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FALEMOS DE 1 MILHÃO DE CASAS. NOTAS SOBRE O CONCURSO E EXPOSIÇÃO “A HOUSE IN LUANDA: PATIO AND PAVILLION”
PAULO MOREIRA
A segunda edição da Trienal de Arquitetura de Lisboa (TAL) decorreu entre Outubro de 2010 e Janeiro de 2011, sob o tema “Falemos de Casas”. Um dos programas em maior destaque foi o concurso e consequente exposição “A House in Luanda: Patio and Pavillion”, mostrando 30 projetos selecionados entre 599 propostas oriundas de 44 países. Algumas reflexões sobre o evento talvez possam contribuir para clarificar a relativamente escassa informação sobre as transformações urbanas que têm tido lugar na capital de Angola.
Falemos de Casas de 1 Milhão
No dia 7 de Maio de 2008, o Jornal de Angola chamou “comediante” a Bob Geldof. Num discurso proferido durante uma cimeira sobre desenvolvimento sustentável em Lisboa, o ativista dos direitos humanos declarou:
A propriedade mais rica, as casas mais caras do mundo estão na linha de costa de Luanda. Mais caras do que em Chelsea, mais caras do que no Central Park West: Luanda. (1)
Mas dois anos depois, a 29 de Junho de 2010, uma conceituada empresa de consultoria publicou um relatório sobre o custo de vida em numerosas cidades, que deu crédito ao infame insulto. (2) Para tal fenómeno contribuíu a subida dramática dos preços de compra e arrendamento de imóveis em Luanda, desde o fim da guerra civil (2002), decorrente do fosso significativo entre procura e oferta de habitação capaz de responder ao fluxo de milhares de trabalhadores estrangeiros que chegam à cidade, para trabalhar nas indústrias de extração de recursos naturais e de construção civil. A isto aliam-se a incapacidade de produção, transporte e importação de materiais (o que encarece o preço de construção) e o “capitalismo selvagem” empreendido por exclusivos grupos interessados em promover a especulação do mercado imobiliário. (3)
A corrente fase de reconstrução do país tem contribuído para acentuar um fenómeno de exclusão social, um contraste flagrante entre os poucos que podem e os muitos que não podem ter acesso a uma habitação digna. Por um lado, em Luanda-Sul, onde residem grande parte dos expatriados e dos oficiais angolanos, a propagação de condomínios fechados tem dado origem a um estilo de vida suburbano (com Shopping Centres e Business Parks). Por outro, os extensos bairros onde reside cerca de ¾ da população de Luanda, denotam precárias condições de habitabilidade. Os musseques mais centrais têm sofrido os efeitos do “sobre-desenvolvimento”, pois a subida do valor da terra obriga os mais pobres a deslocarem-se para zonas periféricas da cidade.
Ao mesmo tempo, o perfil da Baixa de Luanda tem vindo a sofrer uma rápida e irremediável transformação. Em 2008, o processo obteve a atenção da comunidade portuguesa, após a demolição do Mercado do Kinaxixe (a obra-prima de Vasco Vieira da Costa, datada de 1952, que será substituída por um moderno centro comercial). Imediatamente, ergueram-se vozes de revolta perante a postura do Estado Angolano, que vai “apagando” o património edificado da cidade. No entanto, ironicamente, este importante testemunho do modernismo tropical foi demolido por um promotor imobiliário português – um pormenor que tem escapado à discussão sobre os contornos das transformações em curso. Com efeito, estima-se que 100 mil portugueses residam atualmente em Angola, contribuindo para o desenvolvimento da sua indústria. Enquanto o Kinaxixe era demolido, Eduardo Souto Moura especulava que “metade dos arquitetos portugueses tem projetos em Angola”, referindo que a ex-colónia “está a salvar a arquitetura portuguesa”. (4)
Falemos de 1 Milhão de Casas
Em Setembro de 2008, durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas, a questão da habitação entrou na agenda política. Após uma fase de grande investimento em infra-estruturas, entre 2002 e 2007, José Eduardo dos Santos anunciou o projeto de construção, por todo o país, de 1 milhão de casas em quatro anos (2008-12). O Presidente reconheceu a falta de habitação economicamente acessível oferecida à maioria dos angolanos, assumindo a incumbência de requalificar os musseques e dar apoio às comunidades carenciadas no acesso a casas de baixo custo. (5)
