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TESOURO, MISTÉRIO OU MITO? A ESCOLA DO PORTO EM TRÊS EXPOSIÇÕES (PARTE II/II)
BRUNO BALDAIA
Por uma sincronização inesperada de tempos, a “Escola do Porto: Lado B, 1968-1978 (Uma História Oral)” [1] coincidiu temporalmente com “Alcino Soutinho - Realismo Confortável” [2] e “O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976”. [3] Não creio que tenha havido uma intenção de as fazer coincidir, mas o resultado é estimulante: três reflexões distintas sobre a Escola do Porto, através de autores e momentos históricos que para ela remetem (de forma simultânea ainda por cima), far-nos-ia pensar que esse é um tema que está em aberto, em discussão, em cima da mesa. É que esta é uma discussão que motiva uma parte significativa do que é pensar a arquitectura em Portugal e aquele que é, neste momento preciso, o seu património mais valioso. Pelo espaço que reuniu entre nós e que teve consequências importantes no ensino da arquitectura em Portugal, e por esta coisa indefinida e mal tratada que é o facto de ser um activo importante para a arquitectura portuguesa quando ela se projecta para fora, por repugnante que, nos dias em que vivemos, a palavra ‘activo’ possa parecer.
Em primeiro lugar, há que analisar a oportunidade do uso de “Lado B”. É desde logo um equívoco: não há um lado B na Escola do Porto. Um lado A é até difícil de perceber. É Távora, Siza, Souto Moura? É Soutinho? É Carlos Ramos? Algum deles especificamente? É o resto da Escola? É que se até não é difícil perceber uma continuidade empática de Távora para Siza, onde é que ela está de qualquer um deles para Souto Moura? E a Escola, onde é que ela está? Perguntou-se antes: o que fazer com Siza e Souto Moura? [4] Se a Escola for um espaço polifacético, onde estão os seus dois lados primordiais?
A exposição de Guimarães mostra uma Escola complexa e efervescente nas suas várias possibilidades. Tudo menos uma ideia de um colectivo unido no espaço ideológico pré e pós 25 de Abril (não era possível por voltas ou simplificações que se queiram propor), e muito menos pelo lado das opções formais e conceptuais sobre a arquitectura a fazer. O que é mais interessante para um debate que se possa produzir comparando Guimarães e Serralves é aquele que parte não sobre o que está mas sobre o que se propõe sobre a arquitectura a fazer e sobre os objectos de estudo a considerar. Onde o que do “SAAL” de Serralves quer ser sobre posicionar-se sobre as formas como a arquitectura se pode projectar desde a memória para o momento político que vivemos, e o “Lado B” quer ser sobre as arquitecturas que se fizeram no Porto por estudantes da então ESBAP e que se reclamam como possibilidades para uma visão mais complexa da Escola onde estavam, onde ela se possa projectar como um objecto polifacético num dos momentos simbólicos da sua unidade histórica. O que em Serralves se pretende como uma súmula, ou um manifesto, em Guimarães propõe-se como uma hipótese.
O “Lado B” tem quatro momentos parlantes e dois mudos. O primeiro momento parlante corresponde aos levantamentos dos “conjuntos habitacionais” da cidade tradicional do Porto feitos sob orientação de Octávio Lixa Filgueiras. É ambígua a percepção sobre este exercício. