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ARQUITETURA E DESIGN




Para ouvirmos Beethoven, segundo Adolf Loos, os nossos ouvidos, “todos os detalhes anatómicos, todos os ossículos, circunvoluções, tímpanos e trompas”, têm de se transformar nos próprios ouvidos de Beethoven para, dessa forma, construirmos um corpo capaz de suportar as intensas dissonâncias de Beethoven. Loos exclamava “É o espírito que faz o corpo” (Adolf Loos, “O problema de ouvidos de Beethoven”, Ornamento e Crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004). Aqui, no corredor preto ou nesta parede dupla habitável (curiosamente, um dispositivo muito utilizado pelo próprio Loos), é o corpo que faz o espírito: os olhos, os ouvidos, a pele, todo o nosso corpo se transforma para ser surpreendido. Fotografia: Susana Ventura.


No interior: o jardim. A temperatura é inferior. Sente-se, primeiro, a luz, a humidade e o odor, e só, depois, as cores e as flores: flores-de-lis da Sibéria, angélicas, gerânios “patrícia”, coroas-de-cristo, entre outras. Piet Oudolf compõe, sempre, a partir da singularidade de cada flor e de cada tipo de vegetação. Fotografia: Susana Ventura.


O jardim abre-se ao céu. Um espaço íntimo, sem tecto. O céu, a luz, as sombras, a chuva compõem este espaço de contemplação. E a moldura preta transforma-se na sua superfície envolvente, indiferente e muda (não obstante a sua cor, que é, aqui, uma “cor sem qualidades”). Fotografia: Susana Ventura.


Do exterior, o pavilhão expõe a sua própria mudez, quebrada pela presença dos percursos que conduzem o visitante-habitante ao interior. Fotografia: Susana Ventura.


E, à noite, aparece, então, um movimento suave de luz, cuidadosamente delimitado por Peter Zumthor, que ensaiou e verificou, durante a obra, a posição específica do suporte, a altura e a curvatura do cabo e, por fim, a intensidade da luz. Fotografia: Susana Ventura.


Consoante a luz, o pavilhão altera a sua expressão, trazendo à superfície a textura própria da sua matéria: mais ou menos preto (a cor nunca é opaca e fechada), as linhas e as marcas da tela, as partículas da areia... Fotografia: Susana Ventura.

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SUSANA VENTURA


A história do pavilhão temporário da Serpentine Gallery, em Londres, de Peter Zumthor começa, para mim, com a história de uma aguarela. Um dos primeiros desenhos que vi, quando entrei no atelier-casa [1] de Peter, foi essa aguarela lindíssima, em tons de castanhos, ocres, rosas secos e violetas escuros, de um edifício cuja legenda o apresentava: Serpentine Summer Pavilion, Hortus Conclusus. Era um dos projectos que mais ansiava conhecer e acompanhar durante aquele mês, mas não consegui deixar de sentir uma certa estranheza ao olhar para aquela aguarela. E, certamente, que não era pelo edifício ou pela sua forma, porque Peter não cria formas, mas pela aguarela em si e pela relação muito particular que existe entre a aguarela e a sensação ou atmosfera do edifício na obra de Peter. As aguarelas que lhe conhecia eram, geralmente, em tons fortes, azuis e cores-de-laranja, misturados em escalas de pretos e cinzas, como nas aguarelas da Pensão Briol ou dos edifícios da Novartis [2]. Sem dúvida que a aguarela trazia, já, em si, a matéria do edifício, a sua expressão, dada pelo material, que Peter, por aquela altura, imaginava e trabalhava. E, embora o material na aguarela fosse imperceptível, a sua expressão estava lá, na própria ausência, em tudo o que este imprimia na sensação: um vazio composto de luz e flores.

