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A ARQUITETURA PORTUGUESA: O TRAJETO DO SÉCULO XX E DESAFIOS DO SÉCULO XXI
GONÇALO FURTADO E ALEXANDRA PAULO
O presente texto foca-se na arquitetura portuguesa e revê algumas transformações na sociedade do século XX e XXI.
Com esta proposta interessa recuar à implantação da República. Socioeconomicamente, a maioria da população vivia em pobreza, trabalhava na agricultura, sem assistência médica, sem água, sem saneamento e sem acesso à educação. Sendo que, a entrada de Portugal na 1ª Guerra Mundial, em 1914, conteve relevante impacto no país, ocorreu um declínio da economia, e, posteriormente, uma pandemia em 1918 (pneumónica) que agravou a instabilidade.
O desagrado da população sustentou uma mudança que veio a perdurar. Em 1926, instalou-se uma ditadura militar que, com nova constituição Estado Novo de 1933, teve como chefe de governo Salazar. Com tal constituição, a operação do regime caracterizou-se por severidade, repressão e censura. O pensamento conservador, na década de 30 e seguintes, fortaleceu-se nacionalmente, sendo que internacionalmente a queda da bolsa (1929) impulsionou o agravamento da situação económica que favoreceu a expansão de regimes totalitários [1]. Até aos anos 50, a maioria da população trabalhou na agricultura manual e alguns nos serviços. Sendo certo que ocorreu um crescimento económico no país ao longo deste período, certo é também que não teve quase impacto na forma de viver.
Em termos de arquitetura, no início do século XX, parte da habitação em Lisboa e Porto carecia de condições de higiene, (grande problema na altura), sem luz e ar natural. Nos anos 10 e 20 verificaram-se duas estratégias, segundo Lacerda Lopes: “A perspetiva nacionalista de uma arquitetura e o desejo de um alinhamento internacional.” [2] Sendo que tiveram a tal presente, o autor refere: “As duas décadas deste regime agitado e controverso, edificado com a instauração da República, não foram capazes de evidenciar uma estratégia de intervenção arquitetónica para resolução de problemas urbanos e das difíceis condições da vida da população portuguesa.”[3]
Diga-se que na passagem do século XIX para o século XX, nas cidades como o Porto, produziu-se muitas obras de Arte Nova e Art Déco. [4] Segundo o arquiteto Nuno Portas: “As avenidas e ruas generosas começavam a construir-se já na virada do século, ordenando os prédios de rendimento e as vivendas de prestígio – revivalistas, ecléticas, arte nova e arte déco – que ao longo do primeiro quarto do século as foram preenchendo.” [5] Salientando que cidades Lisboa e Porto densificaram, posteriormente, e já nos anos 50.
Sobre a década de 1920, João Vieira Caldas refere: “Assiste-se em Portugal à emergência de três fatores que irão determinar e confrontar a mudança: o uso do betão-armado, nos primeiros tempos requerido pelas obras de exceção e depois generalizado até aos programas habitacionais correntes; a formatura de uma geração de arquitetos que troca o ecletismo da sua aprendizagempor uma conceção claramente modernista da arquitetura; a substituição de um regime republicano vigente por uma ditadura (…).” [6]
De facto, a arquitetura moderna esteve presente nos anos 20 e 30 pela mão de geração de arquitetos como Carlos Ramos (1897-1969), Pardal Monteiro (1897-1990), Rogério de Azevedo (1898- 1983), entre outros, mas deve referir-se que a arquitetura não foi firme mantendo-se uma conjugação entre elementos (modernos e funcionais, com outros). Persistia a monumentalidade pública e manteve-se presente a decoração e, de certa forma, o moderno só timidamente tende a aparecer numa geração de arquitetos mais recente formada na época. Como já aludido, a introdução de materiais construtivos veio marcar essas décadas (betão e/ou estruturas em ferro), beneficiando-se do potencial, marcando a estrutura e afastava a decoração, numa simplificação volumétrica.
