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A SUBLIMAÇÃO DA CONTEMPORANEIDADE
TIAGO OLIVEIRA
A sublimação da contemporaneidade
Kate Nesbitt(1), em 1996, elege o sublime como a principal categoria estética emergente no período pós-moderno. Segundo ela o renascimento do interesse pelo sublime(2) é em parte explicado pelo recente ênfase no conhecimento da arquitectura através da fenomenologia:
“O paradigma fenomenológico destaca uma questão fundamental na estética: o efeito da obra de arquitectura no espectador. Na instância do sublime, a experiência é visceral”(3).
Jean-Claude Garcias(4) considera que as categorias estéticas têm a capacidade de atravessar os séculos ao serviço das formas mais contraditórias de «prêt-à-penser», sendo este o caso do sublime que foi agora apropriado por Rem Koolhaas ao fazer a apologia de Bigness, a Grandeza sublime(5) procurando demonstrar que projectos fora de escala e não dominados desencadeiam emoções mais sublimes do que programas fraccionados mais ou menos racionais.
“Se as banalidades de Burke sobre o sublime e contra o progresso perderam o seu efeito nocivo, não é isso que acontece com a teoria de Rem Koolhaas: cínica ou desesperada, ela está perfeitamente adaptada ao processo actual de globalização, de amnésia e de nivelamento. Ela está, ainda por cima, impregnada de humor e inteligência, o que torna tanto mais difícil e urgente a tarefa de a refutar”(6).
No entanto se a posição de Koolhaas é sem dúvida irónica e destabilizadora, ela não me parece tão claramente desesperada. Ele próprio diz que se não acredita na existência de uma ordem global e também não julga que a arquitectura deva ser caótica por definição. Afastando-se da corrente «deconstrutivista» Koolhaas afirma que a arquitectura não tem que representar o caos: “Há, aqui e agora, um empolgante potencial para uma arquitectura que resista a esta mimésis”(7).
Na mesma entrevista Koolhaas admite o sentimento simultâneo de júbilo e horror – um sentimento de sublime? - que lhe pode despertar o espectáculo fantástico de um conjunto de edifícios medíocres em Atlanta, admira-se como tanta mediocridade pode conduzir a um certo tipo de inteligência, e confessa a sua fascinação que – como a palavra indica – comporta um elemento de rendição, de entrega.
Mas ele não se escusa a analisar estes sentimentos contraditórios. Encara o seu papel como o de um medium – na qualidade de profissional no activo – que está exposto às correntes, tropismos, tendências que sugerem mutações, e que as pressente antes que se convertam em juízos estabelecidos. Mas isso não é o mesmo que aceitar um abandono da capacidade de julgar.
“Os juízos tornam-nos muito pesados. Como o montanhista temos de andar com pouco peso para chegarmos a algum lado. Pode ser uma metáfora simplista, mas ainda assim penso que a inabilidade de julgar não é a expressão correcta. Prefiro falar de adiamento do juízo e articulação do problemático, de modo a fazer justiça a tantos lados bons e maus quanto possível”(8).
Koolhaas diz que está interessado em construir e reconhece que isso obriga a transigir e aceitar até um certo (elevado) grau, mas em vez de sentir vergonha por esta aceitação sente-se profundamente estimulado por isso. Ao fim e ao cabo é a ideia de preconceito, a ideia feita, que ele parece querer refutar.
“Fazemos juízos em termos de prioridades… é claro que são todos juízos individuais e para que se possa preservar a pureza e liberdade das forças em jogo, a questão da moralidade é adiada até ao último momento, ou ocasionalmente suspendida. Como dizem no Japão: flutua”(9).
É afinal do ressurgir do ponto de vista do sujeito que se trata, e o processo parece assumir os contornos de uma experiência fenomenológica. Koolhaas procura explorar a fase anterior ao juízo definitivo que para ele é quando se mistura consciência e inconsciência na decisão, quando se dá a geração de um espaço amoral onde certas lógicas se podem desenvolver. Ele confessa sentimentos de culpa acerca disto, mas ao mesmo tempo declara-se muito céptico em relação a juízos precipitados ou facciosos.
“Uma das belezas particulares do contexto do sec. XX é a de não ser já o resultado de uma ou mais doutrinas de arquitectura que evolui quase imperceptivelmente; em vez disso representa a formação simultânea de camadas arqueológicas distintas -um perpétuo movimento pendular em que cada doutrina arquitectónica contradiz e de facto desfaz a essência da precedente tão certo como o dia segue a noite”(10).