Peter adora desenhar. Quando olhamos para uma aguarela sua, imaginamo-lo na sua sala de enormes janelas, calmamente, a ouvir música, a olhar para a sua caixa de lápis de cor e a escolher, cuidadosamente, cada um. Peter desenha, primeiro, a lápis e a régua, numa folha enorme de aguarela, que cobre o tampo de uma das suas mesas de trabalho, uma mesa alta, para poder desenhar e pintar de pé. A aguarela nasce de um desenho rigoroso a lápis, onde cada traço é desenhado depois de um longo processo de experimentação no espaço. As proporções são, extremamente, importantes e controladas. Por vezes, Peter ensaia, na sua sala de trabalho e na sala contígua, pequenos exercícios de imaginação espacial. Gosta de compreender e sentir o espaço com o seu próprio corpo, sentir as dimensões, como se as pudesse carregar no olhar e nas mãos, experimentar os limites reais, sentar-se, levantar-se, olhar ao longe, sentir a luz do sol e perceber de onde vem e como cria as sombras que vê. Alguma espontaneidade, que pudéssemos desejar, é senão uma ilusão, dada pelas pinceladas finais que espalham resíduos de cor, aparentemente descontrolados, pela folha e pelo desenho, como uma bruma, um denso nevoeiro ou uma luz clara e súbita. As aguarelas de Peter não são desenhos espontâneos, mas desenhos, perfeitamente, controlados, que permitem a Peter contemplar o espaço que imagina criar. Este não é, também, o primeiro passo. Peter só desenha com clareza. Precisa dessa certeza, para conseguir controlar. Claro que podemos sempre olhar para as suas aguarelas e maravilharmo-nos...

Se existe esse primeiro momento, existe em contemplação. É preciso, no entanto, ter muito cuidado com esta palavra, para não nos iludirmos e transformarmos todo o processo de Peter numa ideia romântica de contemplação. Mas é difícil encontrar uma palavra mais adequada, que traduza, de forma exacta, este importante momento para Peter [3], que, também, não consegue precisar, quando é que tudo começa para si, embora afirme, sempre, que é uma sensação, uma ideia de atmosfera. Mas onde é que aparece esta sensação? Na cabeça? Peter ri-se. Não sabe se é na cabeça, se no corpo inteiro. Mas, enquanto fala sobre o espaço que imagina, Peter coloca-o, sempre, dentro da sua cabeça, onde se coloca, também, a si, lá dentro. Não se trata de filme algum de Spike Jonze, mas quase que poderíamos imaginar Peter num baile de Scola: estranho espectador omnipresente que contempla o tempo dentro de si, enquanto formas e espaços surgem e uma imagem se constrói com diferentes pedaços de memórias, mais ou menos longínquas, que já não são memórias, mas um conjunto de perceptos e afectos, extraídos às suas percepções e aos seus sentimentos, pedaços de materiais e sons, pura matéria.

A imagem, que Peter evoca, sempre, como o início de qualquer projecto, reúne este conjunto de memórias, sensações, materiais e sons. Mais uma vez, é necessário extremo cuidado, porque, embora Peter refira, por exemplo, as suas memórias de infância ou aponte para exemplos específicos e concretos de materiais, ou sentimentos pessoais e inseparáveis de um qualquer momento da sua vida, da vida de alguém, de algum lugar, esta imagem não tem contornos claros e definidos, não é objectiva e concreta, como Peter responde sempre quando alguém o questiona, como é que a memória, que evoca do jardim da casa da sua tia, influenciou os seus projectos. Não existe relação directa, porque a imagem que evoca é uma sensação pura, um bloco de afectos e perceptos, que já não depende de si, para existir. Mesmo ainda que afirme, que a imagem surge de um momento específico, quando mergulha em si para descobrir o fundo comum a cada um de nós, permitindo, desse modo, que a obra, depois de realizada, afecte, também, cada um. No entanto, a memória só tem este poder, quando se transforma em sensação pura e deixa de depender de quem a experiencia para subsistir, ou melhor, para insistir a cada nova obra [4]. O que explica que não seja a pergunta, em que obras é que determinada memória interveio, mas sim, que sensações é que determinada memória contém, que permite, a cada nova obra, emergir, novamente?

Peter contempla uma primeira imagem do espaço. Contempla, precisamente porque precisa de sentir o espaço dentro de si e contemplar-se, também, a si, nesse mesmo espaço. Este método de compor a sensação ou atmosfera replica-se ao longo de todo o processo, como por exemplo, quando a aguarela surge neste espaço-tempo de contemplação como um entre-tempos, um intervalo entre linhas e cores, que se constrói a partir de uma outra matéria, que entra, igualmente, na composição do espaço, mas se encontra alhures (quando Peter comenta que o seu processo é lento, refere-se a este espaço-tempo que o seu método exige; por vezes, os desenhos ficam na sua mesa de trabalho dias, semanas, até os terminar). Semelhantemente, é neste espaço-tempo de contemplação que o inconsciente da matéria pode emergir à superfície do desenho e alterar a composição, clarificando a imagem, que, então, adquire contornos mais precisos, mais definidos. Peter nunca esconde: é a imagem que o orienta na composição da obra e, para esta surgir e poder precipitar os seus efeitos, precisa de tempo.

