sua «maquinaria que converteu a natureza original numa intricada simulação da natureza», tendia para a constituição de «realidades alternativas». Este exemplo de suplantação absoluta do natural pelo artificial expressa-se por isso nas ideias fundamentais de «irresistível sintético» e de «tecnologia do fantástico», evidenciando a capacidade da condição metropolitana para conciliar de modo inesperado a imaginação humana com os meios tecnológicos emergentes. Em segundo lugar, o Waldorf-Astoria, com as suas sucessivas intervenções, revela a tendência metropolitana para a adaptação à mudança tipológica e morfológica, uma «nova forma de canibalismo arquitectónico» que afirma a «criação e destruição irrevogavelmente entrelaçadas, eternamente restabelecidas». Este exemplo de transformação contínua de uma mesma parcela transmuta-se assim na ideia de impossibilidade de resistência aos ciclos de mutação programática e formal que fundamenta a dinâmica inexorável da condição metropolitana, ou seja, «a destruição é outra forma de dizer preservação». Em terceiro lugar, o Radio City Music Hall evidencia a independência dos blocos que, como «enclaves herméticos e auto-contidos», potenciam a emergência de «mundos ideais removidos do tempo e do espaço», tornando o «movimento da metrópole» numa «navegação ideológica entre os objectivos e promessas concorrentes das ilhas deste arquipélago metafórico». Com este exemplo, ressalta a ideia de que a concentração e densidade da metrópole tanto exponencia a contaminação e hibridização como gera autonomia e concorrência, expressando-se simbólica e metaforicamente na metrópole. Em quarto lugar, o Downtown Athletic Club, um verdadeiro «Condensador Social Construtivista», revela as potencialidades revolucionárias do arranha-céus na instauração de contaminação programática que, perante o seu desenvolvimento vertical e consequente irrelevância sequencial dos pisos introduzida pelo elevador, o transforma numa «máquina para gerar e intensificar formas desejáveis de contacto humano». Este projecto permite-lhe defender a ideia de hibridização programática como condição fundamental para uma arquitectura estruturalmente metropolitana, apresentando-se como «uma forma aleatória de planeamento da própria vida» e consequentemente a «rendição completa à instabilidade definitiva da vida na metrópole». Em quinto lugar, o Rockefeller Center, uma «obra-prima sem génio» que compreende «cinco projectos ideologicamente separados que coexistem numa mesma área», representa o «cumprimento da promessa de Manhattan» pela sua sintetização das experiências anteriores. Este complexo onde «a metrópole se torna perfeita» demonstra a submissão da criação arquitectónica e do arquitecto às forças produtivas da metrópole, não invalidando a sua participação activa nos movimentos de transformação urbana. O Rockefeller Center é o «manhattanismo» realizado, uma maturidade fugaz antes da decadência de Nova Iorque como laboratório experimental. Em suma, com estes exemplos significativos, define-se o programa de Koolhaas para uma existência metropolitana: Coney Island desenvolve o programa social assente na ilusão e alienação das massas; o Waldorf-Astoria apresenta o programa construtivo concretizado na consciência da efemeridade da materialidade urbana; o Radio City Music Hall anuncia o programa metafórico baseado na esquizofrenia e megalomania da encenação espectacular; o Downtown Athletic Club expressa o programa arquitectónico manifestado na invenção programática e formal; e, por fim e em síntese, o Rockefeller Center realiza o programa global materializado como criação colectiva e participada.
