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AS CORES DA COR
CRISTINA PINHEIRO
As Cores da Cor
“Tal como a pele sobre a ossatura, a cor reveste a ordem racional da estrutura. Por vezes destaca-se com a evidência imediata da percepção, ocultando-a. Outras vezes, pelo contrário, acompanha a estrutura revelando-a. As vicissitudes desta dupla, às vezes harmoniosa outras vezes em desacordo, cruzam toda a história da Arquitectura†(1).
Habitamos casas com cor, percorremos ruas com cor, vestimos cor, estamos rodeados de objectos coloridos; de tal forma a cor faz parte do nosso ambiente visual, que a vemos, sem muitas vezes repararmos verdadeiramente nela.
No entanto, a cor transforma os espaços e a percepção que temos deles, modela a paisagem, transforma a fisionomia das cidades, e faz parte integrante da imagem e da identidade do espaço urbano.
No percurso do meu curso de Mestrado em Cor na Arquitectura, (FA.UTL), tivemos que inquirir (sobre cor) alunos dos cursos de Arquitectura e de Design, futuros profissionais que mais tarde iriam aplicar cor nos seus projectos. Foi com alguma surpresa que verificamos a estranheza com que reagiram à s questões colocadas. Foi também evidente o quase desconhecimento dos vários aspectos relacionados com a cor e com a sua aplicação prática. E que dizer então dos aspectos muito mais desconhecidos como os efeitos psicofisiológicos da luz e da cor sobre as pessoas... Estávamos a falar de coisas longÃnquas... e à data (2002) ainda não existia nenhuma disciplina em que se estudasse mais profundamente a Cor, como penso que agora se faz. Mesmo no IADE, onde já se estudava, embora não numa disciplina autónoma como hoje existe, os alunos inquiridos também não foram muito seguros nas suas respostas.
Segundo Harald Küppers (2002), 80% das informações que o ser humano recebe são de natureza visual, e dessas, supõe-se que 40% se referem à cor, o que ajuda a perceber a sua importância, seja como meio portador de informação, seja como manifestação estética (2). A capacidade de poder compreender o fenómeno da Cor em toda a sua multidisciplinaridade foi talvez a maior riqueza que um percurso deste nÃvel me conseguiu trazer. Em pouco tempo percebemos como a cor era complexa, como havia ainda tanto para aprender, e que noutros paÃses onde há muito se estudava o assunto, existiam grupos e associações que investigavam a cor, e a estudavam em toda a sua multidisciplinaridade (estética, arte, fÃsica (luz e radiações coloridas), quÃmica e pigmentos, medicina, oftalmologia (mecanismo da visão das cores), ciência, psicologia, filosofia), assim como estudavam as teorias que ao longo dos tempos se foram formulando sobre o assunto.
Ainda no curso conheci a obra de Jean-Philippe Lenclos e a sua metodologia, tão pessoal, de recolha de amostras de rochas, de pigmentos e materiais naturais locais, com as cores caracterÃsticas da zona onde depois vai desenvolver os seus projectos cromáticos.
Foi importante também neste percurso, o modo como Frank Manhke nos transmitiu as suas preocupações sobre como a cor afecta os seres humanos, como influencia o funcionamento do nosso organismo, e de como as decisões cromáticas e as próprias cores, podem ser tudo menos neutras. Sempre insistindo que as reacções humanas à cor não mudam nos seus aspectos simbólicos, associativos, emocionais, sinestésicos, fisiológicos, neuropsicológicos, psico-somáticos, de ergonomia visual, etc; que a criação de um bom ambiente e plano cromático é completamente independente das tendências ou das modas que mudam de ano para ano.
A cor, sendo uma percepção sensorial causada por certos tipos de luz, é recebida pelo olho, reconhecida e depois interpretada pelo cérebro. Quando os raios luminosos atingem as células da retina geram-se impulsos eléctricos, que são conduzidos através do nervo óptico ao cérebro. Ao activar as ondas cerebrais, afecta as funções do Sistema Nervoso Central que regula a actividade hormonal. Por isso essa energia afecta as funções corporais do mesmo modo que influencia a mente e as emoções, de uma forma positiva ou negativa. Se as cores forem correctamente utilizadas podem influenciar o nosso bem-estar fÃsico e emocional. Este aspecto, entre outros, ainda não é bem compreendido fora das comunidades ligadas à investigação da cor, e é um tema que não está suficientemente divulgado fora desses grupos de interesse.