Por seu lado Rem Koolhaas não renega a possibilidade de qualidades poéticas que perdurem para lá da contingência temporal da interpretação:
“Acreditamos realmente que se o nosso trabalho for implantado num mundo ideal de prestígio intelectual, integridade artística, e mais importante, seriedade, adquirirá automaticamente estas mesmas qualidades e permanecerá uma manifestação tangível de perfeição teórica por muito tempo após o patíbulo interpretativo do autor for removido?
Sim, e em certos casos emprestando dignidade a um conceito retroactivo.
A imagem espelhada desta acção é o inventário mais clínico possível das condições de cada sítio, não importa quão pouco inspiradoras, a exploração mais calculista do seu potencial objectivo. Isto combina com a insistência temperamental numa quase desafiadora – literalmente incrível – simplicidade que desmente a complexidade da interpretação contextual e ao mesmo tempo faz justiça aos seus aspectos mais delicados. (...) Mas pode ser que todos estes argumentos sejam, ao fim e ao cabo, meras racionalizações para o facto primitivo de simplesmente gostar de asfalto, tráfego, néon, multidões, tensão, a arquitectura de outros, até”(11).
Jeffrey Kipnis, em desespero de causa, já se referiu a ele como o Le Corbusier do nosso tempo(12), proclamando a inépcia da crítica convencional em definir os contornos da sua arquitectura.
“Até agora, a crítica tradicional tende a concluir qualquer estudo sobre projectos do OMA seja com um louvor genérico pelo engenho, pela atenção renovada pela cidade, pela perspicaz reanimação de adormecidas responsabilidades sociais e pela recusa neo-moderna dos excessos formais; ou seja com a condenação estrita dessa recusa, dos seus diagramas esquemáticos tipo banda desenhada, da sua construção barata e mesmo feia. Cada um desses juízos pode ser confirmado num ou outro dos projectos do OMA, mas nenhum consegue explicar o porquê da arquitectura de Koolhaas ser hoje a mais debatida e influente no mundo”(13).
No mesmo texto, Kipnis descreve ainda assim o que lhe parece substancial no trabalho de Koolhaas: “E o que é mais importante, há um único objectivo que move o seu trabalho, desde os seus escritos aos seus projectos e edifícios, e que determina cada decisão a todas as escalas, desde o doméstico ao urbano, desde o diagrama ao detalhe. Este objectivo impregna o trabalho, dotando-o de tal precisão que na sua consistência se constitui em todo um tratado sobre o tema. Este objectivo – tão cínico que ninguém, excepto Koolhaas, o menciona mais do que em termos ocultos – é sensivelmente este: o descobrir a colaboração real, instrumental, que pode alcançar-se entre a arquitectura e a liberdade”. E acrescenta mais adiante:”A sua arquitectura, por exemplo, oferece pouca resistência às intoxicações da cultura do consumo. Mas esquiva-se à confrontação directa com essas complicações ao evitar a priori uma definição universal da liberdade. Para Koolhaas a arquitectura é unicamente capaz de engendrar liberdades provisionais, liberdades como as experiências, como as sensações, como os efeitos – de prazer, de ameaça, ou qualquer outro – de sabotagem dos padrões de controle e autoridade. Ele estende-se para demonstrar que as experiências libertadoras tangíveis apoiadas na arquitectura podem ser engendradas mesmo em contextos restritivos”.
Koolhaas não procura a determinação de um método de projecto, seja formal ou conceptualmente, nem reclama a fixação de um território para a prática da arquitectura contemporânea.
“Se há um método neste trabalho é o de idealização sistemática – uma sobreavaliação sistemática do que existe, um bombardeamento de especulação que investe até nos aspectos mais medíocres como carga conceptual e ideológica retroactiva. A cada bastardo, uma árvore genealógica; a mais ténue pista de uma ideia é seguida com a obstinação de um detective num apetitoso caso de adultério”(14).
Koolhaas resiste à ideia de que a globalização queira obrigatoriamente dizer homogeneização. Para todos os casos procura uma estrutura específica, a interpretação que gera cada projecto. E por isso o detalhe é a parte menos importante do projecto, excepto quando é essencial para a definição de determinado ambiente.
O seu trabalho com os alunos de Harvard (The Harvard Project in the City) publicado no livro Mutations, e mais especificamente a observação do Delta do Rio das Pérolas é um bom exemplo desta atitude de idealização sistemática.
Segundo Jean Attali(15) a cidade e a arquitectura mantêm uma relação de pertença invertida: a cidade pertence à arquitectura na medida em que a sua forma
construída e o mais importante das suas qualidades visíveis dependem desta; e a arquitectura depende da cidade uma vez que ela impõe restrições à sua construção, ela impõe o possível, nas é na cidade que a arquitectura exprime com mais sucesso o seu sentido de criação de formas. As duas, no entanto, incluem-se em ordens diferentes.