A ideia de um hortus conclusus esteve sempre presente, desde o início [5]. A aguarela surge mais tarde no processo de criação, depois da definição da forma, das proporções e após vários estudos sobre a colocação do sol e as sombras produzidas. A inclinação dada à cobertura, presente desde o início também, depende exactamente de uma optimização dos vários ângulos dos raios de sol durante o Verão (um lado iluminado, o outro em sombra).

Apenas conseguimos depreender como é que a imagem inicial, que guia Peter na composição da obra, é composta, porque esta corresponde ao seu desejo em criar um espaço de contemplação. Um espaço que transmita serenidade e quietude a quem o visite e habite, mas que seja em si um espaço concentrado, saturado, que irradie o poder imenso de um denso jardim de mil e uma flores e vegetação, e permita, simultaneamente, abrir o espaço à imensidão do céu [6]. E a estes elementos, que nunca são tão objectivos nesta imagem inicial, teremos sempre de adicionar um pouco de imaginação, colocar sons e cheiros, cores e temperaturas. A imagem de Peter contempla tudo isso. Como também na composição do jardim, é a memória de todos os jardins: os jardins que viu, os jardins que não viu, o jardim que passou a ver. Mas como é que Peter compõe, então, esse espaço de contemplação, que deseja para o seu hortus conclusus?

O sistema de composição próprio à obra de arquitectura, que depende de um pensamento linear e lógico, como pensa Peter, ajuda-o a passar de um problema para o outro. Esta dualidade está sempre presente no seu processo, embora, na precipitação da obra, no espaço-tempo de contemplação que definimos anteriormente, privilegie o instante e o espontâneo, que, aliás, define como parte do nosso próprio instinto de sobrevivência (o nosso fundo comum), garantindo dessa forma a orientação no processo de criação, para chegar a uma obra que contenha esse poder de afectar.

Num gesto quase imediato, Peter quis anular a cidade, o seu movimento, as suas cores e os seus sons, num grau extremo de abstracção e concentração. Podemos considerar que este é o problema maior com que Peter se debateu durante todo o processo: como desenhar o limite do pavilhão e fazer, simultaneamente, o acesso ao jardim. O exterior do pavilhão parecia, então, começar a erguer-se como um muro mudo, opaco, indiferente, cuja expressão seria, unicamente, dada pelo material (e esta procura pela matéria expressiva - quando o material devém sensação - foi a responsável pelas maiores alterações no processo), enquanto, por outro lado, o espaço dos jardins de Kensington impunha-se-lhe de alguma forma. Houve um momento em que Peter desejou retirar as cercas do jardim da Serpentine Gallery, para ligar num movimento único e fluído esses imensos jardins contínuos de Kensington e o seu hortus conclusus, enquanto preservava a singularidade de cada um: um jardim dentro de um jardim [7].

Os desenhos iniciais de Peter parecem evocar, ainda, a Bruder Klaus Kapelle: uma massa única em betão, escavada; no interior, um precioso jardim de céu aberto e o percurso, até este, obrigando um movimento sinuoso ao corpo, uma torção labiríntica, até descobrir a claridade. Nos primeiros desenhos, surgem dois pontos de acesso, um do lado da cidade, o outro do lado da galeria, uma vez que o pavilhão surge, mais ou menos, paralelamente, a esta, do lado da rua de principal acesso. A possibilidade de um acesso único foi, também, equacionada, mantendo-se durante algum tempo e sempre obrigando o corpo a uma torção. Mas destes desenhos, retemos, sobretudo, a ideia de uma massa densa, de um só material, que envolve o espaço central do jardim, num único movimento.

A ideia de betão, não obstante a persistência nalguns desenhos, parece, de imediato, contrária à ideia de um pavilhão temporário. E, naquele momento, não se tratava, unicamente, de desenhar um espaço de contemplação, como também de compor um jardim saturado. São dois momentos inseparáveis, que irão determinar a obra.