1 milhão de casas parece ser uma meta extremamente ambiciosa mas, noutros contextos, há precedentes de semelhante visão. Na Suécia, no período pós-II Guerra Mundial, o sofisticado plano 1 Miljoner Projekt foi implementado com sucesso num prazo de dez anos (construíram-se 100 mil casas anualmente, entre 1965 e 1975). Na África do Sul, construíram-se mais de 1 milhão de casas desde o fim do Apartheid (1994), ao abrigo do Reconstruction and Development Programme (apesar do enorme défice ainda por combater). No Brasil, lançou-se em 2009 o programa “Minha Casa Minha Vida”, que visa igualmente a construção de 1 milhão de casas (de realçar a semelhança entre os títulos dos programas brasileiro e angolano, cujo Programa Nacional de Habitação foi re-batizado para “Meu Sonho Minha Casa”, em 2010). O Sri Lanka é um caso especialmente interessante no que diz respeito à resolução do problema da habitação em consonância com circunstâncias políticas e constrangimentos financeiros. Desde que se tornou um país independente, em 1948, foi lançado por três vezes um programa de construção de, no mínimo, 1 milhão de casas: MHP (1984-89), 1.5 MHP (1990-95) e Jana Sevena (lançado em Fevereiro 2011 para realojar populações afetadas por catástrofes naturais). Estes programas consistem na reabilitação e extensão de casas existentes, com técnicas e materiais locais e através de auto-construção dirigida. O sucesso da implementação dos referidos programas poderá servir de exemplo para o caso de Angola – será a promessa do Governo cumprida em apenas quatro anos?
Criaram-se serviços especiais para coordenar o processo, mas pouca informação chegou à esfera pública. O projeto inicial revelava o papel do Estado e de parcerias público-privadas como investidores para atingir a ambiciosa meta. Mas o declínio do preço do petróleo pós-2008 e consequente abrandamento do crescimento do país levou à reformulação do projeto. Em Abril de 2009, na Conferência Nacional da Habitação, foi anunciado que os setores público e privado ficariam responsáveis pela construção de 115 mil e 120 mil casas, respetivamente, enquanto 80 mil ficariam a cargo de cooperativas. O maior número de unidades habitacionais a ser construídas ao abrigo do programa estariam reservadas à auto-construção dirigida (685 mil). Para tal, o Governo revelou a intenção de disponibilizar terrenos e materiais de construção a baixos custos, bem como o fornecimento de assistência técnica no processo de construção de infra-estruturas.
“A House in Luanda”
Pouco após a promessa das políticas urbanas angolanas, os organizadores da TAL viajaram até Luanda para debater uma possível contribuição. No início do Verão (Europeu) de 2009, José Mateus (diretor executivo), Delfim Sardo (curador geral) e Carrilho da Graça (curador do concurso/exposição “A House in Luanda: Patio and Pavillion”), encontraram-se com o promotor da Trienal de Luanda, a Fundação Sindika Dokolo. (6) A primeira reunião teve lugar na casa do seu vice-diretor, Fernando Alvim, onde a estratégia foi delineada. Dias depois, o concurso seria anunciado publicamente na sede da Fundação, no edifício “Globo”, perto da baía de Luanda.
Os organizadores asseguraram que as propostas selecionadas seriam reveladas às autoridades governamentais e locais angolanas, bem como a promotores privados com perfil e disponibilidade para se envolverem na realização do projeto. Prevendo-se que grande parte das casas serão erigidas por métodos de auto-construção dirigida, há também grande expetativa para acompanhar o debate trazido pela Trienal na arena pública de Angola.
O concurso procurava encontrar propostas para o desenho de um protótipo de uma casa de baixo custo, dirigida a famílias carenciadas. Não estava definido um lugar específico – as únicas diretrizes referiam-se a uma área de topografia plana, situada dentro dos limites de Luanda. O regulamento constata que os musseques denotam laivos de uma certa qualidade de vida, mas reclama a necessidade de se apresentarem diferentes conceitos de bairro, modelos replicáveis de unidades familiares. Em conversa com Delfim Sardo, Carrilho da Graça falou sobre a viagem a Luanda admitindo só ter visto “a ponta do icebergue”, ficando no entanto com a impressão que, apesar dos problemas sociais, os musseques demostram uma grande vitalidade. (7) Apesar desta constatação, alguns dos projetos premiados parecem apontar numa outra direção.
A proposta vencedora (coordenada por Pedro Sousa) apresenta um exercício refinado de combinação de espaços exteriores e interiores, articulados ao longo de um corredor central contínuo. O tom vermelho e a textura rugosa das paredes espessas de taipa apontam para o potencial do solo poder tornar-se material de construção. Na verdade, este é um método ainda praticado em áreas rurais de Angola, mas em desuso nos bairros da capital – aguardemos para ver como (e se) o projeto será implementado. O segundo prémio (coordenado por Cristina Peres) e a menção honrosa (coordenada por Pablo Forero) apresentam os seus projetos como uma alternativa crítica à validade dos musseques, procurando “competir” com a cidade informal, o que parece ser um pressuposto difícil de alcançar no atual estado de desenvolvimento da cidade de Luanda.
