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ATELIER RUA: O TRIUNFO DA SIMPLICIDADE QUE INSPIRA UMA GERAÇÃO
FÁTIMA LOPES CARDOSO
“Arquitetura é a arte científica de fazer as estruturas expressarem ideias.”
Frank Lloyd Wright
Surgiram em 2006, num tempo que se anunciava difícil para a arquitetura. Mas em véspera de a Troika aterrar em Lisboa para impor fortes restrições ao erário público, ainda conseguiram conceber um projeto integrado no plano de reabilitação da Parque Escolar. A Escola EB1/JI de Porto Salvo, construída entre 2009 e 2011, em parceria com os arquitetos Projectório, viabilizou uma ideia e provou que existia talento numa equipa que dava os primeiros passos na arquitetura nacional. Eram jovens, tinham sido colegas da licenciatura em Arquitetura, da Universidade Lusíada de Lisboa, finalizada entre 2002 e 2003, e todos experienciaram o início de carreira com equipas europeias conceituadas, como os Mecanoo, na Holanda, os Herzog & de Meuron, na Suíça, e, em Portugal, o atelier José Adrião Arquitetos.
No final do estágio, adaptaram a memória de cooperação durante a universidade ao contexto profissional e lançaram-se numa opção pouco comum na arquitetura portuguesa: provar que o processo criativo não tem de ser individual, como acontecia na geração de arquitetos anterior, e pode funcionar em complementaridade.
Dezoito anos depois e dezenas de projetos concretizados no país e no estrangeiro, Francisco Freitas, Luís Valente, Paulo Borralho e Rui Didier continuam a ser a alma do coletivo Rua. A capacidade de aliar a cultura local com a sofisticação da arquitetura moderna de linhas simples, formais e minimalistas esculpiu, ao longo dos anos, a identidade que hoje é reconhecida e que podemos apreciar em projetos espalhados pelo país, desde a zona Centro, ao Algarve - o Norte parece ser um território naturalmente dominado pelas escolas de Arquitetura do Porto.
© Atelier Rua
Um caminho linear
Como acontece com qualquer criador, a história do atelier Rua começou com a informação que os quatro arquitetos absorveram dos lugares onde nasceram e cresceram – Castelo Branco, Lisboa e Évora -, na formação académica, nos ateliês em que estagiaram, nas viagens que fizeram, nos lugares e edifícios que conheceram e materializou-se a cada oportunidade que foi surgindo. Logo nos primeiros tempos de existência, apresentaram um projeto a concurso para a requalificação da zona ribeirinha do Ribatejo interior, que se estende entre Vila Nova da Barquinha, Constância, Chamusca e Abrantes. Enquanto mostra a maquete de um módulo adaptável, um dos quais instalado em Vila Nova da barquinha, Luís Valente explica que a ideia consistia em “criar elementos de ligação ao longo dos 24 quilómetros pelos quais se estende o Tejo”.
O atelier Rua ficou em terceiro lugar, mas a qualidade da candidatura atraiu um dos projetos públicos que lhes conquistou mais reconhecimento e de que mais se orgulham: o Parque de Campismo de Abrantes. A estrutura ondulada que serpenteia a paisagem do Rossio ao Sul do Tejo demonstra que a experiência de acampar nada tem a ver com “férias de segunda”, mas sim uma vivência única de contacto com a natureza e a sua luminosidade. Composta por receção, balneários, zona de lavagens e cafetaria, a obra, construída na fronteira com as velhas instalações que existiam no local, valeu-lhes a nomeação para o prémio Mies, edição 2017, a distinção mais conceituada da arquitetura europeia – o prémio principal da primeira edição, em 1988, foi ganha por Siza Vieira e, em 2011, por Eduardo Souto Moura.
Ainda na sub-região do Médio-Tejo, o atelier Rua desenhou a ponte pedonal sobre o rio Zêzere, em Constância, e candidatou-se ao projeto de recuperação da Casa Camões, na mesma vila. Em Tomar, concebeu uma das obras públicas mais exemplares do portefólio do coletivo: a Escola EB + JI de Linhaceira, um edifício modernista de 1228 m2, com janelas de dimensões generosas e espaços de recreio cobertos de estruturas onduladas em madeira, onde a luz é sempre privilegiada. E ainda idealizaram um projeto para o concurso da Fábrica da Cultura, em Minde.
Na área da Grande Lisboa, o coletivo Rua valorizou 26.610 m2, no centro de Moscavide, no concelho de Loures. Os quatro arquitetos ocuparam-se ainda da requalificação do Mercado de Sacavém; desenvolveram o projeto para as instalações da Administração do Porto de Lisboa, na ala Nascente da Gare Marítima de Alcântara e, em colaboração com a equipa de arquitetos paisagistas NPK, na criação de infraestruturas da Praça de Espanha.
O respeito pela cultura local
Se os projetos públicos surgem mais a conta-gotas e alguns não passam de maquete digital, como o da zona marítima da ilha de Faro que poderia travar a erosão da Costa, já pensado em 2008, foi na projeção de edifícios de hotelaria - rumo natural face ao boom turístico do país - que o atelier Rua ganhou um impulso maior. A abertura da Pensão Agrícola, perto de Tavira, em 2015, um reduto de bom gosto de traços minimalistas deu fôlego a diversas encomendas no setor. A beleza do pormenor, que recupera a simplicidade da arquitetura popular algarvia, lançou este espaço para o circuito turístico internacional, com destaque em inúmeros sites de life style e revistas especializadas de referência estrangeiras, incluindo publicações na Ásia. Quatro anos mais tarde, os proprietários deste projeto confiaram-lhes outra maravilha do impossível transformada em realidade: a Hospedaria. O desafio foi novamente vencido. De uma propriedade de 600 m2, situada numa encruzilhada de estradas que parecia um nó sem solução, nasceu outro refúgio turístico para quem procura usufruir da beleza do Sotavento algarvio.
