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ENTREVISTA | ANDRÉ TAVARES
ANA LAUREANO ALVES
André Tavares é um nome incontornável no contexto arquitectónico português. É o coordenador editorial da Dafne Editora — editora que representa uma lufada de ar fresco no panorama nacional, apresentando um conjunto alargado de autores e de temas fundamentais em torno da arquitectura. Paralelamente à edição, é também autor, historiador, crítico e moderador, numa intensa actividade de promoção do diálogo de arquitectura, com uma perspectiva sempre comprometida com a realidade e o contexto actual que nos rodeia. Com isto se entende que André Tavares é a personagem indicada para com ele entender o panorama actual da edição e da reflexão no contexto da cultura arquitectónica em Portugal.
Graz, Junho de 2012
Ana Laureano Alves
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Entrevista a André Tavares [1]
A Dafne Editora surgiu enquanto vontade de colmatar uma lacuna no contexto editorial português: a inexistência de publicações em português sobre cultura arquitectónica. Quais foram os primeiros projectos e ambições da Dafne?
AT: O que te faz afirmar isso? Não creio ser justo dizer que não existissem publicações portuguesas sobre cultura arquitectónica. Havia e há. Em 2003, quando a Dafne começou a publicar, as edições da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto conduzidas pelo arquitecto Manuel Mendes eram uma referência notável, sob a forma de livros, muitos e bem feitos, que demonstravam que não só era possível publicar como essa publicação poderia ter efeitos.
A Dafne nunca teve como ambição “colmatar lacunas”. A Dafne foi montada pelo meu pai, Domingos Tavares, em 2003, para publicar sob a forma de livro o trabalho que ao longo de muitos anos estava a desenvolver como professor de História da Arquitectura. Não havia naquele momento, nem há agora, essa ambição messiânica de colmatar lacunas. Em Portugal, estaríamos completamente desgraçados se tivéssemos essa pretensão. Seria como tentar navegar hoje numa nau sem manutenção desde a última viagem. Ou seja, creio serem mais as lacunas do que a superfície em bom estado.
Estava a dizer que a Dafne começou por publicar as aulas do meu pai e tivemos uma receptividade e sucesso relativamente inesperados; não clamorosos (o silêncio da crítica foi estridente), não comerciais (vender livros tem sido um quebra-cabeças), mas percebemos que havia e há um acolhimento e simpatia muito generosos relativamente ao que estávamos a publicar. E assim temos vindo a ampliar esse objectivo inicial. Hoje, as Sebentas de História da Arquitectura Moderna (www.dafne.com.pt/catalogo.php?sub=1) continuam a ser a espinha dorsal da Dafne, mas têm a companhia de outras aproximações, outras leituras, outros amigos.
Lendo as explicações de cada linha editorial, percebemos que há imensa margem de manobra, quer nas Equações de Arquitectura quer nos Opúsculos. Quais são os critérios para a selecção/convite e escolha de cada autor/livro a publicar? Como funciona esse processo?
AT: É um processo muito simples e simultaneamente muito complicado. É simples porque temos independência suficiente para publicarmos “só aquilo de que gostamos”, mas é complicado porque só faz sentido publicarmos aquilo em que acreditamos poder fazer ressonância com os nossos leitores. E há um terceiro factor, ainda mais complicado, que é encontrar mecanismos de financiamento das edições e que, finalmente, é um factor fundamental. Mas vamos por partes.
Os Opúsculos (www.dafne.com.pt/catalog3.php?sub=3) eram publicações essencialmente on-line — a versão impressa era muito limitada e dedicada a servir de arquivo físico em bibliotecas — e, sobretudo, eram peças pequenas. Ou seja, a produção era bastante económica para não estar refém dos custos de impressão e distribuição. Isso permitia trabalhar com uma certa independência, encontrar autores que não teriam de estar caucionados pelo mítico “mercado”, explorar caminhos que queríamos descobrir como formas para montar argumentos e articular conteúdos. Porque tinha custos de produção muito baixos podíamos fazer isso descontraidamente, ao ritmo dos nossos interesses e disponibilidades.