“A cor é uma percepção sensorial com efeitos simbólicos, associativos, sinestésicos e emocionaisâ€.(3)
Uma utilização incorrecta e o uso excessivo de cor – que criam ambientes “overstimulated†(excesso de estÃmulos), com abundância de ruÃdo visual, grande variedade de formas, cores fortes em combinações estranhas, excessivo cromatismo, clima exuberante em espaços densos, contrastes acentuados de matiz e luminosidade – pode provocar efeitos bastante negativos, com consequências fÃsicas, desequilÃbrio emocional, excitação, fadiga, falta de concentração, etc.
Os contrastes muito acentuados obrigam igualmente o nosso aparelho visual a uma adaptação contÃnua (dilatação e contracção da pupila), causando desgaste nos músculos da Ãris e provocando cansaço visual. Cores fortes, demasiados padrões visuais e muita luminosidade, exigem atenção voluntária e involuntária. Ainda segundo a opinião do mesmo autor, os ambientes totalmente acromáticos, (branco e cinzentos) são monótonos e pouco estimulantes e não contribuem para o bem-estar dos utentes. Pelo que a opção do totalmente branco ou apenas de cores ditas neutras, mas que na verdade não o são, são igualmente desaconselháveis quando se pretende um ambiente colorido, mas equilibrado. “Colored doesn’t mean colorful.†.(4)
Então se a cor tem esses efeitos não deveria ser escolhida e aplicada de forma ponderada e com um pouco mais de entendimento de todos os aspectos envolvidos?
Sendo óbvio que o tempo de permanência nos diversos espaços é diferente – exteriores urbanos ou interiores (habitação, escolas, local de trabalho, hospitais, restaurantes, espaços comerciais, etc.) – e por isso, também diferente o tempo de exposição aos estÃmulos coloridos, é importante que essa diferença seja compreendida, e os efeitos da exposição, considerados na altura das decisões cromáticas.
Não sou de todo contra o uso de cor, muito pelo contrário, mas penso que deve ser aplicada observando determinados princÃpios, com um balanço entre cores fortes e mais suaves, com equilÃbrio nas proporções das áreas, estudando os contrastes, as diferentes luminosidades, etc. Uma pequena área de cor, não tem o mesmo impacto que a mesma cor aplicada numa fachada de uma torre.
Depois de um desafio lançado pelo Doutor Moreira da Silva para reflectirmos sobre a questão – A Cor na Arquitectura: Intervenção de fundo ou de superfÃcie, e da polémica que na altura ainda se arrastava sobre as cores de Chelas, e a suposta rejeição das cores pelos habitantes, comecei a pensar se o argumento então produzido pela Câmara Municipal de Lisboa e publicado no Público, de que “as cores não ajudam à integração dos bairros sociais, antes produzindo o efeito contrário†serviria de justificação para a opção de se repintar tudo de branco; então pareceu-me que a falta de informação sobre o uso da cor não existia só nas populações residentes no bairro. Por outro lado esse “totalmente brancoâ€, também não seria boa opção, pois só por pouco tempo permanece branco; os fungos e as humidades rapidamente se encarregam de o manchar e de o tornar cinzento. Como me disse o pintor Jorge Martins, só existe o branco puro onde há cal e não há poluição.
O desejável, seria mesmo encontrar um equilÃbrio entre os princÃpios da unidade e da complexidade, entre a profusão de cores e o branco total, num ambiente em que as populações se sentissem realmente integradas. Segundo Crewdson (1953) a variedade é necessária para atrair e despertar o interesse, assim como a unidade é essencial para criar uma impressão favorável e satisfazer a disposição e os desejos (5). Demasiada variedade cria confusão e é desagradável. Demasiada unidade cria monotonia. Para se conseguir um bom projecto de cor, é necessário saber posicionar-se entre estes dois extremos.
“Variety is indeed the spice - and needed substance - of lifeâ€. (6)
Tal como então supunha, hoje acredito que as cores de Chelas naquelas combinações, são excessivas e que ao fim de algum tempo a convivência com elas se deve tornar um tanto difÃcil. Esta é uma questão que não consegui averiguar, mas também não era a isso que a minha investigação se propunha responder.
«Se a arquitectura deve servir a comunidade, não deveria ser encontrada uma forma de satisfazer tanto as necessidades dos utentes como as preferências estéticas do arquitecto?» (7).
Quando chegou finalmente o momento de escolher o tema da Investigação, coloquei-me a questão de como teriam sido escolhidas as cores da arquitectura construÃda e de como os profissionais em exercÃcio faziam as opões das cores para aplicar aos seus projectos? Interroguei-me se seria uma decisão final, tipo operação de cosmética, ou se pelo contrário fazia parte do processo conceptual do projecto. A Investigação acabou por centrar-se nas construções de Habitação Social, e no modo como os seus autores desenvolveram os planos cromáticos, com que critérios as cores foram aplicadas, quando surgiu a opção pela cor, pintada ou do material, etc. Depois de um levantamento exaustivo do que se construiu entre 1933 e 2004 em Lisboa, de um levantamento fotográfico do estado e das cores actuais das construções, foram seleccionados alguns conjuntos arquitectónicos, (por diferentes razões que não cabe aqui explicar), e entrevistados os seus autores, ou autores do plano cromático (que também não estão aqui todos referidos). A maioria dos documentos, (os mais antigos), eram a preto e branco, pelo que a cor, na data da construção, em muitos casos não ficou documentada.