Peter confessa que tem mudado a sua atitude perante os jardins. Outrora, via o jardim como um espaço exterior, naturalmente integrado na paisagem envolvente, que ele poderia, simplesmente, observar. Mas, ultimamente, o jardim deveio elemento de composição, pura matéria expressiva que transforma o espaço, ao mesmo tempo que se transforma, ele próprio, em habitante. Peter procura compor o jardim que imagina, da mesma forma que percebe e sente o espaço. Mais ainda, é como se o espaço-tempo de contemplação se desdobrasse no espaço exterior e a sensação, que a imagem transporta, encontrasse a sua forma mais pura, aquela que não necessita de mediação alguma, existindo apenas ali, como Peter tanto deseja e compreende as coisas. E o que é um espaço de contemplação para Peter, se não o espaço onde as coisas apenas existem? E, no entanto, esta existência contém uma centelha, como Peter diz, que, em segundos, o afecta.

O jardim tem esta particularidade de poder, simplesmente, existir. Não tem uma função concreta, não carrega símbolos, nem mensagens, não pretende contar histórias, nem dizer as intenções do arquitecto. Alguém virá, sentar-se no banco azul, olhar o céu e pensar na história dos jardins ingleses ou na tradição dos hortus conclusus, citar referências de obras, como a de James Turrell, ou olhar atentamente para a própria obra de Peter e encontrar o mesmo espaço de contemplação em Kolumba ou no seu atelier-casa (que funciona, precisamente, como espaço de experimentação, pequeno laboratório espacial). Inevitavelmente, houve momentos em que todos estes elementos surgiram e que poderão ter condicionado o desenho do jardim. Mas o mais importante é que o jardim de Peter é o exemplo mais próximo do que este chama de “substância concentrada” ou “essência” dos objectos concretos, que consiste no poder de afectar. É no jardim que Peter pode “saturar cada átomo”, como dizia Virginia Wolf [8].

O jardim surgiu, primeiramente, em tons fortes: vermelhos, cores-de-laranja, azuis e verdes. A massa de betão delimitava-o, desenhando e envolvendo um longo banco, onde nos poderíamos deitar e ler um livro. Mas, subitamente, os tons mudaram, talvez pela exigência de “saturar cada átomo”, compor uma sensação, um espaço de contemplação, com flores: flores que têm cores, que têm ritmos, que têm movimentos. As flores mudaram a sensação. Passaram a ser mais delicadas, de tons suaves, dando ao jardim uma sensação de beleza etérea. Consequentemente, o material envolvente mudou, também. O betão não servia a ideia de um edifício temporário, como certamente criava um espaço demasiado violento e árido, uma estranha moldura para flores delicadas.

Os tons de castanhos, ocres, rosas secos e violetas escuros da aguarela, afinal, traziam os tons do tijolo, o ritmo dos seus intervalos abertos por onde a luz perpassava, o movimento único da repetição e dos contornos da cobertura inclinada e as próprias sombras traziam as cores das flores e do tijolo. O muro desdobrou-se, transformando-se em parede dupla, como em várias obras de Peter, e o acesso, ao jardim, era, agora, mais livre e espontâneo. Na minha estranheza, tudo parecia, no entanto, fluir e a obra confundia-se com a aguarela. Mais do que representar a obra, a aguarela continha a sensação. Peter, com um sorriso, afirmava: era o que ele queria.

No entanto, a forma do pavilhão não conseguiu ajustar-se ao tijolo (ou o tijolo à forma). Peter não queria fundações, imaginara um sistema de construção, inteiramente, em tijolo, mas o peso da cobertura inclinada obrigaria a soluções demasiado complexas. Por esta altura, a colaboração com Piet Oudolf [9], também ainda não estava, completamente, definida. A imagem alterou-se. E, mesmo quando alguém veio afirmar, com entusiasmo, que seria possível construi-lo daquela forma, para Peter, já não fazia sentido. Por outro lado, quando a Serpentine Gallery propõe a Peter colaborar com Piet, a composição do jardim passou a depender, apenas do desenho deste. Peter não quis, de modo algum, interferir. Inevitavelmente, passou a existir um limite e é difícil perceber até que ponto é que esta mudança alterou toda a composição. Peter passou a dedicar-se, unicamente, ao espaço envolvente. A legenda da aguarela poderia ser alterada. Já não se tratava de compor o jardim, mas apenas a sua moldura.

Talvez por esta razão, o pavilhão tenha encontrado a sua própria expressão inseparável da textura da tinta preta e da tela. Lembro-me de visitar a obra com Peter e este dar claras indicações aos operários sobre a quantidade de tinta que a tela deveria deixar perpassar. O preto deveria conter a expressão da tela e a superfície da tela deveria dissolver-se na tinta preta. Agora, tratava-se, simplesmente, de preparar o visitante, habituar os seus olhos, controlar a sua percepção e intensificar os sentidos, até ao momento em que encontra, finalmente, o jardim.