O custo maior era a minha carolice para editar textos que nem sempre eram legíveis à partida, para conseguir com os autores organizar conteúdos e ideias de um modo inicialmente não previsto, etc. Esse era, e é, um custo de tempo e de envolvimento. Afinal, creio que é o custo desse envolvimento editorial que acaba por ditar as escolhas. Como na Dafne não conseguimos fazer dinheiro para ganhar a vida a trabalhar como editores, esse trabalho tem mesmo de valer a pena, tem de ser imprescindível e ser entendido como tal, pelo menos para mim, que o faço.
Ou seja, ao editar um livro tenho de sentir que está a valer mais a pena queimar as pestanas à frente do computador do que estar na praia a apanhar sol. Normalmente, não é isso que penso durante a construção do livro, mas no final é. Compreendo a minha palidez pela satisfação ou alcance que acredito que os livros possam vir a criar. É esse o critério fundamental: tem de valer a pena. Se não para os leitores ou autores, pelo menos para mim. Às vezes custa a acreditar, mas é aquele amor indescritível ilustrado no livro do Ray Bradbury, Fahrenheit 451, aquilo que leva a Julie Christie a preferir refugiar-se nos bosques como guardiã de um saber ameaçado. Mas não se confunda isto com sacrifício, não tem nada a ver com isso. Todos sabemos que é muito melhor viver nos bosques do que ser bombeiro.
Os Opúsculos parecem-nos, de certa forma, um manifesto da própria Dafne. Concordas? Qual o balanço que fazes, depois do seu vigésimo sexto número? É possível, como se propunham no texto de apresentação da série, entender “valores comuns? Ou se, pelo contrário, [é] impossível encontrar linhas de coerência entre diferentes autores?”
AT: Um manifesto? Sim, talvez. A própria Dafne é um manifesto de si própria? Ou não?
Tens razão. Só que falaria no passado. Os Opúsculos acabaram, fecharam. Tentámos vagamente fazer esse balanço, mas ele não se fez. A crítica não reagiu de nenhum modo aos Opúsculos. Houve muitas manifestações de apoio, houve comentários simpáticos e antipáticos em blogues. (Lembro-me de atribuírem a um autor o epíteto de escarreta divina... e ficarmos contentes. É verdade que não é um nome muito lisonjeiro, mas sentimos — eu e o visado — que o que publicámos não causou indiferença.) Mas, a partir de certo momento, senti que os Opúsculos estavam a perder a receptividade que chegaram a ter. Menos leitores e sobretudo leitores mais acomodados, como se receber aqueles textos fosse um facto consumado. E também estavam a aparecer outras plataformas de publicação que não existiam quando começámos (esta mesmo, a Artecapital, foi uma delas). No início, tínhamos essa ambição de fazer um balanço, de experimentar a ver o que dava. O ciclo encerrou-se porque sentimos que esse balanço podia ser feito, que havia condições e matéria suficiente para o fazer. Mas ninguém fez esse esforço e, confesso, eu senti-me demasiado envolvido no processo para o poder fazer.
Creio que deve ser possível encontrar essas linhas sem grande dificuldade. Isso faz-me pensar na tua outra pergunta, que critérios para escolher autores? Os Opúsculos serviam também como plataforma de teste para autores que se apresentavam, por iniciativa própria, para publicar livros — e que muitas vezes convencíamos a fazer emagrecer para produzir um Opúsculo — ou para publicar textos. Em geral, íamos dizendo que sim, acolhendo as propostas. Mas recusámos várias e algumas até foram recusas dolorosas, porque os textos eram competentes. Mas não era isso que queríamos publicar. Queríamos demonstrar que existiam mais formas de pensar a arquitectura para lá de citar autores eruditos. Por isso, por ter havido escolha, imagino que haja alguma coerência. Quem sabe se alguém, algum dia, se irá ocupar de desvendar esse grande mistério.
Uma das aventuras mais recentes foi a edição do livro Eduardo Souto de Moura: Atlas de Parede, Imagens de método. Como surgiu a ideia deste livro e porquê a decisão de criar uma nova linha editorial Fora de Série? Como foi este livro acolhido pelos leitores — tendo em conta também a notoriedade do autor e o recente Pritzker?
