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TERRA, TRIENAL DE ARQUITETURA DE LISBOA 2022. ENTREVISTA A CRISTINA VERÍSSIMO E DIOGO BURNAY
MADALENA FOLGADO, CRISTINA VERÍSSIMO E DIOGO BURNAY
11/07/2022
O tema Terra da Trienal de Arquitetura de Lisboa de 2022, proposto pela dupla de arquitetos Cristina Veríssimo e Diogo Burnay, implica-nos enquanto observadores a fazer zoom in e zoom out, de modo a refletir sobre a sua abertura polissémica. Em entrevista à ARTECAPITAL, os curadores dão-nos a conhecer os desafios desta sua proposta, assim como as novidades no âmbito das edições anteriores da Trienal. Desde já, um indicador positivo: A multiplicidade de abordagens ao tema revela a desejada sintonia à escala global. A sexta edição do evento decorrerá de 29 de Setembro a 5 de Dezembro.
Por Madalena Folgado
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MF: Comecemos por determo-nos na polissemia rica da palavra Terra, tema da Trienal de Arquitetura de Lisboa 2022 (Terra, TAL 2022), o que nos implica em pensar um conjunto de sentidos e ações, apenas possível através da língua portuguesa. Atendendo ao vosso percurso, que passa e passou, por exemplo, por lecionar em contextos culturalmente tão distantes do nosso país – e língua – como Hong Kong, Canadá ou Chile e Argentina, pergunto-vos se estarão também na génese da escolha deste tema – e palavra – as possibilidades da sua tradução pelo desenho –, e por conseguinte, as possibilidades abertas pela tradução da sua polissemia enquanto projeto, tendo presente ainda que traduzir, do latim, traducere e translatio, significa respetivamente, ‘levar adiante’ e ‘transferência’?
CVDB: A palavra Terra é uma palavra muito rica da língua portuguesa e também por isso decidimos que não haveria a necessidade de a traduzir. Terra procura também incluir essa diversidade de sentidos e significados. É uma palavra que também tem a capacidade de ser apropriada em múltiplas línguas. É sobretudo essa sua qualidade, essa sua generosidade e abrangência que também nos inspirou e motivou na escolha deste tema. O projecto, a intervenção arquitectónica através do desenho celebra também essa pluralidade e universalidade da presença e condição humana (e não só) no planeta, nos lugares e nas matérias da construção desses lugares a que chamamos também terra, a nossa terra.
MF: Citando-vos, a partir do dossier de imprensa, o que pode significar, e/ou que imagem nos podem oferecer, para um melhor entendimento da proposta de fazer evoluir o “[…] actual modelo de sistema fragmentado e linear, caracterizado pelo uso excessivo de recursos, para um modelo de sistema circular e holístico, motivado por um maior e mais profundo equilíbrio entre comunidades, recursos e processos”?
CVDB: O sistema linear em que vimos vivendo até hoje, tal como o nome indica, não faz ainda uma optimização que inclua a reutilização de recursos do Planeta. É importante e necessário que no futuro haja um melhor (re)aproveitamento dos recursos existentes, tendo em atenção no modo como se extraem esses recursos, dando tempo por exemplo às florestas para recuperarem. É também necessário repensar como os materiais utilizados entram num ciclo de reutilização/reciclagem que permite que o mesmo material ganhe vários ciclos de vidas e seja aproveitado para vários fins. Hoje em dia o recurso às altas tecnologias permite um aproveitamento mais criterioso e com menos desperdícios da matéria-prima, e ainda um controle do que podemos e necessitamos de libertar de CO2 para a atmosfera. Os sistemas circulares não se focam apenas nos recursos, mas em tudo que é necessário desde a recolha da matéria-prima em bruto, a sua transformação, ao transporte e à aplicação, bem como em todo os seus respectivos contextos socio-económicos. Esta Trienal foca neste tema em especial, porque os resíduos da construção civil estão entre os maiores poluidores do mundo. Esta Trienal dedica uma exposição a esta problemática sobre o tema dos materiais com o nome Ciclos.
As matérias-primas hoje em dias criam grandes assimetrias e iniquidades sociais e no modo como as comunidades se organizam e vivem no Planeta. Esta Trienal procura olhar para as múltiplas perspectivas e formas de vida de algumas destas comunidades com a exposição Multiplicidade. O objectivo dessa exposição é dar a conhecer estas perspectivas e condições, assimilar os mecanismos de aprendizagem que usam modelos de atividades humanas para explorar problemas de um mundo real e diversificado. Procuramos deste modo que esta exposição possibilite uma crescente consciencialização das percepções dessas situações e da agilidade das ações propositivas e comunitárias/humanitárias que lhes procuram dar respostas e construir alternativas para uma maior equidade e justiça social. Estes exemplos podem ajudar a questionar o modo como habitamos e construímos lugares neste planeta cada vez mais globalizado, em que a informação é cada vez mais virtual.
MF: Terra TAL 2022 conta com quatro linhas curatoriais: “Visionárias”, “Multiplicidade”, “Ciclos” e “Retroactivar”, abertas ao pensamento e práticas dos quatro cantos do mundo. Com o advento da Pandemia, estaremos mais abertos a criar lugares; a agir coletivamente – arquitetos e não-arquitetos –, pressupondo também que alguns de nós estejamos mais sintonizados? – Tenho presente o sentido de “tuning”[1], sobre o qual Timothy Morton, o filósofo do Antropoceno nos fala, e pedir-vos-ia que discorressem a partir da perceção geral que têm neste momento, em que já terminou o tempo de receção de propostas, nomeadamente, para o Prémio Concurso Universidades.