Para Attali o sistema urbano do Delta do Rio das Pérolas parece ilustrar simultaneamente dois sentidos de exaustão do possível em desenho urbano: desde o planeamento à maior escala à proliferação do mais pitoresco decor urbano. As condições que presidem à construção destas cidades já não são articuladas por paradigmas urbanos opostos, eles aglomeram-se como o significado histórico de contradição se tivesse definitivamente exaurido.
No entanto Attali nota em Koolhaas uma abordagem conceptual e operacional ao sistema que mantém a oposição entre arquitectura e urbanismo garantindo assim a frescura da análise(16). Segundo ele manter esta diferença permite uma renovação do nosso entendimento das cidades.
Para Attali o urbanismo é ainda teoricamente a arte de actuar na cidade que permite à cidade revelar a maior parte do que pode fazer e ser. Viajar por cidades estrangeiras torna possível uma nova lucidez e falta de remorso. O urbanismo sacode o duplo fardo do historicismo e burocracia.
É neste sentido que compreende a defesa do urbanismo de Koolhaas como um palinódio, pois pode acontecer que o pensar retroactivamente reconheça a força do que antes se refutou. Mas esta força, acrescenta, desafia a discursividade e a razão, só pode ser exaurida, não dominada.
E talvez por aqui que se possa compreender o discurso teórico de Koolhaas e aceitar a sua posição de abordagem.
Apesar do esforço de sistematização e da postura de bom senso despreconceituoso que procura presidir ao seu registo da realidade das cidades asiáticas, há lacunas e até contradições no que relata. No entanto há também observações muito pertinentes, e um contínuo reequacionar dos problemas que abre novas perspectivas e parece tornar possível a ultrapassagem de muitas destas dificuldades.
É mais uma vez a dimensão do Sublime em Koolhaas que nos seduz, a sua capacidade e entusiasmo em procurar encontrar com realismo novas soluções de uma paisagem urbana que muitos de nós julgávamos, pelo menos em parte, perdida.
Senão porque escolheria estudar os exemplos urbanos mais radicais? É evidente, até para ele, que um modelo a criar das novas cidades Asiáticas não se pode traduzir directamente para as cidades europeias. No entanto é também inteligente pensar que se pode extrair da vitalidade desta nova condição urbana oriental importantes lições a aplicar no tecido martirizado das velhas cidades da Europa, e que para isso ser feito de uma forma sistematizada se tenha de reorganizar um léxico próprio.
Mesmo que segundo Yorgos Semeoforidis(17) a paisagem urbana oriental, apesar de levantar muitas questões, de qualquer modo se afaste da equação Modernização=Ocidentalização e se desenvolva para uma nova versão de hipermodernidade, uma versão no espírito das tradições ancestrais da Ásia, ou que, segundo Eduard Bru(18), na Europa se precise, mais do que mutações, de um retorno ás velhas e testadas estratégias europeias, mudando com o tempo mas acumulando camadas de experiência.
A leitura de este texto de Koolhaas, sobretudo no trecho em que ele relata a condição urbana das cidades de Shenzen, Dongguan e Zuhai, traz-nos à memória as descrições que, segundo Italo Calvino, Marco Polo fazia a Kublai Kan das cidades do império. É afinal de uma poética que se trata (mas não poderíamos dizer o mesmo de Aldo Rossi?) muito embora esta se construa num universo em que qualquer passo em falso a pode fazer resvalar para o cinismo.
Numa época em que se fazem já contas às consequências de um liberalismo excessivo e em que ganha importãncia a vertente ética
(nomeadamente do ponto de vista ecológico) do projecto de arquitectura, esta «fascinação mórbida» pela cidade (como lhe chamou Montaner(19)) e esta suspensão do juízo podem resultar, se não se mantiver uma forte controlo crítico durante o processo, não na sublimação mas na alienação da contemporaneidade.
Tiago Oliveira
Arquitecto pela FAUTL em 1988
Mestre pela FAUTL em 1998
Doutorando pela Universidad de Valladolid
Referências no texto:
(1) K. Nesbitt, introdução, em -“Theorizing a new agenda for architecture - an anthology of architectural theory 1965-1995”- K. Nesbitt, editor, Princeton architectural press, 1996
(2) Para o entendimento do sublime K. Nesbitt remete-nos a Kant e Burke.