AT: São três perguntas diferentes. A colecção Fora de Série foi imaginada antes do Atlas de Parede (www.dafne.com.pt/catalogo2.php?menu=3&id=42), para um livro que ainda não foi publicado. Basicamente correspondia à necessidade de usar um formato diferente do nosso habitual 15,0 x 22,5cm. Esse outro formato dá-nos mais espaço de página e permite fazer livros capazes de articular melhor vários géneros de conteúdos. Foi por isso que começámos a magicar essa colecção, literalmente fora-de-série na medida em que seriam livros produzidos à margem das séries gerais da Dafne. E como as séries já eram por si bastante elásticas na gestão dos conteúdos, como já fizeste referência para as Equações ou Opúsculos, o sentido fora-de-série era um sentido de formato, portanto, não temático.
O livro Atlas de Parede partiu de uma ideia do Pedro Bandeira e da generosidade do Eduardo Souto de Moura relativamente à nossa curiosidade. Quando começámos a perceber que livro é que aquela ideia poderia produzir, pareceu-nos que o formato maior poderia dar melhores resultados. Creio que sim, que esse uso foi positivo. Poderia falar dos conteúdos do livro, mas aproveito para salientar outro aspecto editorial que pode fazer mais sentido para esta conversa, que é o aspecto da internacionalização. Esse aspecto editorial afectou logo à partida o modo como organizámos os conteúdos do livro. Ao fazer um livro com o Eduardo Souto de Moura (e o Pritzker apanhou-nos a meio caminho, já estava o livro bastante avançado) sabíamos que iríamos ter um público e um interesse mais amplo, o que era uma boa oportunidade para ensaiar esse passo fora do contexto português. Fizemos o livro em inglês logo à partida, traduzindo-o para português. Só que a edição e distribuição em inglês é um negócio complexo e, por razões várias, optámos por editar só em português.
Digo isto para introduzir a resposta à terceira pergunta, a recepção crítica do livro. Como seria expectável, a personalidade mediática e a eventual estranheza do livro geraram, no momento do lançamento, um interesse alargado pela divulgação da então “novidade” editorial. O jornal Público fez uma cobertura bastante cuidadosa do lançamento e ficámos muito surpreendidos e orgulhosos por ter honras de destaque no jornal A Bola (www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=303058). A Trienal de Arquitectura deu-nos um apoio fundamental e generoso na apresentação em Lisboa, enfim, tudo correu às mil maravilhas.
Recebemos muitos comentários simpáticos e calorosos e, mais até do que é habitual, sentimos reacções positivas dos leitores. Alguns surpreendidos pela abordagem, outros entusiasmados pela qualidade dos textos, outros esfuziados pela qualidade visual do objecto e, coisa rara, vários surpreendidos pelo preço razoável tendo em conta a qualidade luxuosa do livro. Entretanto, tenho conhecimento de três críticas publicadas. Finalmente, eu diria, porque é tão raro haver crítica. A primeira a aparecer foi escrita pela Vera Sacchetti e publicada na Domus (www.domusweb.it/en/book-review/souto-de-moura-atlas-de-parede), onde se nota o fascínio gerado pelo modo como o livro manipula e constrói um universo visual rico e específico, e se acusa o esforço da escrita de pôr ponto final nessa rêverie visual. A segunda crítica foi publicada pelo Ricardo Carvalho no Ipsílon e o livro teve honras de 5 estrelas. Nessa crítica sugere-se ser escusado ler os textos para compreender o livro (coisa já apontada na primeira) e digere-se o livro como se não fosse nada mais do que a constatação do óbvio, sendo o óbvio, digo eu, o universo que o próprio livro se esforçou por tornar acessível e, para isso ser possível, fornecer chaves de leitura. O que me impressionou naquela crítica, e sobretudo na terceira, publicada pelo Luís Urbano no Jornal Arquitectos, foi servirem-se da construção que o livro encerra para construírem o seu argumento e, no final, dizerem que o livro não faz mais do que dizer o que já está dito. O texto do Luís Urbano é radical nesse aspecto: gasta metade do espaço a demonstrar a erudição do crítico — com notas de rodapé e tudo — e só a partir de metade do texto é que finalmente descreve e procura entender, apressadamente, o conteúdo do livro. Mas o leitor da crítica, se não tem o livro à frente, corre o risco de não se dar conta que a erudição introdutória é um apanhado rápido dos conteúdos dos textos que, afinal, segundo o crítico, nem são assim tão relevantes. Ou seja, para a crítica portuguesa, o livro parece não ter grande interesse nem trazer nada de particularmente novo.