Com o Estado Novo (1933), a crescente linguagem moderna viria a ser entendida como contraditória à realidade nacionalista da época. Logo, surgindo arquitetos que passam a seguir a arquitetura do regime. De acordo com Vieira Caldas: "(…) modelos do estereótipo pretensamente nacionista, que na verdade não difere muito dos modelos italianos e espanhóis correspondentes, baseado na estilização de termos construtivos e decorativos historicistas.”[7] Teotónio Pereira refere também: “Para os grandes edifícios públicos, como universidades, cineteatros e tribunais (apelidados correntemente de palácios da justiça), o carácter dominante era de uma monumentalidade retórica de raiz clássica, muito próxima dos modelos alemães ou italianos da época. Tratava-se de exprimir o poder do Estado e de incutir nos cidadãos os valores de autoridade e da ordem.” [8]
Se universalmente não existia preocupação do regime pela forma arquitetónica produzida (durante os primeiros anos da ditadura de 1926 e de 1933), possibilitando-a ser moderna, esta realidade alterou-se. As obras modernas passam a ser consideradas anti regime e até mesmo condenáveis. Segundo Teotónio Pereira, no seu texto Arquitetura do Regime 1938-1948: “O que aconteceu foi que esta arquitetura vanguarda foi sufocada à nascença por razões políticas e ideológicas, não se tendo permitido que dessa experiência se tirassem benefícios." [9]
Assim, muitos projetos modernos tiveram de seguir uma linguagem de acordo com o Estado Novo. Por exemplo, a Praça do Areeiro (1938-1943) de Cristino da Silva, autor que, em 1948, produz a Cidade Universitária de Coimbra, entre outras. Rapidamente são replicados modelos de habitação coletiva e unifamiliar com desejo conservador de “valores tradicionais portugueses”. Segue-se toda uma unificação da Casa Portuguesa, postulada por Raul Lino (1879-1974), que enfatizou os aspetos apropriados pelo regime, numa oposição aos arquitetos modernos. Visando uma arquitetura “verdadeiramente portuguesa” e com preocupações pretensiosamente tradicionalistas, tendo publicado A nossa Casa em 1918, em 1924, A Casa Portuguesa e, em 1933, Casas Portuguesas.
Diga-se que ao contrário de Lisboa, o Porto conseguiu dar continuidade do moderno pelas gerações posteriores.[10] Sendo as razões para tal, de acordo com o arquiteto Teotónio Pereira: “Por um lado, o afastamento de capital e portanto da vigilância estatal; por outro, os arquitetos portuenses, ao contrário dos lisboetas, dependiam sobretudo de encomenda privada, o que lhes assegurava maior independência face às imposições oficiais; finalmente, porque a cidade do Porto tem uma tradição fortemente enraizada de autonomia face ao poder sediado em Lisboa.” [11]
Carlos Ramos estava na frente da formação académica e, em 1947, Távora que já escrevera O Problema da Casa Portuguesa, manifesta inquietações contra uma só arquitetura portuguesa. Nesse texto, uma primeira parte: Arquitetura e Arqueologia evidencia uma falsa interpretação da arquitetura portuguesa. Em Para uma Arquitetura Portuguesa de hoje afirma que a habitação deve corresponder às necessidades e ser produto das vivências da época e do lugar, desenvolvendo três parâmetros para a prática da arquitetura: Do meio Português, o Homem e a Natureza como elementos principais, analisando a história portuguesa e devendo trazer potencialidades para o seu presente, Da Arquitetura e das possibilidades da construção moderna no Mundo, enfatiza tal de se operar, adaptando e integrando ao contexto nacional.