Atelier RUA: Pensão Agrícola. © Miguel Manso
Entretanto, o êxito da Pensão Agrícola também chamou a atenção para outros projetos, mesmo que em geografias e de natureza bem distintas. Em 2017, os arquitetos do atelier Rua mostraram que a vinicultura portuguesa pode combinar ruralidade com modernidade e sofisticação. Quem percorre a A23, em Sarnadas de Ródão, em direção a Castelo Branco, é surpreendido com uma das obras mais interessantes deste coletivo.
Numa propriedade outrora fustigada de eucaliptos, nasceu uma herdade coberta de vinhas e, no cume, o edifício dedicado ao agroturismo: a Adega 23. A estrutura dourada e revestida a cortiça escura, com um espaço de prova de vinhos do qual irrompe uma varanda com vista panorâmica, destaca-se na paisagem, mas sem a descaracterizar. Luís Valente descreve a intenção criativa que conceptualizou o projeto: “A primeira relação com o edifício será sempre a 120 km/hora, a partir da autoestrada. Por isso, não poderia ser uma estrutura anónima e que passasse despercebida, o que justifica as formas retilíneas e o dourado. Houve a ideia de aproveitar um pavilhão antigo que se encontrava previamente no local. Como a alvenaria era muito fina e a zona é muito quente, decidiu-se utilizar a cortiça, que é um isolante incrível e tem relação com o universo do vinho.”
Selecionado para os Prémios FAD, em 2018, o projeto da Adega 23 demonstrou a versatilidade criativa dos arquitetos do atelier Rua e a capacidade de ajustarem cada obra à sua funcionalidade, bem como ao contexto paisagístico e cultural em que está inserida. A inspiração surge da observação e da contemplação, da experiência, da pesquisa de contextos que podem ser um contributo determinante para um projeto, aproveitando o melhor da herança arquitetónica portuguesa que tem em Fernando Távora e Siza Vieira as principais referências, mas também na obra “Arquitectura Popular em Portugal”, lançada em 1988 pela Associação de Arquitetos Portugueses.
Refletindo a premissa de Mies van der Rohe, de que “menos é mais”, o processo criativo resulta igualmente da capacidade de valorizar o essencial: projetar a partir da orientação solar e da geografia do lugar, do ambiente envolvente; com base na tradição e memória ou, na sua ausência, no despojamento do espaço onde serão erguidos determinada obra ou equipamento. “É a partir da luz que retiramos o maior pretexto para fazer de uma forma ou de outra. Depois, existe o programa para perceber os hábitos de vida das pessoas e quais são as suas necessidades, ou seja, a funcionalidade. Também se consideram os condicionantes burocráticos com as diferentes entidades”, diz Luís Valente.
Embora os concursos públicos sejam os projetos que mais desafiam o coletivo Rua, “pela dimensão do processo criativo envolvido e pela democratização na distribuição de trabalho que representa”, como justifica o mesmo arquiteto, nos últimos tempos, o atelier Rua não tem mãos a medir para responder às solicitações de residências privadas. Alguns dos exemplos mais modernistas encontram-se na zona do Meco, onde as formas retas das casas encaixam com a paisagem arnosa, salpicada de pinheiros mansos e mais desabitada de tradições arquitetónicas.
A Sul, continuam a recuperar a candura das paredes brancas do barrocal algarvio, combinando a luminosidade natural dos lugares com os materiais e as formas utilizados na arquitetura tradicional. Um dos projetos privados mais apreciados e com maior destaque no portefólio é a casa de 90 m2 que reabilitaram, em 2018, em Vila Nova de Cacela. Branco e azul, como a luz, o céu e o mar. A pequena casa é o reflexo da convicção da icónica arquiteta Lina Bo Bardi: “C'è un gusto di vittoria e di meraviglia nell'essere semplici. Non ci vuole tanto per essere ‘molto’” (“Há um sabor de vitória e de maravilha em ser simples. Não é preciso muito para ser “muito.”
As ideias do atelier Rua nunca se esgotam; surgem de várias mentes criativas que aprenderam a trabalhar em equipa desde o primeiro momento. Da complementaridade que começou a quatro e que, entretanto, já foi alargada a 12 arquitetos, brotarão novos projetos que, em zonas mais urbanas ou tradicionais, ordenam o espaço, conferem-lhe um novo valor ou ressuscitam velhas tradições arquitetónicas que ganham forma para servirem a funcionalidade de quem tem a sorte de habitar esses espaços, sejam públicos ou privados.
Fátima Lopes Cardoso
Investigadora do LIACOM e colaboradora do ICNOVA, professora adjunta na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa (ESCS), onde coordena a licenciatura em Jornalismo. Doutorada em Ciências da Comunicação, especialidade Comunicação e Artes, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), da Universidade Nova de Lisboa, é autora do livro “A Fotografia Documental na Imprensa Nacional: o Real e o Verosímil” (2022), adaptado da tese de doutoramento homónima (2015). Jornalista desde 1997, o interesse académico por conhecer a ontologia da imagem e, em particular, da fotografia jornalística tem levado à participação em várias conferências e colóquios em Portugal e a nível internacional sobre a temática, bem como em diversos projetos editoriais e científicos.