Felizmente não vivemos da crítica nem para a crítica. Estava antes a falar-te da questão do inglês, de desde o início termos imaginado o livro em inglês e o ter dirigido para esse universo editorial, que é bastante mais complexo do que o local. E a melhor crítica que tivemos foi o facto de uma das mais prestigiadas editoras de arquitectura e design num plano internacional, a Lars Müller, ter acolhido o livro com entusiasmo e estar a preparar a sua publicação em inglês para o próximo Outono (www.lars-mueller-publishers.com/en/catalogue-architecture/floating-images). E isso, naturalmente, deixou-nos muito felizes (e ajudou a pagar a despesa). Para além disso, significa para nós um passo bastante relevante para conseguirmos alargar o nosso campo de trabalho e recepção.
Outro autor notável e responsável por um dos livros com maior sucesso de vendas é, sem dúvida, o geógrafo Álvaro Domingues. A segunda investida, Vida no Campo, já se comprovou outro sucesso, com a recolha de subscritores como suporte da publicação. Como explicas este aumento de leitores destas publicações específicas?
AT: Por serem livros excelentes! Claro! [risos]
Os livros do Álvaro Domingues não são livros de arquitectura no sentido puro e duro do termo. Dirigem-se a um assunto que nos toca a todos: a transformação e as hesitações da cultura portuguesa. Os livros — e as outras formas de comunicação que o Álvaro Domingues tem, incansavelmente, vindo a experimentar e a adoptar — pegam “o touro pelos cornos”, falam de coisas que temos dificuldade em entender e, sobretudo, falam disso de uma maneira directa, acessível e intrigante. Obviamente, as fotografias têm um peso fundamental, jogam no fio da navalha entre o registo sarcástico do “Portugal no seu melhor” e um olhar generoso e disponível para compreender essa realidade, não com sarcasmo mas com a bonomia e simpatia fundamental para estabelecer uma conversa, um diálogo.
O facto de serem livros capazes de cativar um público mais vasto do que o público interessado pela arquitectura é fundamental. Primeiro, porque geram reacção crítica, ao contrário dos livros de arquitectura que geram sobretudo silêncio. Depois, porque essa reacção motiva conversa, dúvidas, diálogos, controvérsias. A ambiguidade irónica que a forma de escrever e pensar do Álvaro Domingues despoleta faz-nos sentir vivos e olhar para as coisas de forma diferente. E isso é impagável. Creio que quem pega nos livros, ou quem conversa com ele, sente isso de uma forma imediata (naturalmente uns mais, outros menos, outros haverá que não suportam). Essa reacção faz com que o livro não fique esquecido numa estante e circule. E, ao circular, mais leitores têm hipótese de o encontrar e assim sucessivamente. O sucesso de um livro tende a crescer exponencialmente e os livros do Álvaro têm vindo a gozar dessa qualidade matemática.
Dentro da tua experiência — com a Dafne, mas também com os outros projectos que desenvolveste paralelamente — como desenhas a evolução e o panorama actual da cultura arquitectónica (reflexiva) portuguesa?
AT: Isso é um desenho complexo e não decorre da minha experiência específica. Não sei se consigo fazer um esquiço em forma de resposta rápida.
Panorama? Há um fundo, montanhoso, cheio de irregularidades, picos e glaciares, momentos altos e momentos baixos. Esse fundo está bastante consolidado em torno de algumas (poucas) figuras que controlam posições de poder (jornais, revistas, universidades, órgãos profissionais, comissões políticas). Em si são relativamente homogéneos na promoção de uma cultura de autor, uma visão culturalista da arquitectura em que Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura são os expoentes máximos. Podemos encontrar diferenças nessa homogeneidade, mas no fundo estão todos de acordo, são todos amigos — e meus amigos também.
Depois há alguns epifenómenos. Mas, como bons epifenómenos, não têm grande consequência no contexto geral.