No balanço entre a adequação do projeto ao contexto versus a “assinatura” do autor, parece-nos pertinente destacar a proposta intitulada “The Future Box”. Arne Pettersen e Ulrich Schifferdecker apresentaram algo diferente de um objeto elegante e suas possibilidades exponenciais de agregação. A proposta consiste na introdução de um simples melhoramento das casas existentes, ao invés de propor novas construções. O mecanismo acrescenta dignidade e conforto à cidade, casa-a-casa, podendo alcançar um impacto imediato após a sua implementação. Esta parece ser uma postura mais simpática socialmente, em contraponto à tolerância perante os processos de desalojamento em massa das populações, característico do desenvolvimento de Angola desde 2002, pós-guerra civil. O projeto denota a importância de se falar da cidade ao falar-se de casas, o que relembra uma visão de Alison e Peter Smithson:
Nos subúrbios e musseques sobrevive a relação vital entre casa e rua, há crianças nas suas correrias (a rua é comparativamente sossegada), as pessoas param e conversam, veículos desmantelados estão estacionados. Nos jardins das traseiras há pombos e por aí em diante, e as lojas estão ao virar da esquina: tu conheces o leiteiro, tu estás fora da tua casa na tua rua. (8)
“Patio and Pavillion”
Em 1956, a Whitechapel Gallery, em Londres, acolheu a exposição “This is Tomorrow”, comissariada por Theo Crosby em colaboração com o Independent Group. O projeto envolvia doze equipas de arquitetos, artistas, designers e críticos, a quem foi pedido que desenvolvessem ideias sobre “modos de vida modernos”. Este conceito representava uma nova abordagem metodológica à prática artística enquanto processo colaborativo.
“Patio and Pavillion” foi o contributo de Peter e Alison Smithson (arquitetos), Nigel Henderson (fotógrafo) e Eduardo Paolozzi (artista). Os autores apresentaram uma interpretação artística e arquitetónica de um habitat básico, um simples abrigo de madeira rodeado por uma série de objectos, ou “símbolos”, conotados com os princípios fundamentais da condição humana.
A instalação situava-se no contexto da crise de construção do pós-II Guerra Mundial, uma altura propensa a repensar a problemática da habitação. Enquanto jovens arquitetos desafiando o consenso modernista, Alison e Peter Smithson começaram a gerar formas de pensamento baseadas na experiência de viajantes e antropólogos no mundo colonial. Acreditavam que as culturas distantes e a “arquitetura sem arquitectos” apontariam direções para a o processo de reconstrução, o que representou uma mudança decisiva no paradigma moderno.
Mais de meio século depois, os papéis inverteram-se e a TAL adotou o título desta instalação. Mas “A House in Luanda: Patio and Pavillion” aborda um contexto cultural, geográfico e político muito diferente, onde talvez seja difícil aplicar a premissa de “This is Tomorrow”, pelo menos sem o envolvimento de uma colaboração multidisciplinar e de práticas participatórias.
O testemunho de Ângela Mingas, a representante angolana no júri do concurso (juntamente com Álvaro Siza, Carrilho da Graça, Barry Bergdoll e Fernando de Mello Franco), procurou relacionar o tema com o contexto específico. Eis as suas palavras:
(...) Casa em Luanda é um polarizador do mundo familiar na sua mais ampla expressão. As relações fundamentais da socialização começam e terminam nela. O nascer, crescer, e mesmo morrer acontecem simbolicamente na casa e o seu entendimento parte do sabermos interpretar o ser Luandense, o ser Angolano e até o ser Africano.
A casa hoje ainda preserva os lugares ancestrais que não se esgotam entre paredes ou sob tectos. Esta entidade tão convencional que é o lugar das coisas, parte do homem e não do espaço. É algo feito por “nós”.
Por essa razão e tantas outras, o fundamental para “nós” é sermos colectivos, e nada é mais “nós” do que um pedaço de céu...
Arquitecta Ângela Branco Lima Mingas
Luanda, 4 Fevereiro 2010 (9)
O texto parte da ideia de Patio enquanto “pedaço de céu”, e de Pavillion enquanto entidade não limitada “entre paredes ou sob tectos”, mas sim como “o lugar das coisas” (o que os Smithsons e seus parceiros tinham representado como símbolos). A autora reconhece que a casa não pode ser simplesmente o produto de um argumento disciplinar, emerge mais do “homem do que do espaço”.
É importante ressalvar que a mensagem foi assinada com uma referência espaço-tempo específica, com amplo significado. No dia 4 de Fevereiro de 1961, um grupo de revolucionários angolanos oriundos dos musseques de Luanda deu início à luta que levaria à independência. A 4 de Fevereiro de 1975, Agostinho Neto regressou a Luanda para tornar-se o primeiro Presidente de Angola, perante uma grandiosa manifestação de apoio que o esperava no aeroporto (que viria a ser batizado com a mesma data). Ao assinar com a data que representa a libertação nacional, Ângela Mingas parece dar voz ao seu povo, que não tem tido oportunidade de participar em plenitude no atual progresso de Luanda.
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Paulo Moreira
Nasceu no Porto (1980) e licenciou-se pela FAUP (2005). Estudou na Accademia di Mendrisio (2002/03) e estagiou com Herzog & de Meuron (2003/04). É mestre pela London Metropolitan University (2009), onde realiza doutoramento desde 2010, com bolsa FCT.
Foi premiado pela Generalitat de Catalunya e Trienal de Arquitectura de Lisboa (2007). Recebeu o Prize for Social Entrepreneurship (FASD 2009) e o Noel Hill Travel Award (American Institute of Architects 2009).
Link: www.paulomoreira.net
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NOTAS
(1) Fonte: Jornal Agora de 12/7/2008. A cimeira foi organizada pelo jornal Expresso e pelo Banco Espírito Santo.
(2) Mercer é líder mundial na prestação de serviços de consultoria, outsourcing e investimento. O Relatório Anual sobre o Custo de Vida é um estudo de 214 cidades em todo o mundo, baseado numa lista de 200 categorias, incluindo transportes, comida, vestuário, bens de primeira necessidade, entretenimento e habitação. Esta categoria, habitualmente a maior despesa para os expatriados, teve um papel fundamental na determinação do 1º lugar de Luanda no ranking. http://www.mercer.com/costoflivingpr#City_rankings
(3) O termo “capitalismo selvagem” foi introduzido em 2002 por Tony Hodges no livro “Angola: Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem”
(4) Eduardo Souto Moura entrevistado por Ana Vaz Milheiro, no Público, 12/09/2008.
(5) O direito à habitação foi definitivamente consagrado em Fevereiro de 2010, na nova Constituição de Angola (artigo 85).
(6) Sindika, um dos maiores colecionadores de arte Africana, nasceu em Kinshasa, República Democrática do Congo, em 1972. É casado com a filha do Presidente de Angola, Isabel dos Santos.
(7) “Um Projecto Radical (uma entrevista com João Luís Carrilho da Graça por Delfim Sardo)”, em Falemos de Casas: Concursos, Lisboa: Athena, 2010.
(8) Smithson, Peter and Alison, Ordinariness and Light: Urban Theories 1952-60 and Their Application in a Building Project 1963-70, London: Faber and Faber, 1970, p. 43. Tradução livre do autor.
(9) Regulamento de “A House in Luanda: Patio and Pavillion”, Trienal de Arquitectura de Lisboa Parte II – Enquadramento de Ângela Mingas.
(10) As fotografias seguintes que ilustram este artigo são da autoria de membros de uma família de Luanda. As duas casas “geminadas” têm vindo a ser construídas desde 1986, num processo acompanhado pela evolução do próprio bairro onde se situam, Chicala 2, entre a Praia do Bispo e a Fortaleza de S. Miguel. Durante uma viagem de investigação a Angola realizada entre Setembro e Outubro de 2010, distribuí uma série de máquinas fotográficas descartáveis e pedi aos membros da família para observarem o seu Patio and Pavillion (um ou outro preferiu usar a sua ou a minha máquina digital). Os resultados permitem aprender sobre o modo como os residentes (considerados como uma família “típica”) apropriam o seu espaço doméstico. Acredita-se que este exercício permite interpretações sobre o ciclo do dia (e ciclo da vida) do “Luandense, Angolano e Africano” (Mingas).
Nota final do autor: Este artigo foi escrito à luz do acordo ortográfico da Língua Portuguesa em vigor desde Janeiro de 2009. A decisão, da responsabilidade do autor, visa contribuir para a facilitação do intercâmbio cultural entre os países lusófonos, principal objetivo do referido acordo – o que, em última análise, não é mais do que o concurso em discussão procurou fazer.