Dos autores dos conjuntos seleccionados, devo referir que o Arquitecto Tomás Taveira autor do Bairro do Condado, não acedeu ao pedido de entrevista, mas enviou um texto com as suas reflexões sobre cor. O Arquitecto considera que o uso da cor se tem feito “sempre de um modo não racionalizado no sentido cientÃfico do termo mas sempre originado por aquilo que apelidamos de emoção e arte. De facto a ideia de que as cidades devem ser Brancas ou ter a cor dos materiais que as constroem foi sempre falsa (!), dado que não se prova que as pessoas sejam desse modo mais felizes; logo o não uso da cor ou imposição administrativa de uma qualquer não passa de uma prepotência e uma limitação abusiva do trabalho do arquitecto enquanto artistaâ€.
O pintor Jorge Martins, autor de planos de cor de vários conjuntos, possuÃa uma boa bibliografia sobre cor na arquitectura e falou com bastante conhecimento sobre vários aspectos da cor; numa atitude de enorme simpatia ofereceu-me uma colecção de esboços de alguns estudos cromáticos que realizou. Foi o mais seguro a falar sobre cor, mas a profissão e a experiência não são alheios a este facto. Sobre se havia “cores de Lisboa†respondeu: “Há cores suaves, há azuis, amarelos, há realmente uma quantidade de cores, mas a cor de uma cidade, a Cor no singular é uma coisa que deve ser escrita com maiúscula, porque é a resultante de várias outras cores. A Cor de um quadro é uma cor feita de dezenas ou centenas de cores. A Cor de uma cidade ou A Luz de uma cidade também é feita de vários materiais. Não sei qual é a Cor de Lisboa infelizmente não sei. Lisboa não tem uma cor. É uma cidade que se deixou degradar e construir de uma maneira tão caótica, que acaba por não ter uma personalidade".
O Arquitecto Pedro Sousa Menezes, autor do conjunto da Rua João Nascimento Costa e co-autor do Conjunto Piano no Bairro Marquês de Abrantes, considera o uso de cor em projectos de habitação social uma forma de mostrar que existe uma preocupação de valorizar os espaços para as pessoas, de lhes dar alegria, e de não esconder estas construções. A sua opinião é de que a cor é mais importante na cidade. Quando existe verde à volta, a cor não interessa tanto. De um modo geral não gosta de fundamentar as opções cromáticas, porque considera que “os arquitectos têm autoridade para brincar com a cor†, e de que usam a cor como uma maneira de marcarem a obra, de marcarem uma posição e uma ideia. “Obra que gera polémica fica na memória. A outra desapareceâ€. O seu primeiro impacto com a cor foi o edifÃcio amarelo da Rua Alexandre Herculano, que na altura deu polémica porque “as pessoas não estavam habituadas†.A cor pode contribuir para que as pessoas gostem do seu bairro e até o preservem. Gostar do sÃtio onde se mora é fundamental para ajudar a preservar. As pessoas gostam e interessam-se por aquilo que têm. “Mas na Arquitectura, talvez na polÃtica também, uma das razões é exactamente poder utilizar os argumentos que se quiser para justificar. Posso usar uma cor para conjugar e posso usar uma cor para contrastar. A minha ideia não é fazer igual.â€
A cor não lhe é indiferente e hoje em dia preocupa-se mais com a cor do que antes.
Um dos conjuntos que me agradou bastante conhecer melhor, foi o da Travessa Sargento AbÃlio do Arquitecto Paulo Tormenta Pinto, onde a cor não é logo evidente, não envolve os edifÃcios, aparece apenas quando se entra. De algum modo está contida dentro dos espaços, ainda que exteriores. A referência, foi uma questão de espaço público e privado, e a noção de que cada espaço tem uma caracterização própria. Os espaços contidos pelos blocos poderiam ser considerados como umas grandes salas de estar, ainda que exteriores, (uma sala azul, uma verde, uma vermelha). O Azul é uma clara referência ao Ives Klein, o verde começou por ser uma memória de um verde água da Avenida Paris, e o vermelho era a cor de um edifÃcio da Rua das Trinas de que gostava muito. Segundo este arquitecto “A cor é uma investigação quase pessoal, é uma sensibilidade que se vai desenvolvendo com o passar do tempo, estando a intuição sempre presente. A cor é uma extensão da própria arquitectura, é uma parte fundamental do projectoâ€.
