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R2/FABRICO SUSPENSO: ITINERÁRIOS DE TRABALHO
PAULA PINTO E JOAQUIM MORENO
A exposição “R2/Fabrico Suspenso: Itinerários de Trabalho”, patente até 19 de Abril no Centro de Arte Oliva, é a primeira exposição nacional dedicada à produção independente dos R2 (Lizá Defossez Ramalho e Artur Rebelo) e apresenta vinte anos de obra gráfica de um dos mais internacionais e reconhecidos colectivos do design português.
Com curadoria de Paula Pinto e Joaquim Moreno, a exposição apresenta o trabalho gráfico e seus processos de experimentação, reveladores de uma obra que cruza outros campos artísticos, como a escultura, a instalação e a arquitectura. A exposição está estruturada em cinco "laboratórios": Arquivo, Paisagem, Transmissão, Matéria e Produção.
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R2/ FABRICO SUSPENSO: ITINERÁRIOS DE TRABALHO
Múltiplos itinerários materiais e culturais convergem no trabalho gráfico dos R2: Lizá Defossez Ramalho e Artur Rebelo. Esta exposição suspende o fabrico para apresentar as interferências do arquivo, da paisagem, da transmissão, da matéria e da produção na invenção do seu projecto de comunicação visual.
Suspende o fabrico para mostrar o contributo dos R2 na consolidação de um campo alargado de produção independente, construindo cumplicidades, ligações e diferenças com instituições culturais nacionais e internacionais.
Suspende o fabrico para investigar as suas memórias e afectos, as relações híbridas que estabelecem entre o plano das imagens e as dobras do mundo, a apropriação do ruído da comunicação, a manipulação das formas de que são feitas as letras, ou a maneira como escrevem na matéria dos edifícios.
Suspende o fabrico para reflectir sobre os gestos, os rituais e as histórias da comunicação visual obliterados pelo resultado final. Suspende a erosão das formas da escrita que a leitura produz para fabricar novas etimologias do dizer e outras maneiras de escrever com as formas.
Suspende o fabrico para instalar uma pausa criativa, um breve silêncio para improvisar uma fala sem garganta, uma voz para ouvir com o olhar, e inventar novas sequências e outros futuros.
Suspende o fabrico para experimentar, de maneira laboratorial, com os processos de construção e transformação do design, com o campo de referências, com o espaço físico e conceptual das acções e com os processos construtivos dos exercícios de comunicação. Suspende para revelar as gramáticas das formas e a transformação das ferramentas e dos objectos de trabalho.
Suspende o fabrico para encenar os múltiplos itinerários e as hiperligações entre as ideias, as imagens, os horizontes e os modos de olhar.
LABORATÓRIO 1. ARQUIVO
A anatomia ficcional da escrita feita com uma boneca de trapos, feita de jogo e memória, é uma forma lúdica e laboratorial de experimentar, de transformar um conjunto heteróclito de coisas herdadas, ou encontradas, acumuladas num arquivo, numa fonte de novas narrativas, novos processos de trabalho e novas experiências. E que experimentação, que elaboração, acontece neste lugar de trabalho? Desarrumar o arquivo, trocar a classificação pela ordenação arbitrária, organizar cuidadosamente os objectos por cores, tamanhos ou feitios. Como todos os outros, também este arquivo é parcial, e os seus objectos são correntes, e como em todos os outros, também aqui o fabrico das coisas está suspenso, à espera de uma nova vizinhança que invente outro horizonte.
A paisagem que limita este laboratório é um papel de parede sem padrão e sem simetria, com a memória de uma maneira industrial de replicar imagens mas produzido com meios pós-industriais. Ou uma memória das silhuetas das ferramentas desenhadas nas paredes das oficinas, que permitiam arrumar cada coisa no seu lugar — objectos afectivos arrumados como ferramentas à espera de novos propósitos, em trânsito, umas vezes de frente, outras de costas voltadas para o espectador.
Alguns livros deste laboratório são transcrições fotomecânicas de lugares, volumes que compilam todos os objectos pertencentes a um certo espaço que coubessem no vidro da fotocopiadora. O labor aleatório destes livros transporta as coisas do seu lugar, através do contacto com o vidro e a luz que fixa a tinta seca no papel, para dentro das páginas, transformando os livros em indícios, em evidência de um contacto íntimo com as coisas e da transformação de um produto industrial em objecto artesanal.
Bonecas de trapos feitas código alfabético, livros índice de tiragem única, papel de parede tornado catálogo de ferramentas, vitrines para misturar objectos e reconfigurar conjuntos, acumulação de acasos, afectos e interpretações abusivas, ou um arquivo continuamente desarrumado da forma mais científica possível.
LABORATÓRIO 2. PAISAGEM
A poesia visual manifesta-se com a escrita e com o branco em volta das palavras, com os espaços, as distâncias e as sequências, bem como com as palavras. É um texto-imagem sem o ritmo da respiração, sem a necessidade da construção métrica e da cadência sonora. Um laboratório que ambiciona experimentar à escala do território redirecciona estes sentidos, enunciados e vectores: põe em imagem o dizer do teatro, constrói as palavras no espaço, anima os textos e escreve na paisagem. Enuncia a instabilidade do suporte, entre o bidimensional e o tridimensional, entre a página e o objecto, e reflete sobre a espacialidade da escrita. Aprendendo de slogans na paisagem como o letreiro de Hollywood – que passou de signo a símbolo, de publicidade imobiliária a ícone da fábrica dos sonhos – estes híbridos experimentam a escala da inscrição no território e a distância e o tempo lento de percorrer a paisagem como modo de leitura.
O encontro fortuito com uma ruína industrial que sugere a existência uma letra permite a ficção das letras na paisagem, entre a arqueologia e a botânica, entre a ruína fantasiosa e a tipografia. A imagem de uma velha máquina que parece uma letra pode parecer outra letra, ou as outras letras todas. Estas letras na paisagem escrevem através dos livros, como um flipbook que soletra, como se a escrita na paisagem se animasse com o gesto do polegar que deixa escorrer as páginas. Ou tentam a poesia ainda antes das palavras, as letras em liberdade na paisagem, numa animação que usa a letra acidental para declinar a sucessão do mesmo som em muitas famílias tipográficas.
Outras letras escondem-se na paisagem, encaixadas nos alvéolos dos muros de suporte, contorcidas em muitos planos, e apenas legíveis na planificação da distância, no traveling lento do flutuar no rio. Quando finalmente deciframos as palavras construídas na paisagem, elas saltam de língua e de sujeito, o tu de um idioma igual ao eu de outro, algures entre dimensões, línguas e sujeitos.
Outras letras, em paisagens mais íntimas, são anamórficas, guardando o mistério do seu dizer para um lugar muito preciso, longe do qual parecem abstractas ou distorcidas. Não são letras na paisagem, nem escrita na infraestrutura, e escrevem Futuro de uma maneira que só o mecanismo visual da paisagem permite ler. Talvez letras em paisagem.
Levar uma linha a dar um passeio é uma definição famosa de desenho, mas desenhar na paisagem em que se passeia é sempre mais complicado. Escrever na paisagem é literalmente um trabalho de campo: paciente observação e anotação das experiências e das surpresas, vontade irresistível de escapar das dimensões da página, ou de aproximar o mais possível texto e paisagem.
LABORATÓRIO 3. TRANSMISSÃO
No imaginário televisivo do século passado, a mira técnica era a imagem precisa da ausência de transmissão, símbolo de um silêncio agora impossível com a emissão contínua e o consumo digital a qualquer momento. Hoje, a digitalização e a multiplicação dos ecrãs separam a resolução da imagem da qualidade das imagens, e em muitos casos perder definição significa ganhar qualidade, e velocidade, e disponibilidade. A evidência do ruído da transmissão, do grão que é o resultado das viagens imateriais das imagens entre canais e formatos, tornou-se parte das imagens e das suas qualidades. Na sua defesa da imagem pobre, Hito Steyerl define-a como uma cópia em movimento que à medida que acelera se deteriora, como uma imagem que “foi carregada e descarregada, partilhada, reformatada e remontada. … [que] transforma qualidade em acessibilidade, valor de exposição em valor de culto, filmes em curtas, contemplação em distracção.”
Bruno Munari fazia uma coisa parecida, mais analógica, com o seu manual de manipulação da Xerografia, onde também o empobrecimento da qualidade da imagem era sinal do seu movimento, e onde a utilização transgressiva dos meios permitia inventar imagens muito para além do propósito comercial da tecnologia: permitia ampliar até o ruído mudar de sentido, ou distorcer os corpos contra o vidro; produzindo imagens irrepetíveis a partir de uma tecnologia de cópia. A falta de fidelidade ao original tornava evidente o trabalho da tecnologia; a menor resolução correspondia uma maior disponibilidade para mergulhar no fluxo das imagens.
O nosso presente de simultaneidade tecnológica e inércia de normas e protocolos é rico de outras narrativas de tecnologias obsoletas, maus usos e baixa resolução. É ainda possível presenciar ao vivo o erro de transmissão produzido por um vinco no papel que entrou na máquina de fax, a velha tecnologia que permitia escrever e editar em vaivém, anotando a página recebida e enviando novamente, num bailado electrónico em que as páginas entravam pelo telefone com fios.
Habitar este espaço da transmissão é de facto uma experiência de limbo, de barca das almas electrónica, de coisas assombrados pelos fantasmas da anima, da força que os animava porque se transmitia através deles. Onde estão as coisas, onde acontecem? Ou: o que sobra depois da partida da energia que os animava? E estas perguntas são igualmente estranhas na imagem de uma tabela de autópsias como numa paisagem de monitores empilhados a fazer de cenário para brincadeiras ácidas. Imagens erradas, acidentais, ou transgressivas, mas nada fortuitas ou aleatórias. Imagens engendradas pela beleza trágica de tentar conduzir os veículos do presente, de os fazer capotar de inventar acidentes novos como maneira de conhecer um pouco melhor o confuso contorno da estrada.
LABORATÓRIO 4. MATÉRIA
A virtualidade do mundo contemporâneo parece aumentar a intimidade entre o pensamento e a matéria. Mas a virtualização das interacções desta nova intimidade interroga a materialidade de um e de outro. Esta é a pergunta deste laboratório: de que são feitas as coisas do design gráfico? Ou de que somos feitos na interação com as coisas? Que matrizes nos organizam, de que materiais precisam, em que matéria se inscrevem? E de que serve fazer perguntas aparentemente sem resposta: serve de horizonte, de linha imaginária que se afasta continuamente, mas que permite um sentido temporário de orientação. Serve também para agrupar dentro das formas coisas que parecem estar aquém e além delas: que estão no formato, na matéria da impressão, no registo, na margem, na trama ou na matriz.
Fazer letras com ligaduras, além da assonância com as ligaturas, que são uma maneira de materializar os ditongos, é uma maneira de experimentar novas relações entre forma e matéria. A ligadura é um material maleável, resistente à tracção, mas sem resistência à compressão, e a sua forma depende de outra forma ou outro material. Deslocando a sua lógica matricial para dentro de um software vectorial, as ligaduras tornam-se memória transparente de letras imateriais. Como na figura do homem invisível, as ligaduras tornam visível uma matéria ausente.
A vontade de intimidade entre a matéria e o pensamento invade também as imagens que parecem existir apenas nas margens de corte, nas molduras, nos enquadramentos e nos formatos, nos confins entre as imagens e os objectos e a matéria que os separa das outras coisas.
Suspender o fabrico para dar atenção à literalidade da matéria, às propriedades formais das matrizes, ou aos formatos que se decidem antes das formas.
LABORATÓRIO 5. PRODUÇÃO
O que normalmente se espera da produção da comunicação visual é que corra como planeado, depois de um processo de projecto fechado e definido. Fazer a produção participar do processo criativo exige outros vectores, outro planeamento, outra maneira de fabricar. Inscrever uma frase na pedra líquida dos edifícios modernos requer a produção de um molde do vazio, fabricado com o saber da moldagem da escultura combinado com a cofragem de betão e planeado conjuntamente com as armaduras de ferro e com as cablagens elétricas. Escrever no betão é conformar simultaneamente as cargas estruturais, as cargas elétricas e as cargas poéticas, sem esquecer as águas e os esgotos.
Escrever sobre a intimidade do leito é inventar outro plano de escrita, ou outra intimidade com o texto. É também uma forma de impressão, de formar o texto em negativo para que se imprima em positivo noutro suporte. Mas não é a tinta o líquido que captura a memória da escrita, é a matéria da estrutura. Documentar a produção destes textos íntimos é uma oportunidade de mudar o olhar, de ver do ponto de vista da pedra que solidifica na forma da poesia, de testemunhar o voo de pássaro da mangueira de betonagem.
Mudada da intimidade do tecto de um quarto para o contacto com a chuva e o vento, a pedra sintética envelhece mais depressa que a outra, e os fungos e as manchas escrevem com ênfase o tempo na sua superfície. A Vida do Homem em betão ganha uma patine acelerada, e aqui o vector reorganizado é o da vida material do texto escrito na pedra.
Escrever com a mesma matéria com que se levantam paredes também é uma forma de reordenar criativamente os processos de produção. O tamanho adaptado à palma da mão do tijolo maciço dá jeito para assentar os tijolos em forma de letra, e em imagem/texto do cartaz Reunião de Obra. Numa reorganização quase simétrica da produção, inventar azulejos tipográficos é transportar os princípios de modularidade e padronização da industrialização da tipografia para a decoração da construção. E fazer mosaicos de plástico reciclado é literalmente um manifesto contra a utilização de materiais insustentáveis no ciclo de produção.
Suspender o fabrico para evidenciar as muitas apropriações do processo produtivo para o interior do processo criativo, para fazer a produção parte integral do pensamento da comunicação visual.
Paula Parente Pinto
Licenciada em Artes Plásticas: Escultura, Faculdade de Belas Artes do Porto (1998); Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana, Universidade Politécnica da Catalunha, Barcelona, Espanha (2004); Doutoramento em Estudos Visuais e Culturais, Universidade de Rochester, NY, USA (2016). Tem trabalhado em Investigação histórica e como curadora independente em inúmeras exposições.
Joaquim Moreno
Licenciado em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (1998); Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana, Escola Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, Universidade Politécnica da Catalunha (2001); Doutoramento em Arquitectura, Escola de Arquitectura, Universidade de Princeton (2011). Curador independente desde 2002, incluindo a representação portuguesa à Bienal de Arquitectura de Veneza em 2008, com o filosofo José Gil.
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R2/ FABRICO SUSPENSO: ITINERÁRIOS DE TRABALHO
Curadoria Paula Pinto e Joaquim Moreno
Centro de Arte Oliva (S. João da Madeira)
9 de novembro 2019 - 19 abril 2020