O que caracteriza essa massa montanhosa é, na minha opinião, a auto-referenciação e a celebração da especificidade local. Essa característica, também, contribui de forma dramática para o imobilismo. Obviamente, as flores crescem na Primavera e a neve cai no Inverno, nem seria de esperar outra coisa. Mas parece-me que assim não se vai longe.
Creio que falar do panorama da cultura arquitectónica portuguesa exigiria uma análise mais cuidada. Identificar e entender como funcionam os centros onde se produz essa cultura, a relação dessa cultura que dizes reflexiva com a prática profissional, os desafios aos quais se deve apresentar combativa, os recursos intelectuais e institucionais de que dispõe, com quem se compara, etc. Isso não cabe no contexto de uma conversa sobre as práticas editoriais da Dafne.
Paralelamente ao teu trabalho enquanto editor da Dafne, estás frequentemente envolvido nos mais variados eventos ligados à cultura arquitectónica. Que temas te preocupam actualmente?
AT: A mim preocupa-me o cenário desastroso da nossa cultura, cenário que se compreende melhor nas actuações e afirmações dos políticos. (Isto não tem nada a ver com aquilo que agora se chamam práticas culturais. Digo cultura no sentido lato de cultura, entendo a forma como optamos por atravessar a rua como uma forma de cultura, a política é, talvez, o expoente máximo da cultura.) Confesso que tenho dificuldade em acreditar ser possível acumular tanta estupidez junta e isso preocupa-me. E preocupa-me porque, como sempre, continuamos a viver e a lutar no meio desse cenário. Se nos afastarmos ligeiramente e olharmos para nós próprios, vemos que fazemos parte dessa estupidez generalizada. É isso que me preocupa, ser – ou parecer — estúpido.
Na arquitectura em particular e na minha prática quotidiana é isso o que me preocupa mais, mas não tenho encontrado plataformas nem circunstâncias para pensar ou agir sobre isso, particularmente em contextos públicos ou com reflexos numa partilha cultural mais alargada.
Ou seja, neste momento estou a trabalhar sobre a relação entre os arquitectos e os livros, na passagem do século XIX para o século XX. É um tema maravilhoso, farto-me de comer pó nas bibliotecas e de sonhar com a praia. E posso eventualmente construir um cenário em que entendo essa prática de publicação como um veículo de comunicação e mediação entre os arquitectos e o seu meio social, compreendendo como é que o campo social alargado actua sobre as práticas disciplinares e profissionais restritas. Por exemplo, como é que a cromolitografia — uma técnica que se desenvolveu bastante na primeira metade do século XIX e cuja principal característica era permitir imprimir ilustrações com cores extraordinárias — teve um impacto impressionante no debate arquitectónico, especificamente no debate em torno da policromia na arquitectura grega. E posso a partir daí entender como é que a cor transformou a paisagem urbana no século XIX. E não é apenas uma questão tecnológica, ou seja, não se trata de dizer que a cromolitografia mudou a cor da arquitectura. É uma questão mais complexa, onde se entende o impacto económico da distribuição do livro como factor fundamental para a produção do discurso arquitectónico. No século XIX com a industrialização, apareceram novos actores nas profissões ligadas à edição que transformaram — por razões económicas e não tecnológicas — as formas de produção do livro e também da arquitectura. Essa transformação teve efeitos na construção do discurso dos arquitectos e, naturalmente, teve efeito na construção das nossas cidades e edifícios.
Mas posso dizer-te que isto não tem lá grande interesse, ou pelo menos não me parece que combata directamente a estupidez em que estamos mergulhados. Foi o tema para o qual consegui obter um financiamento que me permite viver. Não estou particularmente preocupado com a história do livro no século XIX.
Como crês que o prémio Pritzker de Eduardo Souto de Moura (a somar ao de Álvaro Siza) influenciou a arquitectura portuguesa em geral? Teve algum impacto, do ponto de vista da divulgação a nível internacional; reconhecimento dos arquitectos ou promoção da encomenda a nível nacional, por exemplo?