Se nalguns casos concorda que a cor pode assumir um papel efémero, continuando a arquitectura e a cidade a manter a sua presença, noutros casos esta postura não é consensual. Duvida até do que pensaria caso mudassem a cor ao seu projecto da Travessa Sargento AbÃlio. Por outro lado a preocupação de colocar nas fachadas placas com a referência exacta das cores para futuras repinturas, mostra a vontade de que aquele projecto mantenha exactamente aquelas cores e não outras semelhantes. Considera como todos os outros, a opção pelo material como uma opção cromática, acrescentando que “há um refúgio que garante que se corre menos riscos utilizando a cor própria do material, do que escolher uma cor. Escolher uma cor é um projecto. Com a cor consegue-se caracterizar o espaço de uma maneira diferente. Custa o mesmo e já que estamos a falar de coisas pobres, de materiais pobres, com possibilidades limitadas em termos de custo, a cor é um excelente material para issoâ€.
Como pude verificar, a cor resultante de pintura foi a opção mais largamente utilizada e por razões de ordem orçamental, sendo a principal e praticamente única opção de cor, dos primeiros bairros de casas económicas. Hoje, depois de sucessivos restauros e acrescentos, encontramos alguns casos onde já não se reconhece sequer a traça original. A pintura não tem tanta sustentabilidade ao tempo, e com a luz de Lisboa as cores rapidamente atenuam e às vezes quase desaparecem, mas não sendo a opção preferida acabou por ser a mais viável neste tipo de construções, agora chamadas de Habitação de Custos Controlados.
As soluções cromáticas resultantes da aplicação de outros revestimentos, tornaram-se mais diversificadas, na medida em que foram sendo utilizados outros materiais como as monomassas, algum azulejo, materiais cerâmicos, terracotas, placas estratificadas de madeira de alta densidade, e de novo o tijolo, com muita frequência, como já tinha acontecido na altura da construção dos Olivais. Curiosamente quase todos os entrevistados referiram que o tijolo é muitas vezes escolhido não só pelas suas caracterÃsticas, mas pela sua cor. As opções cromáticas fazem parte do processo conceptual embora em fases distintas do projecto. A opção pelos materiais acontece sempre numa fase mais inicial, enquanto a cor pintada é decidida numa fase mais final, já na execução da obra, não por ser menos importante, mas para ser avaliada com a luz e com a envolvente do local, a várias horas do dia. A envolvência e o espaço circundante são sempre avaliados, de modo que a cor seja aplicada, ou para harmonizar, no sentido de se integrar com as outras cores ou pelo contrário, para destacar fazendo sobressair.
Muito podia ainda ser dito sobre a cor, e sobre a cor na arquitectura especificamente. Sobre a cor aplicada como revestimento e protecção, ou sobre a cor decorativa dos esgrafitos, e dos trompe-l’œil; sobre a cor própria dos diferentes materiais, sobre as superfÃcies cortina de vidro ou os revestimentos de azulejos que espelham muitas vezes as cores envolventes. Neste caso as fachadas podem apresentar aspectos interessantes devido à reflexão da luz, tornando-se espelhos dos edifÃcios frontais ou circundantes. A sua aparência está em permanente mutação, e durante o dia as variações cromáticas estão directamente relacionadas com a oscilação e a intensidade da luz solar. É uma cor imprevisÃvel, por isso é difÃcil controlar a aparência cromática desses edifÃcios, mas os efeitos por vezes são surpreendentes. Qualquer projecto cromático deve combinar arte e ciência sem nunca deixar de ter o Homem como o centro da preocupação.
“The real voyage of discovery consists not in seeking new landscapes but in see-ing old landscapes with new eyes."(Marcel Proust).
Maria Cristina Pinheiro, Licenciatura em Design Visual, Mestrado em Cor na Arquitectura, Membro fundador da APC-Associação Portuguesa da Cor.
Referências Bibliográficas:
(1) Paczowski, B. (2001). «Couleur, peau et structure» in L’architecture d’aujourd’hui - Couleur. 334. Maio/Junho 2001. p 40.
(2) Küppers, H. (1992). Fundamentos de la teorÃa de los colores. Mexico: Ediciones Gustavo Gilli SA.
(3, 4) Mahnke, F. (2003). in Lecture: Psycho-physiological effects of color. FAUTL Lisboa.
(5) Crewdson (1953), citado por Mahnke, F. (1986). in Color, Environment and Human Response. New York: John Wiley & Sons. p 26.
(6,7) Mahnke. F. (1996). Color, Environment & Human Response. New York: John Wiley & Sons.