“Burke (A philosophical inquire into the origin of our ideas of the sublime and beautiful) introduz assim esta ideia: «Tudo o que é susceptível de suscitar de uma maneira qualquer ideias de dôr e perigo, ou seja tudo o que é em algum aspecto terrível ou tem a ver com objectos terríveis, ou que opera de uma maneira análoga ao terror, é uma fonte de sublime; ou seja, é susceptível de produzir a mais forte emoção que o espírito é capaz de sentir”. Ibid, I, 7. Burke acrescenta que o sublime tem a propriedade de encher o espírito e excluir daí qualquer outra ideia, uma vez que ele depende de sensações e de imagens próprias a fazer nascer uma forte tensão corporal ao invés do Belo, que consiste na doçura e nas sensações que descontraem os nervos (IV, 5; 20-22).
Kant admite que o Belo e o Sublime são duas espécies coordenadas de um mesmo género : o belo é caracterizado pelo seu carácter finito e completo ; o Sublime pelo facto de pôr em jogo a ideia do infinito, seja na forma de grandeza (sublime matemático) seja na forma de potência (sublime dinâmico). O belo manifesta uma harmonia, o sublime uma luta entre o entendimento e a imaginação. ) Kritik der Urteilskraft, ) I, 1, livro II, §§ 23 a 29.” (tradução do francês)
(A. Lalande -”Vocabulaire technique et critique de la philosophie”- Quadrige / Presse Universitaire de France, 1926)
(3) K. Nesbitt, introdução, op. cit.
(4) J.C.Garcias -”Koolhaas et le Sublime”- L`architecture d`aujourd`hui, nº 304, 1996
(5) R. Koolhaas -”Bigness or the problem of large”- 1994 em R. Koolhaas e B. Mau -”S,M,L,XL”- Ed by J. Sigler, Benedict Taschen Verlag GmbH, 1997
(6) J.C. Garcias -”Koolhaas et le Sublime”- op. cit.
(7) A. Zaera Polo -” Finding freedoms: conversations with Rem Koolhaas”- El Croquis 53, 1991
(8) Idem
(9) Idem
(10) R. Koolhaas -”The terrifying Beauty of the Twentieth Century”- 1985 em R. Koolhaas e B. Mau, op. cit.
(11) Idem
(12)“Um crítico frustrado, refugiando-se em míticos esquematismos escreve : não há outra maneira de pôr a questão; Koolhaas é o Le Corbusier dos nossos dias”. (tradução do inglês)
(J. Kipnis -”Recent Koolhaas”- El Croquis 79, 1996)
(13)“Entre os seus afins -Eisenmam, Hadid, Libeskind, Tschumi, etc- Koolhaas foi o mais obstinado em fundamentar a sua trajectória e as suas técnicas numa franca reflexão sobre a arquitectura, mais do que sobre a filosofia contemporânea ou sobre a teoria cultural”.
”Estes arquitectos são citados como pares de Koolhaas não tanto por terem partilhado qualquer manifesto mas em virtude de filiações institucionais históricas que tiveram em comum, por exemplo: a Architectural Association, o Institute for Architectural and Urban Studies; ) e da participação dos arquitectos em alianças mais recentes mais recentes, tais como: a Exposição Descontrutivista no MOMA, as conferencias da ANY, e o empenho geral em prosseguir o desenho contemporâneo como uma empresa intelectual progressista. Por outro lado, sempre houve uma aliança difícil que lembra a fraternização ambivalente de Mies van der Rohe com os membros da vanguarda de Berlim no fim dos anos de 1910 e no início dos 20”. (tradução do inglês)
(Idem)
(14) R. Koolhaas -”The terrifying Beauty of the Twentieth Century”- op. cit.
(15) J Attali –“A Surpassing Mutation”- em –“Mutations”- ACTAR, arc en rêve centre d’architecture, 2001
(16) Attali faz referência ao texto de Koolhaas “What Ever Happened To Urbanism” em S,M,L,XL.
“Se é para haver um novo urbanismo ele não será baseado em fantasias gémeas de ordem e omnipotência, debater-se-á com a incerteza, não estará preocupado com o arranjo de objectos mais ou menos permanentes mas com a irrigação de territórios com potencial”
(17) Y, Semeoforidis –“Notes for a Cultural History Between Uncertainty and Contemporary Condition”- em –“Mutations”- op. cit.
(18) Eduard Bru –“Strata, not Mutations”- em –“Mutations”- op. cit.
(19) Josep Maria Montaner -”Depois do movimento moderno. Arquitectura da segunda metade do século XX”- Editorial Gustavo Gili, 2001