AT: Não sei. Não me parece que esteja a ter grande impacto. Em 1991, a atribuição do prémio ao Álvaro Siza teve um impacto fundamental e francamente positivo. Em 2011, a atribuição do prémio ao Eduardo Souto de Moura foi uma surpresa excelente. Fez gaguejar muitos dos seus detractores que achavam que a qualidade da sua obra era uma construção suportada por uma suposta máquina mediática. Obviamente, o prémio enalteceu o nosso ego, uma vez que partilhamos o mesmo espaço cultural. Mas não creio que tenha sido fundamental para ele aceder a mais e melhor encomenda internacional (terá de ser o próprio a responder a isso) nem me parece fundamental para o reconhecimento local da profissão.
Apesar disso, creio que é fundamental reinventar o papel social e profissional do arquitecto em Portugal. Isso será crucial para conseguirmos aproveitar os bons recursos que temos (dos quais os nossos admirados Pritzker’s fazem parte) e que estamos a desperdiçar de uma forma grotescamente exemplar. Os prémios são bons, sem dúvida, mas podem e parece-me que estão a ter um efeito narcótico, em vez de estimulante. No fundo, parecem fazer crer que tudo está bem, que não é preciso reinventar nada. A culpa não é dos prémios, nem dos premiados. Creio que a culpa é da tal estupidez de que falava há pouco e que cada vez mais se apropria de tudo.
Assistimos a um cenário de aparente intensa actividade cultural — com a proliferação de eventos, publicações de inúmeras revistas de arquitectura, cursos, palestras, etc. Já te referiste a uma situação destas anteriormente, com o texto “Outubro Escaldante”, escrito em 2009 na Artecapital. Crês que a situação é similar? Como entendes este cenário de aparente ebulição?
AT: Não creio que nestes três anos (www.artecapital.net/arq_des.php?ref=43) isso tenha mudado muito, ou tenha sequer mudado. Mas a ebulição está a aumentar. Porquê? Porque sem trabalho nem condições para, como arquitectos, materializarmos a nossa forma de entender o mundo, a tendência é mostrarmos publicamente — sob esse chapéu-de-chuva eloquente que é a cultura — aquilo que sabemos e as capacidades que temos. Corremos é o risco de estarmos a falar para nós próprios, de a assembleia ser feita apenas de convertidos. Ou de serem tantos os acontecimentos simultâneos que o público se evapora nos interstícios.
O que eu dizia na altura, e continuo a dizer agora, é que há falta de crítica. E quando há crítica — já dei o exemplo do nosso livro lá atrás — essa crítica é muito frágil e pouco culta. Para além de não haver cultura, não há hábito nem disciplina de seguir protocolos básicos da crítica, como por exemplo estabelecer um diálogo com o objecto criticado. Talvez já se tenha passado a fase absurda em que se confundia crítica com divulgação, mas ainda parece que fazer crítica é mostrar autoridade e competência própria sobre um assunto, independentemente do objecto criticado. Os críticos, em geral, fazem aquele papel do comentador desportivo que nunca jogou futebol mas não se coíbe em dizer que o jogador em campo deveria fazer isto ou aquilo. Obviamente, a cultura arquitectónica é diferente do futebol, mas de quando em quando chega a parecer que não.
Contribuíste para um debate promovido pela revista Arq.a, a propósito da Geração Z e das novas práticas espaciais. Como lês estas experiências e, sobretudo, que avaliação fazes dos resultados destes debates?
AT: Mais uma vez, creio que naquela altura disse o que tinha para dizer. O melhor é ler aquelas respostas. (www.revarqa.com/content/1/638/andre-tavares/). Mas talvez hoje tenha vontade de acrescentar uma coisa. Quando esse debate foi lançado, havia encomenda de projecto. Ou seja, os ditos Z’s esforçavam-se por ganhar legitimidade profissional num campo mediático que lhes desse acesso a encomendas. Não sei se chegou a dar, se é que é possível ligar directamente uma coisa a outra, mas o que acontece hoje é que não há encomenda, pelo menos por cá. Portanto, o debate esgotou-se naturalmente. Agora as estratégias têm de ser outras, as novas práticas espaciais já parecem velhas.