CVDB: As quatro exposições e os seus temas foram pensadas em conjunto e de forma profundamente interlaçada. O objectivo da Terra TAL 2022 foi sempre possibilitar que houvesse uma grande complementaridade entre as exposições. A diversidade dos temas e dos curadores foi também sempre um dado fundamental à partida, para que a TAL 2022 possa proporcionar oportunidades para se estabelecer um entendimento do pensamento e da prática de arquitectura mais diverso e inclusivo no modo como o sentido de emergência que atravessamos é abordado nos vários cantos do planeta Terra.
A diversidade de abordagens e propostas de lugares muito variados que foram apresentadas tanto para os projectos independentes e para o Prémio universidades, é já por si um sinal muito claro do que nos parece ser a pertinência dos temas desta Trienal. Sobretudo o que nos motiva é precisamente esse sentido de sintonia que sentimos que atravessa essa grande diversidade de propostas no modo como abordam a possibilidade de se contruir colectivamente lugares com os quais nos identificamos.
MF: Diferentemente de outras edições da Trienal, e pela primeira vez, o Prémio Concurso Universidades dirige-se ao mundo inteiro, assim como os trabalhos académicos distinguidos serão integrados nas exposições centrais. Podem-nos falar sobre um pouco sobre a importância da investigação, enquanto algo indissociável de uma prática de projeto, inclusive, após o momento académico, i.e., como ferramenta de ação; enquanto ‘tecnologia relacional’?
CVDB: Uma das primeiras motivações desta Trienal é dar voz a essa multiplicidade de abordagens a estes temas. Pareceu-nos também lógico, uma vez que temos dado aulas em vários sítios, que era absolutamente necessário dar voz a um número o mais alargado possível de universidades espalhadas por todo o mundo, cujo trabalho académico e de investigação aborda estes temas de forma muito diversa. Um dos objectivos desta trienal foi sempre o envolver futuras gerações de arquitectos e não só, uma vez que estes temas são extremamente pertinentes para um futuro mais ecológico do planeta Terra, com maior sentido de justiça social. Tínhamos também a expectativa de que muitos centros de investigação trabalham de forma transdisciplinar e isso pareceu-nos ser um dado também muito importante para aprender sobre , perspectivar e explorar outras formas de pensamento e práticas arquitectónicas.
MF: No início do ano corrente, encontrei-me com um texto de Ana Leonor Madeira Rodrigues, com perto de 30 anos, que ensaiava a ideia de ‘arquitetura enquanto cicatriz’. Por essa ocasião, senti algo de intemporal nas suas palavras, que desde já cito:
"Primeiro faz-se uma ferida na terra e depois remata-se para cicatrizar. Esse remate, a cicatriz, é a Arquitectura. […] A cicatrização pode ser por acaso ou por tratamento. Chama-se ao primeiro abandono e ao segundo restauro. […]
As arquitecturas são cicatrizes-tratamento (restauro) ou cicatrizes-tatuagem (obras em terreno virgem com intenção artística) ou ainda transplantações.
A Arquitectura é uma ferida sobre a superfície da Terra." [2]
Enquanto curadores de (ou da) Terra, poderiam comentar a atualidade destas palavras, pensando, por exemplo, a quarta linha curatorial da Trienal, “Retroactivar”?
CVDB: Interessante o rebuscar deste texto. Podemos entender algumas aproximações embora temos que perceber que a Terra descrita e talvez entendida pela Ana Leonor Madeira Rodrigues era ainda uma Terra talvez antes do Antropoceno. Embora os adjetivos/substantivos linguísticos possam funcionar: remate, a cicatriz/ transformação, os instrumentos arquitetónicos serão outros. A Terra do Retroactivar é toda construída por pessoas e nem sempre tem uma boa génese. Os instrumentos arquitetónicos que se propõem não criam cicatrizes, procuram sim definir abordagens e processos de início de uma transformação, que polariza o local da infraestrutura, o quarteirão, o Bairro, o lugar. A necessidade do envolvimento das comunidades locais e a aposta na infraestrutura comum é fundamental para a construção desses novos lugares para estas comunidades.
A Arquitectura é sobretudo uma impressão que introduz um processo de transformação na superfície da Terra. Uma das questões que esta Trienal Terra 2022 procura partilhar é como essa diversidade de impressões/cicatrizes pode ser cerzida com uma consciência mais abrangente, transdisciplinar e pluralista da pegada ecológica inerente ao trabalho da arquitectura na superfície da Terra.
Madalena Folgado
É mestre em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design; e do Laboratório de Investigação em Design e Artes, entre outras coisas.
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Notas:
[1] Timothy Morton, Being Ecological, Sl., Pelican Books, 2018, pp. 103-188.
[2] Ana Leonor Madeira Rodrigues, “A Ilha”, in Ana Leonor Madeira Rodrigues, Ensaios nas Margens do Futuro, Lisboa, Editorial Estampa, 2007, p. 40, 41.