Quando regressei a Londres, para visitar o pavilhão, não consegui deixar de pensar que houve um momento em que a obra escapara, em que a sensação, aquela sensação que sentira ao encontrar a aguarela pela primeira vez, desaparecera. Apesar da sua matéria actual e da expressão que esta traz à sua superfície, um tecido que cobre um jardim lindíssimo num só gesto envolvente, a sensação que persiste é a de uma estranha e indiferente mudez (porque, também, prefiro ignorar os passeios em betão [10]), unicamente quebrada pelo cintilar das luzes penduradas. À noite, no jardim.


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Susana Ventura
(Coimbra, 1978) Licenciada em Arquitectura pelo Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, encontra-se a concluir a dissertação de Doutoramento em Filosofia, na área de Estética, sob a orientação do Professor Doutor José Gil e o tema "O corpo sem órgãos da arquitectura". Esta incluiu laboratórios de investigação nos ateliers de Diller Scofidio + Renfro, Lacaton & Vassal e Peter Zumthor, onde permaneceu durante algum tempo a observar os respectivos processos criativos.


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NOTAS


[1] O atelier de Peter Zumthor encontra-se dividido entre dois edifícios. Por uma questão de distinção dos dois espaços, porque estes, também, têm influência no trabalho de Peter, opto por designar o edifício mais antigo de atelier-base e o segundo edifício de atelier-casa. A sala de trabalho de Peter encontra-se neste segundo edifício, contígua à casa familiar e é esta proximidade que garante a sua saúde (como o próprio diz: um peixe na água).

[2] A aguarela do Pavilhão temporário da Serpentine Gallery segue, por exemplo, os tons das aguarelas da Casa de Annalisa Zumthor, construída, inteiramente, em madeira. No entanto, não se trata de supor uma mudança nos tons utilizados por Zumthor, mas compreender como é que a aguarela é, em si, um bloco de sensações, que a obra eterniza. As aguarelas de Zumthor são muito importantes no seu processo, exactamente, porque não são entendidas como uma representação, mas compõem uma sensação. Como o próprio comenta, os desenhos e as maquetas não são representações, mas espaços próprios e é, apenas neste sentido, que lhe permitem chegar à obra final. Por conseguinte, nas aguarelas, como nos desenhos (onde as incluímos) e nas maquetas de Zumthor, podemos considerar dois momentos importantes: a composição da sensação pelo material, quando o material devém matéria expressiva (como dizem Deleuze & Guattari: “A sensação não se realiza no material sem que o material passe inteiramente na sensação, no percepto ou no afecto. Toda a matéria se torna expressiva. É o afecto que é metálico, cristalino, pétreo, etc., e a sensação não é colorida, é corante, como diz Cézanne”, Qu’est-ce que la philosophie?, p. 157 [Paris, 1991]) e o surgimento do próprio inconsciente da matéria, quando o desenho ou a maqueta deixam emergir à sua superfície certos aspectos da obra, que Zumthor até aí desconhecia.

[3] A contemplação é um conceito que tenho vindo a desenvolver, a partir da minha observação do processo criativo de Peter Zumthor e do pensamento de Gilles Deleuze. Não é de modo algum um conceito de Peter Zumthor (embora este refira, por várias vezes, a contemplação como um momento importante na sua percepção das coisas), como também não exprime, aqui, a acepção comum de contemplação de uma obra (ou uma aguarela).

[4] Louise Bourgeois, por exemplo, com quem Zumthor trabalhou no Memorial das Bruxas de Vardo, colocou este mesmo problema, vezes sem fim, na sua obra, que parte, à semelhança de Zumthor, das suas memórias. Em Louise, a memória pertence, sempre, ao passado, à sua infância, aos seus pais, aos seus irmãos, à sua ama, amante do pai, mas a obra detém, sempre, o poder de extrair à memória uma sensação pura. Da memória da refeição em casa dos pais, da imagem da irmã de pernas abertas sobre a mesa, Louise retira a imagem, que expressa uma sensação pura de saciedade no limiar último de intensidade, antes de mudar de natureza, quando o erotismo se transforma em refeição, como na sua instalação “A destruição do pai” (de 1974).