Também é importante reconhecer outras formas de luta contra o regime, como as revistas de arquitetura, onde ganharam terreno “no campo crítico e observativo da produção arquitetónica em Portugal pela mão de diversos arquitetos, nomeadamente Nuno Portas.” [12] Acresce o papel de organizações, com o ICAT desenvolveu-se em 1946, liderado pelo arquiteto Keil do Amaral e o ODAM, em 1947, orientado por Losa. [13] O predito Keil do Amaral tentou revogar as diretrizes do regime manifestando que esta arquitetura era «(…) cenografia pretensiosa, feita de arcarias despropositadas, complicadas chaminés, retorcidos e abundantes ferros-forjados…, portas super- barrocas, falsos andares nobres.» [14] Mais criticava «colegas que se dedicaram a procurar das revistas alemãs ou de outras nacionalidades modelos para as obras de saber português que tanto encantavam os mentores da campanha pró-arquitetura nacional.» [15]
Em 1948, com o I Congresso Nacional de Arquitetura, veio reforçou-se o desagrado na arquitetura imposta pelo regime, apoiando a Carta de Atenas e o movimento moderno, tal graças a jovens que se impunham. Muitas encomendas foram entregues a estes novos arquitetos, representando novas oportunidades arquitetónicas, em programas como Câmaras Municipais, Caixas de providência, Igrejas, etc. Assim, nos anos 40 e 50 vai desaparecendo o “portuguesismo”, sendo que o Inquérito à Arquitetura Popular Portuguesa (1961) veio demonstrar a multiplicidade da arquitetura vernacular. Tal foi ao encontro da valorização do contexto, do lugar, das suas materialidades locais edos métodos artesanais. [16] Ocorrendo assim, uma continuidade do moderno por arquitetos como Keil do Amaral (1910-1975), Losa (1908-1988), Godinho (1910-1990), Viana de Lima (1913-1991) e da geração dos anos 20 com Távora (1923-2005) e Teotónio Pereira (1922-2016) e, dos anos 30, com Portas (1934-) e Álvaro Siza Vieira (1933-). [17]
Indubitavelmente, na década de 1950, intensificaram-se debates proveitosos, assumindo um papel numa produção arquitetónica atenta à tradição e modernidade, que se consolida nacionalmente. Em 1952, Teotónio Pereira orientou o MRAR, entre 1953 a 1958, e encarregou-se ainda do programa de habitação social. Por outro lado, em Lisboa, no mesmo ano, reuniram-se 600 participantes de 35 países diferentes no III Congrés del’Union Internationale des Architects (UIA), que se constituiu numa maior exposição do país ao exterior. No final da mesma década, os arquitetos portugueses estavam em sintonia com “movimentos de contestação internacional ao modelo moderno, preconizado nos CIAM.” [18] E, internacionalmente, Viana de Lima e Távora destacavam-se no importante papel de levar aos CIAM (1953) a arquitetura moderna portuguesa.
Em relação à realidade das cidades de Lisboa e do Porto, a habitação urbana caracterizava-se superlotada e, nesta altura, inicia-se o processo de migração do interior para o litoral. Acresce que em 1950 deu-se uma crescente construção de barracas clandestinas. Em Lisboa, Faria da Costa planeia o Bairro de Alvalade, aprovado em 1945, e que, como Nuno Portas consistiu no primeiro destinado a habitação social. Posteriormente e ainda de acordo com o modelo Corbusiano e internacional, seguiam-se o Bairro das Estacas de Formosinho Sanchez e Ruy d’Athouguia, sendo que, no Porto, o arquiteto Fernando Távora projeta o Conjunto Residencial de Ramalde.[19]
No que toca à 2ª metade do século XX, interessa referir que todo o processo de industrialização contribuiu para o despovoamento do interior com o consequente aumento da população urbana em cidades do litoral. A guerra colonial dos anos 60 e a emigração associam-se à modernização, ainda na origem das enumeras mudanças sociais [20], poucos prosseguiam estudos no secundário e universitário e a taxa de analfabetismo, nos anos 60, era elevada 39% [21] feminino e 26,6% [22] masculino. A insuficiência de infraestruturas e transportes públicos faziam as localidades estarem muito distantes, existindo uma marcação de separação entre o norte e sul, litoral e do interior. Nas cidades Lisboa e Porto, entre outras, verifica-se, a partir dos 70, a individualização. De facto, a revolução de 1974 trouxe mudanças no comportamento da vida coletiva e privada, trabalho, educação. O serviço médico à periferia estendeu-se a todo o país [23] (mais tarde SNS) e construíram-se novas escolas, correios e serviços em todo o país.Na indústria, havia ainda uma mão-de-obra pouco qualificada, mas na economia regista-se o desenvolvimento do turismo com o interesse do norte da Europa por Portugal (principalmente pelo Algarve). Paralelamente, a especulação imobiliária favorece a perda de identidade de muitos locais turísticos e construção em massa.
Nos anos 80 com as Câmaras Municipais, é revalorizado o poder local. Desenvolve-se, também, a relação com a Europa e com a entrada de Portugal, em 1986, na CEE. A agricultura perde relevo e Portugal tornar-se-ia atrativo para o imigrante do Brasil e da Europa de Leste. Nos anos 90 vive-se uma fase de prosperidade. Continua-se a abandonar os campos e trabalha-se, principalmente, na indústria e nos serviços. (Em 1990, o setor terciário já representava 47,6% [24] e no fim da década atingiu 52,7% [25], mais de metade da população). Promove-se também a natalidade, atendendo que, desde a década de 1980, Portugal não assegura a renovação das gerações, assistindo-se ao envelhecimento da população. Os jovens têm nova posição na família, procurando a sua própria identidade, levando à reconstrução da sociedade. Verifica-se a melhoria global na vida, na saúde, na educação, no trabalho e no ambiente familiar, sustentado por políticas de apoio, mudança social e cultural.