Consciente / Inconsciente
Delirious New York pressupõe um reposicionamento disciplinar do arquitecto, perante os desafios da modernidade arquitectónica, renunciando ao papel central da classe dos arquitectos no fenómeno da modernização. Anterioremente, Koolhaas já tinha desferido um dos mais violentos ataques à concepção moderna do arquitecto como agente central da modernidade arquitectónica, com a derradeira utopia de 1972 Exodus: Or the Voluntary Prisoners of Architecture. Koolhaas percebe desde cedo que a concepção moderna do arquitecto é uma enorme ilusão histórica, poderosa porque simultaneamente agregadora dentro da classe e irrelevante fora dela, ou seja, uma construção teórica potente porque associa uma mistificação profissional colectiva a uma autonomização disciplinar necessária à sua instauração. É deste duplo movimento que emergem as divergências profundas entre a auto-imagem do arquitecto e a visão que a sociedade tem dele. Com intencionais objectivos desconstrutivos, Koolhaas recorre à ironia do exemplo factual, explorando a deslocação simultânea de Dali e Le Corbusier a Nova Iorque para encenar um confronto entre ambos. Efectivamente, a qualificação que faz de Le Corbusier como «paranóico-crítico» e da arquitectura moderna como «actividade Paranóico-Crítica» apresentam-se como uma crítica estrutural às fundações heróicas da arquitectura moderna europeia, assentes numa megalomania e voluntarismo profissional: “Arquitectura = imposição no mundo de estruturas que nunca foram solicitadas e que existem previamente apenas como nebulosas de conjecturas nas mentes dos seus criadores.”(6) Tendo em conta o idealismo de Le Corbusier, Koolhaas não resiste à ironia corrosiva de ficcionar o seu confronto com o poder metropolitano de Manhattan: "É a esgotante ambição de Le Corbusier inventar e construir a Nova Cidade compatível com as exigências e glórias potenciais da civilização maquinista. É um azar trágico que, quando desenvolve essa ambição, tal cidade já exista, a saber, Manhattan."(7) E a inevitabilidade da comparação da sua Ville Radieuse dos anos 30 com Manhattan do mesmo período não pode deixar de se afirmar como um confronto disciplinar determinante para a própria definição da herança da arquitectura moderna para a contemporaneidade. O modelo heróico europeu contra o modelo metropolitano americano, não sendo inocente a interpretação depreciativa que o arquitecto franco-suíço faz de Nova-Iorque, com os seus arranha-céus como experiências embrionárias e «imaturas», demasiado empíricas e circunstanciais para se adequarem à pureza e racionalidade da cidade maquinista dos arquitectos modernos europeus. A Ville Radieuse é efectivamente uma «anti-Manhattan» e as suas torres transparentes, estereométricas e mono-funcionais o «anti-arranha-céus». Todas as características valorizadas por Koolhaas em relação a Manhattan, da sua flutuação funcional até à sua inconstância física, da sua neutralidade prévia até à imprevisibilidade futura, são veementemente criticadas pelo mestre europeu, cujo modelo se apresenta explicitamente como sua antítese. Koolhaas encontra na «congestão descongestionada» de Le Corbusier a inversão da sua «cultura da congestão». Uma cidade racional moderna, normalizada e regrada, totalmente esvaziada da animação, excitação e entusiasmo da vida humana.
Facto / Ficção
Delirious New York reinventa o texto teórico em arquitectura, confundindo deliberadamente facto e ficção, realidade e especulação. Como uma «reconstrução especulativa de uma Manhattan perfeita», DNY apresenta assumidamente uma «Manhattan teórica», uma «Manhattan como conjectura». É, na verdade, essa explícita dimensão ficcional que dá a esta obra fundamental o qualificativo de «delirante» plenamente acentuado no título do livro, conferindo-lhe uma posição absolutamente singular no panorama disciplinar da arquitectura contemporânea. Koolhaas não pretende realizar uma reconstituição histórica de Manhattan, mas uma reconfiguração ficcional, combinando e ligando os fragmentos da história através de uma estrutura assumidamente especulativa. Por isso, não está propriamente interessado na revelação da verdade do passado, nem oculta a sua fabricação e manipulação do material histórico. Confundindo abertamente verdade histórica e construção especulativa, Koolhaas assume que a própria capacidade de olhar a realidade por parte do arquitecto, começando por si próprio, está contaminada não só pelos seus desejos, vontades e paixões, mas também pelas suas frustrações, medos e ansiedades. Para Koolhaas não é só a realidade que é diversa e plural, também o arquitecto é um ser psicológico complexo. Por isso, DNY apresenta-se como uma construção textual declaradamente delirante, realizada com os fragmentos documentais da história e compilada com a ajuda do «método paranóico-crítico» de Salvador Dali: "a actividade Paranóica-Crítica é a fabricação de evidências para especulações improváveis e a subsequente introdução destas evidências no mundo, de modo que um facto «falso» tome o seu lugar ilegítimo entre os factos «reais»."(8) DNY é uma construção teórica simultaneamente real e ficcional, actual e histórica que apela, de forma paradoxal, racionalmente ao irracional e conscientemente ao inconsciente. E a ambiguidade e ambivalência estruturais desta estratégia textual servem acima de tudo a sua economia retórica e eficácia comunicativa.
