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SIZA: O SUJEITO ENTRE VERBOS, NA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
FREDERICO VICENTE
Álvaro Siza Vieira pertence a uma geração de arquitetos em vias de extinção (soam certamente alarmes entre alguns dos leitores). Uma geração de profissionais, no sentido da vocação e não apenas da ocupação, que encaram a arquitetura como um serviço (uma prestação de serviços): social e público e cujo desenho é a solução para uma problemática. Não nos iremos alongar sobre o primeiro dos pontos, deixemos para um outro artigo (de opinião) sobre o (infeliz) estado da arte da profissão em Portugal, centremos a nossa atenção no desenho, protagonista da exposição mais recente da Fundação Calouste Gulbenkian: “SIZA”, com curadoria de Carlos Quintáns e Zaida García-Requejo.
Em 1977 Christopher Alexander (1936 - 2022) publicou o livro A pattern Language: towns, buildings, construction. Embora em campos muito diferentes, é pertinente trazer este livro para a discussão, veremos adiante porquê. Ao longo de 253 padrões o arquiteto e teórico sistematiza soluções para várias das problemáticas habituais que a arquitetura, o planeamento e gestão urbana procuram dar resposta. O texto organiza-se capítulo a capítulo, numa linguagem de padrões, sublinhando que “a boa arquitectura” é simplesmente atemporal e atinge maturidade com características replicáveis, tornando-a universal; isto é, existem soluções de desenho que podem ser reproduzidas no terreno, tanto aqui, como em qualquer parte do globo, de modo a resolver problemas comuns. É certo que há um conjunto de vários outros fatores que entram na equação, mas o curioso desta enciclopédia de conclusões padronizadas, que à primeira vista pode assemelhar-se com a linguagem computacional - a cada problema uma solução - é que não são respostas fechadas, são possibilidades, são possibilidades flexíveis; e assumem-se como um manual de boas práticas acessíveis a outros agentes que não somente arquitetos, urbanistas ou profissionais de ambas as disciplinas. Com todo o respeito (e admiração) pelo seu autor, o livro é sobretudo um conjunto de soluções que encontramos quando nos disponibilizamos a observar os lugares, em jeito de ver, estar e permanecer, e ou quando escutamos e pesquisamos sobre o que é vernacular nos locais da intervenção. Por outro lado - ou em boa verdade em linha com tudo isto - o livro propõe uma metodologia que envolve e até centra a participação dos usuários no processo, emergindo os resultados das necessidades concretas dos seus habitantes e do uso real que vão dar à construção. E porquê invocar Christopher Alexander para um texto com foco na exposição sobre a obra de Siza? Sobretudo pelo método de construção do livro, e depois porque esta não é uma filosofia distante de Álvaro Siza, aliás este parece-me o enquadramento certo ao traço do arquiteto, complementado com as duas vidraças dos jardins da Gulbenkian, mas já lá iremos.
A arquitetura de Siza existe na sua simplicidade formal, comprometida com o contexto onde se implanta o edifício. Lembramos a Piscina das Marés (1961-66) ou a Casa de Chá da Boa Nova (1958-63) em Leça da Palmeira, a célebre reabilitação do Chiado após o incêndio de 1988 e os novos Terraços de Bragança (2004), pensamos no Museu de Serralves (1991-1999) e na relação com o jardim ou na cobertura do Museu Internacional de Escultura Contemporânea em Santo Tirso (2016), entre outras tantas. Todos estes projetos cabem no léxico de 30 verbos escolhidos por Carlos Quintáns e Zaida García-Requejo para contar a vasta obra de Álvaro Siza. A tarefa é hercúlea, procurar relações e correlações no corpo de trabalho longo, vasto e plural do arquiteto. São 90 os edifícios - à data da inauguração Siza tinha 90 anos -, entre projetos construídos, ideias em papel, ou construções gastas pelo tempo, forma-se a proposta de um atlas. Um atlas que não se carrega (e a obra de Siza está por todo o mundo), mas que se folheia entre a Galeria Principal do Edifício Sede e a Galeria de Exposições Temporárias do Museu. Ali, Siza é sujeito entre verbos, mas a ação principal é o desenho - desenhar. É sabido que Siza é um desenhador compulsivo, pensa com as mãos; desenha com muita destreza e como gesto para uma reflexão, e por isso esse é o cenário transversal às duas salas do museu: o esquisso da ideia, o desenho de projeto e a intimidade desenhada.
Comecemos pela primeira sala. Recebe-nos uma exuberante parede de madeira exótica. Os veios da madeira casam, uma imagem que nos habituámos a ver em vários projetos do arquiteto (quando ornamenta com pedra ou madeira). A parede é horizontal, e não toca o teto, serve de suporte a um mural com várias fotografias a preto e branco da autoria de Juan Rodriguez. Esta opção estética reforça a coesão entre as imagens, não distrai o olhar ou sublinha uma obra face a outra, ao mesmo tempo que abre a ideia de arquivo. Entramos depois, lentamente, na exposição a partir dos cadernos do arquiteto. Diários gráficos com capa preta, anotados, esquissados e até rabiscados. Reproduções dos originais, ali expostos, prontos a abrir e para folhear; cópias dos originais, dos que que estão nas vitrinas fechadas. Contornadas as paredes dá-se o espanto. A sala abre-se ao exterior, e para o olho, o ponto de fuga dessa perspetiva está lá fora, no jardim. No interior, não há vazios nas paredes opacas, lembrando uma disposição própria dos salões de arte parisienses, há sim uma série de desenhos de arquitetura: plantas de processo, plantas anotadas, plantas de licenciamentos e outras plantas. Ao centro do espaço, três linhas de mesas corridas falam sobre o trabalho de Álvaro Siza. Falam, porque efetivamente são diálogos de conceitos, não é uma organização cronológica, ou tipológica, mas sim um glossário de verbos, jogando com as palavras que ilustram e agrupam as formas das arquiteturas de Siza. Em voo picado sobrevoamos cada definição de uma metodologia, de uma curadoria.
“afastar, afiliar, aquecer, articular, baixar, cobrir, conectar, conservar, curvar, dobrar, elevar, entrar, esvaziar, fragmentar, girar, iluminar, imitar, nadar, olhar, orar, percorrer, preguear, rematar, sentar, sobressair, subir, suster, traçar, viver, voar”.
Cruzada a sala onde se trata a macro escala da arquitetura, exploramos depois a ergonomia dos objetos. Siza desenhou muito do mobiliário para os edifícios que projetou. Cadeiras, cadeirões, bancos, mesas de apoio, mesas de centro, entre outros objetos de menor dimensão. Na mesma sala, o mobiliário convive com a bibliografia (pessoal) recolhida por Carlos Quintáns. Foram muitas as exposições sobre o trabalho do arquiteto, mais as investigações e publicações sobre o primeiro pritzker português e oxalá pudéssemos ficar sentados manuseando cada um daqueles livros com vista para os jardins. Há depois um intermezzo, descendo as escadas até à galeria de exposições temporárias, para aquele que é um “universo mais pessoal e mais íntimo de Siza”. Autorretratos, desenhos à vista, esquissos de viagem, e mais rabiscos entre tantos outros traços em suportes inusitados. Para Siza qualquer suporte é nobre para um registo, seja o talão de supermercado, o bilhete de comboio, a toalha de mesa, o guardanapo ou o maço de cigarros. Enlaçam-se estes desenhos com a arte de Amadeo de Souza Cardoso, Pablo Picasso e Henri Matisse, artistas que Siza muito aprecia.
Vista da exposição SIZA. © Pedro Pina, Fundação Calouste Gulbenkian
O que Carlos Quintáns e Zaida García-Requejo propõem sobre a obra de Siza é um belo exercício de conceitos, conceitos que se repetem e ecoam pelos edifícios do arquitecto português. Poderia ser esta a poesia visual, ou uma outra, mas o que fica implícito é que Siza tem a constante necessidade de desenhar, desenhar e desenhar; para conhecer, compreender, para corrigir e para humanizar. Sobre humanizar, porque, socorrendo-me das palavras do arquitecto “não há nada mais próxima da Arquitectura do que a Escultura”, a arquitectura sem vida é somente escultura; e as Arquitecturas de Siza têm pessoas dentro, veja-se o programa paralelo, sobretudo a série “Vizinhos” da jornalista Cândida Pinto.
“SIZA” está patente na Fundação Calouste Gulbenkian até dia 16 de Maio.
Frederico Vicente
Arquitecto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (no Convento da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" de Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" de Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador com a arquitecta Ana Paisano da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. A atividade profissional orbita sobretudo em torno das ramificações da arquitetura.
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