Em termos de arquitetura, interessa salientar data de 1961 a publicação o Inquérito à Arquitetura Popular. Tal acompanhando uma tendência internacional que é levada aos CIAM “contra ortodoxia do movimento moderno e a favor da sua revisão.” [26] Na década de 1960, dá-se ainda uma preocupação pelo habitante que é um aspeto relevante.
Em relação às intervenções no âmbito da arquitetura, habitação e expansão das cidades, de acordo com Sérgio Fernandez: “A expansão planificada das cidades ficará a dever-se a grandes intervenções, onde, com fins diversos são estabelecidos padrões de economia razoavelmente limitados: no Porto, os bairros camarários, como o da Pasteleira, com seiscentos fogos, para alojamento das camadas de menores recursos que vivem em deploráveis condições, em locais centrais entretanto sobrevalorizadas; em Lisboa, os Olivais Norte e Sul, de muito maior escala, e, em 1962, Chelas.’’ [27] A própria cidade tornar-se-ia preocupação, destacando-se Nuno Portas, no que toca à reflexão das questões sociais e políticas e no tornar relevantes os processos de urbanização, da obra e do projeto. A luta da arquitetura de então foca-se na melhoria das cidades e habitação. Tornara-se evidente o problema da especulação imobiliária, a rápida crescente de produções de fraco contexto, procurando lucro instantâneo, devido à forte procura de alojamento das migrações do interior para o litoral, bem como ao turismo, a partir de investimentos privados e associados a uma falta de planeamento.
No entanto, considera-se que desde a década de 1950 até 1974, não deixam de haver momentos de produção arquitetónica de qualidade. De facto, o 25 de abril de 1974 firmou a possibilidade de novos caminhos e citando Fernandez: “Nele residia a esperança de uma participação popular em moldes radicalmente distintos. Nesse novo contexto, as intervenções arquitetónicas levariam a cabo no âmbito do SAAL poderiam vir a ser um embrião de uma ação disciplinar estruturalmente mais avançada.’’28 [28] Os bairros de lata haviam-se tornando um grande problema e mais de três milhões de portugueses [29] viviam ainda mal alojados. Mas década ficou marcada pelo programa SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), visando a construção de habitação para as populações desfavorecidas, pós Revolução. Como resposta às graves carências na habitação, o SAAL consistiu num grupo organizado pelo FFH (Fundo de Fomento da Habitação), criado em 1968. Portas produziu um despacho para organização de associações, existindo subsídio de fundo perdido, incluindo a própria mão-de-obra dos moradores, a autoconstrução. Segundo Bandeirinha: «A arquitetura portuguesa, a cultura arquitetónica portuguesa do 25 de Abril é o SAAL. Portanto, o SAAL representa tudo aquilo que é não só de representação arquitetónica, mas de reflexão sobre essa produção arquitetónica se processou em Portugal, nessa margem de tempo que se deu ao 25 de Abril.» [30]
No SAAL Algarve, por exemplo a autoconstrução funcionou bem. Já o Porto consistiu num caso particular, resultando num produto arquitetónico distinto. De acordo com Alves Costa, os projetos SAAL Porto eram feitos “não para expansão, mas para consolidação e ordenamento da cidade.” [31] Verificando-se, entre 1974 e 1976, diversos experimentos que Alves Costa enumera: “(…) sejam bandas de cércea relativamente baixa e acessos diretos às habitações, como no Restelo (em Lisboa), de Teotónio Pereira, ou na Bouça (no Porto), de Álvaro Siza, ou na opinião maioritária pelos blocos articulados por acessos verticais coletivos muitas vezes dando pelas galerias de distribuição.” [32] Já em Lisboa, as intervenções foram maioritariamente na periferia, ao contrário, no Porto, em que coexistiram estratégias com origem no centro da cidade. (As ilhas eram no interior dos quarteirões, mais próximas do trabalho.)
Obra de referência é o Bairro da Bouça, no Porto (1973-1978) da autoria de Álvaro Siza, que continha quatro blocos habitacionais com duplex. Sobre o Bairro, Montaner considera: “A linguagem arquitetónica era extremamente atrativa, totalmente distinta em cada uma das fachadas e inspirava-se tanto na arquitetura portuguesa como no racionalismo holandês (…) e no expressionismo e racionalismo alemão (Bruno Taut e Ernst May).” [33] O referido arquiteto, Álvaro Siza, teve o papel fundamental para a continuação da modernidade e tradição (exemplo é a Quinta da Malagueira de 1977, em Évora).
Por essa altura, as cidades Lisboa e Porto continuaram a crescer em redor, acentuando-se o despovoamento. Em 1978, iniciam-se os Planos Diretores Municipais [34] para ordenamento espacial, sendo que somente nos anos 90 fez-se consolidar como regulares do crescimento clandestino. De facto, o início do ordenamento limitava-se, muitas vezes, a legalizar habitações. No final do século XX, de acordo com Vieira de Almeida a arquitetura portuguesa viria a definir-se pela coexistência entre duas realidades no território português: “a das obras de autor e a das construções correntes.” [35] Como o arquiteto refere no texto De 1976 ao Final do século: Convergências, divergências e cruzamento de nível: “O universo da construção corrente começou a ser também esfera de ação dos arquitetos, por força de uma conjuntura múltipla e facetada: o aumento do número de arquitetos presentes no mercado de trabalho, a ascensão do poder autárquico como promotor de obras, o início de expansões urbanas em povoações de pequena e média dimensão, o desvanecer das clivagens entre mundo rural e o mundo urbano, (…) pela melhoria de condições económicas da população, permitindo em simultâneo a realização do sonho da casa própria e o desenvolvimento pelo país da atividade de compra e venda imobiliária (…).” [36]
Nos anos 80, começara também a existir uma preocupação pela preservação e revalorização da cultura e história presente em edifícios com valor cultural. Sendo que, assinala-se neste domínio, o significado que o Chiado apresentava, e que Álvaro Siza atuou com clareza, na recuperação do edificado, malha urbana e espaço público. Como referiu numa entrevista ao jornal Público: “A procura foi que os elementos novos que não pusessem em questão o espírito da arquitetura pombalina. Tudo o que seja tentar uma cópia, absolutamente fiel está condenado ao fracasso, portanto não é isso. E, por outro lado, também há aspetos muito inovadores em relação ao Chiado, que acabam por ter influência em tudo, desenho até ao puxador da porta que são diferenças como, para dar exemplo, novas ligações entre ruas (…).” [37]
Sem dúvida nenhuma que na passagem da Revolução de 1974 para a década de 1980, tomam lugar grandes mudanças sociais, políticas e económicas em diversas áreas, desde o turismo, ao abandono extremo dos campos e surgimento de núcleos urbanos em redor de outros já existentes, tornando Portugal, um país de realidades diversas. Em relação ao ensino, em Lisboa tendeu uma aproximação a vertentes internacionais, e, no Porto, manteve-se uma continuidade de Escola com Siza Vieira, a posicionar-se a nível internacional. De resto, toda a arquitetura portuguesa, no final do século XX, cativa a crescente interesse internacional, rendidos a obras de arquitetos como Byrne, Souto Moura, Carrilho da Graça, entre outros.
A década de 1980 contou ainda com jovens arquitetos e a individualidade [38] de produções arquitetónicas relevantes. De facto, coexistiram diversas vertentes na arquitetura portuguesa, desde continuidade, monumentalidade, cenográfica, de exploração e enfatização da estrutura, da tecnologia e da composição pragmática e funcional, entre outras. Deram-se início da produção de diversas obras como instituições, desde científicas, de ensino superior, museus, em todo o país, com carácter público, possibilitando exceções na malha urbana. Simultaneamente à carência de equipamentos públicos, constatava-se ainda a escassez de infraestruturas satisfatórias. Com o descontrolo do crescimento das cidades, anárquica e fragmentada, Portugal fez a arquitetura e o urbanismo, grandes contributos ao ordenamento do território, bem como a qualificação do espaço urbano para garantir qualidade de vida e possibilidade de estabilização e fixação populacional. Por outro lado, constatou-se uma preocupação com os centros históricos devolutos e assistiu-se à falta de espaço público com qualidade e um afastamento entre o trabalho e a habitação.
No que toca aos anos 90, esses caracterizaram-se pela prosperidade económica, política e social, consolidando a modernização e internacionalização de um país vindo de uma Revolução, em 1974. A arquitetura valoriza-se a nível nacional e internacional, teve então grande impacto nos media. Constatou-se uma grande aposta em infraestruturas, em equipamentos, em grandes obras públicas no âmbito da saúde, do ensino, da cultura, entre outros, focando-se, principalmente, em questões urbanísticas – equipamentos e espaços públicos. Ocorreram experiências com abertura para o internacional, de pensamento livre e artístico de novas gerações de arquitetos, e uma maior aproximação ao mundo, e no âmbito público, desde o desenho de espaço público à produção de equipamentos.
Como caraterizar a realidade atual? Atualmente, a maioria da população nasceu após os anos 60 [39] e a maioria populacional trabalha em serviços e comércio. Em 2000, o terciário era 52,7% [40] e em 2019, a população empregada no setor terciário era de 69,8% [41]. Em 2000, a taxa de desemprego era de 3,9% [42] e, entre 2010 e 2012, atingiu a sua maior percentagem que rondou entre 10,8% [43] e os 15,5% [44] , devido à primeira crise económica do século iniciada em 2008, tendo uma descida significante, muito graças à atração turística pelo país para 6,5% [45]. A primeira crise económica fez entre 2009 e 2014 saírem do país permanentemente cerca de 160.000 [46] jovens entre os 15 anos e 39 anos de idade. As condições de higiene e de educação aumentaram, a taxa de analfabetismo diminuiu drasticamente (9% [47], em 2001 e de 5,2% [48] em 2011).
Um dos aspetos que se alterou significativamente e de realçar é a relação entre o núcleo familiar e o alojamento, principalmente na atualidade, é cada vez mais dissociado. As transformações do século XX fizeram com que fossem alterados os percursos de cada indivíduo numa família, a partilha de casa por partilha da habitação com amigos e, por vezes, passando à partilha habitacional de jovens casais. Nem todos os indivíduos permanecem no mesmo local, a mudança de cidade para estudar ou para ir trabalhar.
Por outro lado, após uma primeira crise económica que abalou muitas famílias, fala-se agora da maior crise, ocorrendo esta nos tempos da covid-19. De facto, a pandemia veio causar um impacto muito forte à sociedade. Com o primeiro confinamento geral, 60 mil novas pessoas [49] necessitaram de recorrer a ajuda alimentar. No seguimento do que antes aludimos, a pandemia tem vindo a agravar principalmente a situação dos jovens. Sem a segurança de um emprego, a habitação fica menos assegurada. Notícias demonstram as dificuldades, provocando o despejo, a procura de outra habitação ou até o retorno à casa dos pais. É inevitável o impacto na habitação, sendo que este se tornou o lugar produtivo e reprodutivo e retorna-se à habitação, enfatizando as necessidades da sua flexibilidade, adaptabilidade, sentindo-se pela falta de condições ao teletrabalho, ao cuido de crianças, exercício físico, etc. Por outro lado, verificou-se um acrescento de pedidos de apoio ao arrendamento durante os confinamentos. A realidade não era fácil para toda a população, e com a pandemia as populações mais fragilizadas. O artigo Os Novos Pobres: Gente Jovem e que tinha Emprego [50] do jornal Sol de 24 de Janeiro de 2021 destaca que a pandemia não escolheu idade nem género, aumentando cada vez mais os pedidos de auxílio. Além disso, não podemos deixar de enfatizar a realidade preocupante dos seniores, verificando-se o agravamento das condições da população mais envelhecida portuguesa. Fragilidade, perante o combate ao vírus. De acordo com o artigo O que é preciso para acabar com os “depósitos de velhos”? [51] do Jornal Público de 8 de Novembro de 2020, morreram 1047 idosos em lares com covid-19, destacando as necessidades do país à falta de alternativas como habitação assistida, habitação adaptada e cohousing sénior. Em suma, face às crises económicas e situação pandémica atual, acreditando que a arquitetura é um contributo para a sociedade, focando nas primeiras décadas do século, esta deve fazer uma reflexão crítica sobre as questões atuais e traduzir as necessidades existentes da população para projeto e de um futuro melhor. Se a crise económica e a pandemia destacou problemas habitacionais já existentes, o aumento da população a viver o quotidiano a partir da habitação, fez sobressair questões da prática de projeto arquitetónico.
Remetendo para explicações, factos e autores do presente artigo, o século XXI inicia com uma diversidade de perspetivas de arquitetura. Do século XX, enfatiza-se a reabilitação, sendo esta um aspeto protagonista na arquitetura portuguesa. Destaca-se, também, o que fazer na arquitetura sénior, sendo que Portugal é atualmente posicionado em 3º lugar da Europa e no 5º lugar do ranking de país mais envelhecido do mundo. [52] O que a arquitetura poderá e deverá servir como melhoria da sua qualidade de vida. Entre outras questões, as enunciadas favorecem-se exemplos de alterações por atender, num novo debate disciplinar sobre o presente. Desde a formação académica, deve introduzir, repensando as novas necessidades de seniores e jovens adultos, e que acresça às questões mencionadas a reabilitação, globalização e o impacto da turistificação. Verifica-se a importância da relação destas questões do século XXI, com especial atenção por parte de todos os arquitetos que queiram ver a sua disciplina adequada aos desafios da contemporaneidade.
Alexandra Ressurreição Paulo
Mestre em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Recentemente, recebeu um Prémio Distinção do IJUP - Encontro de Investigação Jovem, na área de arquitetura, com a apresentação (poster) da Dissertação final de Mestrado: Tipologias de Habitação Contemporânea: Experiências em Portugal no século XXI.
Gonçalo M Furtado C Lopes
Licenciado pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, Mestre pela Universidade Politécnica da Catalunha, e doutorado pela University College of London, bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia. É professor de Teoria da FAUP, tendo no passado lecionado na Faculdade de Engenharia e sido professor visitante na Escola de Barcelona. Autor de vários livros, integra ainda o corpo editorial de algumas revistas e publica regularmente sobre temas pós-modernos e contemporâneos. Em 2008 foi premiado pela WOSC (UK) com “Kybernetes
Research Award: Highly commended paper" e em 2010 pelo IIAS (Canada) com o “Outstanding Scholarly Contribution Award 2010”.
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Notas
[1] SARAIVA, José Hermano - História essencial de Portugal [em linha]. RTP Arquivos: RTP Memória, 2011. [consult. 12-8-2020].
[2] LOPES, Carlos Nuno Lacerda, Projectos e Modos de Habitar. Porto: Universidade do Porto, 2011, Tese de Doutoramento. p.147, parag.1, l.5-6
[3] Ibid. p.154, parag.6
[4] PORTAS, Nuno - “A Arquitetura da Habitação no século XX Português” in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried - Portugal: Arquitectura do século XX, 1ª ed., Munchen: Prestel, 1997. p.117, l.21-29.
[5] Ibid.
[6] CALDAS, João Vieira, ‘’Cinco Entremeios sobre o Ambíguo Modernismo’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.23, parag.3.
[7] Ibidem.p.30, parag.5
[8] PEREIRA, Nuno teotónio, ‘’A Arquitetura do Regime, 1938-1948’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.36, parag.7, l.1-9
[9] Ibidem. p.33, parag.5
[10] Ibidem. p.36, parag.3
[11] Ibidem. p.36, parag.4
[12] RAMOS, Rui, A Casa unifamiliar Burguesa na Arquitectura Portuguesa: Mudança e Continuidade no espaço doméstico na Primeira metade do século XX, Porto: Universidade do Porto, 2004, Tese de Doutoramento. p.670, parag. 2
[13] Ibidem. p. 344
[14] PEREIRA, Nuno Teotónio, ‘’A Arquitetura do Regime, 1938-1948’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.37, parag.3
[15] Ibidem. p.37, parag.3
[16] TOSTÕES, Ana, ‘’Modernização e Regionalismo, 1948-1961’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.41, parag.1
[17] Ibidem. p.41, parag.2
[18] RAMOS, Rui, 2004, Tese de Doutoramento. p.670,l.12-14
[19] PORTAS, Nuno, “A Arquitetura da Habitação no século XX Português” in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.119, ponto 6, l.29-33
[20] WALL, Karin, ‘‘Elementos sobre a sociologia da família’’ in Análise Social, vol.XXVIII (123-124), 1993. p.1001,l.6-12
[21] Pordata. Tabela percentual sobre a Taxa de Analfabetismo: total e por sexo.
[22] Pordata. Tabela percentual sobre a Taxa de Analfabetismo: total e por sexo.
[23] BARRETO, António, Portugal, um retrato social. RTP: Rui branquinho, 2007.
[24] Pordata. Tabela Percentual sobre População empregada:total e por grandes setores de atividade.
[25] Pordata. Tabela Percentual sobre População empregada:total e por grandes setores de atividade.