Teoria / Prática
Delirious New York apresenta-se como uma redefinição do que é um livro de arquitectura, compatibilizando de forma original a relação entre a teoria e a prática arquitectónicas. Koolhaas é, de certa forma, o primeiro teórico da pós-modernidade em arquitectura, porque é aquele que para conceber a sua actividade necessita de desfundamentar a sua condição disciplinar. Sintomaticamente, todas as posições críticas contemporâneas de Koolhaas ainda encontravam um lugar de segurança disciplinar no qual basear o seu programa, seja na queda pluralista num relativismo generalizado, seja na inversão para uma negatividade absoluta, seja ainda na defesa intransigente de uma autonomia disciplinar. Em DNY, a assumpção do carácter especulativo da reconstrução histórica de Manhattan, a interiorização da natureza ilusória do projecto arquitectónico moderno perante as forças da modernização e o descentramento do papel do arquitecto no processo de transformação das sociedades não permitem a Koolhaas encontrar um ponto de apoio disciplinar estável e seguro. Se reconstrói exaustivamente a história da modernidade arquitectónica, declara explicitamente o carácter ficcional da sua análise. Se reafirma um novo programa para a arquitectura, salienta as limitações na sua relação com a realidade produtiva. Se reabilita a função do arquitecto na contemporaneidade, revela friamente a sua natureza psicologicamente auto-ilusória. É a partir desta condição disciplinar estruturalmente desfundamentada que Koolhaas, enquanto residia em Nova Iorque trabalhando no seu livro, funda em 1975 o atelier Office for Metropolitan Architecture, revelando a simultaneidade e complementaridade entre a actividade teórica e o trabalho prático. A inclusão em anexo destes primeiros projectos do OMA para Nova Iorque em DNY demonstra-o inequivocamente. Efectivamente, estas propostas de carácter essencialmente conceptual e metafórico resultavam explicitamente da aplicação projectual dos princípios do "Manhattanismo", definindo a sua inequívoca complementaridade: "Esta sequência de projectos arquitectónicos (…) solidifica o Manhattanismo numa doutrina explícita e negoceia a transição da produção arquitectónica inconsciente do Manhattanismo para a fase consciente."(9) É a sua «conclusão ficcional», o «produto provisório do Manhattanismo como doutrina consciente», que, «ao reinvindicar a promessa original de uma condição metropolitana», assume «a tarefa árdua da parte final deste século em lidar abertamente com as pretensões, ambições e possibilidades extravagantes e megalomaníacas da metrópole», fazendo-o «não através de palavras, mas através de uma série de propostas arquitectónicas». A relação entre o período áureo de Nova Iorque e os «projectos americanos» estava na transição da emergência inconsciente de uma doutrina não formulada do primeiro momento para a sua posterior aplicação programática consciente, potenciando a fundação radical de uma nova prática arquitectónica. Neste sentido, a formulação teórica do «Manhattanismo» funciona explicitamente como base programática para o desenvolvimento da prática arquitectónica do OMA.