Foste convidado para ser relator crítico, aquando da discussão do Estatuto da Ordem dos Arquitectos, em 2008. Nesta demonstraste uma posição bastante crítica relativamente à Ordem enquanto estrutura existente e apontaste alguns caminhos para a reestruturação, não do Estatuto, mas da Instituição. Qual foi o impacto destes textos? E actualmente, como vês a postura da Ordem face às circunstâncias dramáticas da profissão?
www.oasrn.org/estatuto_em_discussao/?page_id=17
www.oasrn.org/estatuto_em_discussao/?page_id=13
www.oasrn.org/estatuto_em_discussao/?page_id=19
www.oasrn.org/estatuto_em_discussao/?page_id=25
www.oasrn.org/estatuto_em_discussao/?page_id=29
AT: O impacto desses textos foi nulo. Imagino que, para além da Teresa Novais e da Carolina Medeiros (que os leram e me davam notícia do seu prazer nessa leitura) devem ter sido lidos por mais cinco ou seis pessoas. Mas a revisão do Estatuto foi um embuste. Não pelo facto de ninguém ler os textos, que compreendo com naturalidade, mas pelo facto de se estar a discutir uma coisa que rapidamente percebi ser falsa: a hipótese de actualizar o Estatuto da Ordem dos Arquitectos.
Com a direcção actual da Ordem, parecida com a de então, e ao contrário do que foi explícito nos programas eleitorais, não há hipótese de mexer no Estatuto. A desculpa é simples: perante a situação de crise em que estamos, mexer no Estatuto significa pôr em questão a definição dos actos próprios da profissão. Ou seja, argumenta-se que mexer no Estatuto significa pôr em cheque a exclusividade profissional conquistada com tanto custo. Creio que é uma justificação completamente despropositada. Pessoalmente não acredito na eficácia dessa delimitação profissional e acredito, vejo quotidianamente, a máquina da Ordem a engordar desproporcionalmente. Como se explica a existência de quatro páginas Internet a funcionar em paralelo, com as despesas que acarreta manter toda essa parafernália? As páginas são obviamente um custo menor, mas essas páginas significam que por detrás delas estão quatro organismos independentes, com presidentes, secretários-gerais, secretários-parciais, secretários-adjuntos, secretários-esporádicos e, como se isso não fosse bastante, assessores, assessores, assessores, mais informadores e colaboradores, eventuais ou permanentes. É verdade que a produção da Ordem é relevante, é e tem de ser uma estrutura articulada, com capacidade de resposta em muitas frentes paralelas, da produção legislativa do Estado à difusão cultural da Arquitectura, da formação contínua à vigilância e punição disciplinar, a Norte e Sul, nas ilhas e não só. Isto se quer ser uma Ordem. Mas não tenho dúvidas que a engrenagem tem peças a mais e que o actual Estatuto promove a imobilidade da instituição, incapacitando-a de ser o que poderia ser.
No Canadian Centre for Architecture (www.cca.qc.ca/en/study-centre/1433-andre-tavares-and-diogo-seixas-lopes-news-from-nowhere-a), referiste a situação de crise da cultura arquitectónica portuguesa, sem encomenda, sem apoios nem recursos. Como visualizas o desenrolar deste cenário?
AT: Com esperança. Temos de meter mãos à obra, o futuro somos nós que o fazemos.
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Escrito de acordo com a antiga ortografia
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NOTAS
[1] Entrevista realizada por Ana Laureano Alves a André Tavares. Esta entrevista foi longa. Foi imaginada e combinada em Janeiro de 2012. Teve um primeiro momento em conversa em Fevereiro e foi continuada em Abril. Por alguma razão, o gravador não funcionou. Em Junho de 2012, a entrevista foi escrita.
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André Tavares
(Porto, 1976) Estuda, vive e trabalha no Porto, como arquitecto. É coordenador editorial na Dafne Editora. Foi autor de vários livros e escreve com regularidade textos de história, teoria, crítica e divulgação de arquitectura para os mais diferentes contextos. Foi professor convidado na Escola de Arquitectura da Universidade do Minho (2008-2011) e actualmente é bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Ana Laureano Alves
(Cascais, 1984) Arquitecta pela Escola de Arquitectura da Universidade do Minho (2008). Trabalha em Graz, na Áustria, desde 2011, depois de ter trabalhado em Paris (2009-2010). Escreve pontualmente sobre arquitectura em revistas nacionais.