[5] Peter atribui a ideia do jardim aos trabalhos que estava a desenvolver, pela altura em que a Directora da Serpentine Gallery lhe escreveu a propor a comissão do pavilhão temporário deste Verão. A ideia de um espaço vazio de contemplação foi imediata e só fazia sentido, para Peter, se esse espaço fosse um jardim, como também, teria de recusar incluir um espaço de café (uma característica que, aliás, distingue este pavilhão dos anteriores).

[6] Curiosamente, no pavilhão temporário para a exposição mundial de Hannover, Peter imaginou, também, um espaço de contemplação, que pudesse oferecer, a quem o visitasse, o tempo necessário de uma pausa, um momento de serenidade e abertura, contrariamente a tudo o que acontecia no seu exterior: “In the predictable bustle of the Expo, the Swiss Pavilion will be an oasis of rest, reflection, and contemplation, a place of serenity and openness, an unobtrusive, non didactic presence”, Peter Zumthor, Peter Zumthor Works: Buildings and Projects 1979-1997, p.294 (Basel: Birkhäuser, 1998).

[7] É assim que Zumthor descreve o seu projecto, na memória descritiva.

[8] Esta é uma das frases mais citadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari de Virginia Wolf, pela sua influência na obra destes autores e, sobretudo, na lógica da sensação de Deleuze. Ver Gilles Deleuze & Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, p.163 (Paris: Les Éditions de Minuit, 1991).

[9] A Serpentine Gallery indicou, a Peter Zumthor, uma lista de colaboradores possíveis para o desenho do jardim e este, que trabalha desde sempre com o mesmo horticultor, que o ajuda a compreender melhor a composição de um jardim, abriu apenas uma excepção para trabalhar, conjuntamente, com Piet Oudolf. Entre os mais belos jardins compostos por Piet Oudolf, estão o jardim da High Line (projecto de Field Operations, Diller Scofidio + Renfro, para o qual Piet Oudolf seleccionou as diferentes plantações, que relembram ainda as fotografias de Joel Sternfeld) ou o jardim que compôs, recentemente, para a Bienal de Veneza de 2010. Oudolf confirma que "Zumthor imaginava um jardim muito aberto, luminoso, no que é um espaço muito fechado e protegido" (Piet Oudolf, “Piet Oudolf’s garden at the Serpentine Gallery pavilion”, Telegraph, 28 de Junho de 2011.), enquanto ele pensava num jardim mais apropriado à face norte de um edifício ou a uma borda de uma floresta. Durante a visita à obra, no dia da colocação das plantas, Zumthor voltou a comentar com Oudolf sobre as cores do jardim, que imaginava mais fortes, e a colocação de plantas mais altas nos cantos. Mas Zumthor estava naquele momento a olhar para um jardim que, em dias, deixaria de existir. Oudolf explicou-lhe, então, que teria de pensar no tempo. Olhar para o jardim e compreender como aquelas plantas vão alterar, perpetuamente, a percepção do jardim, com o passar dos dias, mas também consoante a luz, o vento, a chuva e o movimento que lhes é próprio. Pela mesma razão, não poderia colocar plantas mais altas nos cantos, porque iria condicionar o desenho a uma forma preestabelecida, quando existia aquele movimento livre e imprevisível na sua composição, dado, unicamente, pela singularidade de cada uma das plantas escolhidas. Zumthor aceitou.

[10] A decisão de construir os passeios em betão foi tardia e a equipa de operários teve, apenas, um dia para a sua execução, que coincidiu com um dia, extremamente, chuvoso. Infelizmente, creio que este não é um pormenor, porque os percursos detêm demasiado o nosso olhar. À semelhança dos percursos, existem alguns pormenores sobre os quais o nosso olhar se fixa, levando-nos a pensar nas suas razões, como por exemplo, a pequeníssima curvatura na extremidade da cobertura que fragiliza o ângulo agudo da inclinação desta. Claro que esta curvatura resultaria, só por si, da dobra da tela, mas é enfatizada por um lintel de madeira que circunda o perímetro da cobertura. Não é apenas o impacto que a obra deveria possuir que se perdeu algures, mas também o desenho de certos pormenores que parecem trair a própria ideia de Peter de uma certa naturalidade no desenho, obtida quando as coisas parecem simplesmente existir e emanam uma beleza pura e inexplicável.


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O pavilhão de Verão da Serpentine Gallery de Peter Zumthor estará aberto até dia 16 de Outubro, fechando com a famosa “Maratona” (nos dias 15 e 16 de Outubro).