Modernidade / Modernização
Delirious New York abre o campo teórico das práticas arquitectónicas contemporâneas, interrelacionando estruturalmente a base programática da modernidade à realidade produtiva da modernização. Koolhaas reinveste numa modernidade em processo, modernização portanto, um programa revolucionário e radical que se materializa em realidade vivida, envolvendo apaixonadamente as estruturas produtivas, a população e os arquitectos. Uma «experimentação» em tempo real, sem objectivos claramente definidos nem modelos pré-estabelecidos. Uma aventura que interioriza os fundamentos instáveis, imprevisíveis e dinâmicos da generalizada condição metropolitana. Se, por um lado, Koolhaas evidencia a dimensão «popular» inerente ao processo de modernização, por outro, percebe que, como fenómeno social e cultural alargado, ele se dirige aos desejos e fantasias do indivíduo, envolvendo por isso um carácter «hedonista». Koolhaas é o primeiro a desenvolver uma ligação estruturante e positiva entre arquitectura e capitalismo, enfrentando os desafios da emergente sociedade de consumo e comunicação generalizada. De facto, com DNY, inicia-se a destituição progressiva do conflito entre programa ideológico e realidade produtiva, entre a arquitectura e a lógica capitalista. Ao salientar os aspectos do fenómeno produtivo e social da modernização, o arquitecto holandês pretendia começar a ultrapassar a enquistada resistência disciplinar em relação ao sistema capitalista. No entanto, Koolhaas não defende uma simples submissão à lógica banalizadora e uniformizadora do mercado. Pretende essencialmente quebrar as resistências disciplinares às condições produtivas dominantes da contemporaneidade, abrindo assim a possibilidade de reafirmação programática da arquitectura. A possibilidade de uma «outra modernidade» emergente das potencialidades do próprio sistema capitalista. No campo da filosofia, Gilles Deleuze e Félix Guattari estavam, ao longo da década de setenta, a investigar as práticas sociais e culturais sob o signo da relação estrutural entre capitalismo e esquizofrenia. Num dos pontos decisivos dessa análise, defendiam radicalmente que as estratégias criativas não podiam ser pensadas em oposição à lógica capitalista, ou seja, a produção criativa contemporânea, dita «nomadológica» e «rizomática», era gerada pelo próprio funcionamento esquizofrénico da máquina capitalista, tornando as práticas artísticas constitutivas do próprio sistema. O projecto «delirante» de Koolhaas, delineado no mesmo período, pode ser entendido como uma das suas primeiras manifestações arquitectónicas. Tanto a dupla de pensadores francesa como o arquitecto holandês perceberam profundamente e com antecedência não só a natureza dos modos produtivos das sociedades do capitalismo tardio, mas igualmente o campo de possibilidades que eles abriam para as práticas criativas na contemporaneidade. Neste sentido, a importância crucial de DNY não pode ser circunscrita ao próprio livro e sua relevância na teoria de arquitectura contemporânea. A sua importância tem que ser encontrada no próprio percurso posterior de Koolhaas e do seu OMA, como realização na prática daquilo que DNY instaurava embrionariamente na teoria. Se Foucault, no campo do pensamento, afirmou peremptoriamente que o próximo século seria «deleuziano», não será, no território da arquitectura, o século XXI já koolhaasiano?
Luís Santiago Baptista
Arquitecto e crítico de arquitectura. Doutorando na FCSH.UNL. Mestre em Cultura Arquitectónica Contemporânea pela FA.UTL. Director da revista arq./a.
NOTAS
(1) Rem Koolhaas, Delirious New York: A Retroactive Manifesto for Manhattan (1978), New York, The Monacelli Press, 1994, p. 9, tradução livre.
(2) Idem, Ibidem, 1994, pp. 9-10, tradução livre.
(3) Idem, Ibidem, p. 19, tradução livre.
(4) Idem, Ibidem, p. 97, tradução livre.
(5) Idem, Ibidem, p. 85, tradução livre.
(6) Idem, Ibidem, p. 246, tradução livre.
(7) Idem, Ibidem, pp. 249-251, tradução livre.
(8) Idem, Ibidem, p. 241, tradução livre.
(9) Idem, Ibidem, p. 11, tradução livre.