[26] RAMOS, Rui, 2004, Tese de Doutoramento. p.322, l.13-14
[27] FERNANDEZ, Sérgio, ‘’Arquitetura Portuguesa, 1961-1974’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried, 1997. p.57, parag.1
[28] FERNANDEZ, Sérgio, ‘’Arquitetura Portuguesa, 1961-1974’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.62, parag.6
[29] As Operações SAAL. Realização de João Dias. Portugal: Optec, 2007 (120 min): Cor, P&B
[30] As Operações SAAL. Realização de João Dias. Portugal: Optec, 2007 (120 min): Cor, P&B
[31] COSTA, Alexandre Alves, ‘’O SAAL e os anos da Revolução, 1974-1975’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.66, parag.1, l.15-17
[32] Ibidem. p.65, l.12-19
[33] MONTANER, Josep Maria, La vivenda de la vivenda colectiva: Políticas y proyectos en la ciudad contemporânea, Editorial Reverté, Barcelona, 2015. ISBN 978- 84-291-2126-1 p.100, l. 8-12
[34] BARRETO, António, Portugal, um retrato social. RTP: Rui branquinho, 2007.
[35] ALMEIDA, Rogério Vieira de, “De 1976 ao Final do século: Convergências, Divergências e Cruzamento de Nível’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.73, l.1-4
[36] Ibidem. p.73, l.12-30
[37] Entrevista a Álvaro Siza Vieira ao Jornal Público. 25/08/2013
[38] ALMEIDA, Rogério Vieira de, “De 1976 ao Final do século: Convergências, Divergências e Cruzamento de Nível’’ in BECKER, Annette; TOSTÕES, Ana; WANG, Wilfried,1997. p.75, parag.2, l.8 -11
[39] Na tabela percentual sobre a população residente, média anual: total e por grupo etário, os nascidos após 1970 são 57% da população residente, em 2019. (Atualizado em 2020-06-15)
[40] Tabela percentual sobre população empregada: total e por grandes setores de atividade económica. (Atualizado em 2020-02-07)
[41] Tabela percentual sobre população empregada: total e por grandes setores de atividade económica. (Atualizado em 2020-02-07)
[42] Tabela percentual sobre população empregada: total e por grandes setores de atividade económica. (Atualizado em 2020-02-07)
[43] Informação INE/Pordata. Nós, Portugueses: Nascer para não morrer. Realização de Pedro Clérigo. RTP/Fundação Francisco Manuel dos Santos. Portugal, 2020.
[44] Ibidem.
[45] Ibidem.
[46] Ibidem.
[47] Família nos Censos 2011: Diversidade e mudança. p.1, l.4-7.
[48] Ibidem. p.1, l.4-7.
[49] Informação da Rede de Emergência Alimentar. Nós, Portugueses: Nascer para não morrer. Realização de Pedro Clérigo. RTP/Fundação Francisco Manuel dos Santos. Portugal, 2020.
[50] FAUSTINO, Joana – Os novos pobres: gente jovem e que tinha emprego [em linha]. Jornal SOL, 24 de Janeiro de 2021. [consult. 21-3-2021].
[51] FARIA, Natália – Morreram 1047 idosos em lares com covid-19. O que é preciso para acabar com os depósitos de velhos? [em linha]. Jornal PÚBLICO, 8 de novembro de 2020. [consult. 20-3-2021].
[52] Informação INE. Nós, Portugueses: Nascer para não morrer. Realização de Pedro Clérigo. RTP/Fundação Francisco Manuel dos Santos. Portugal, 2020.
[49] Informação da Rede de Emergência Alimentar. Nós, Portugueses: Nascer para não morrer. Realização de Pedro Clérigo. RTP/Fundação Francisco Manuel dos Santos. Portugal, 2020.
[50] FAUSTINO, Joana – Os novos pobres: gente jovem e que tinha emprego [em linha]. Jornal SOL, 24 de Janeiro de 2021. [consult. 21-3-2021].
[51] FARIA, Natália – Morreram 1047 idosos em lares com covid-19. O que é preciso para acabar com os depósitos de velhos? [em linha]. Jornal PÚBLICO, 8 de novembro de 2020. [consult. 20-3-2021].
[52] Informação INE. Nós, Portugueses: Nascer para não morrer. Realização de Pedro Clérigo. RTP/Fundação Francisco Manuel dos Santos. Portugal, 2020.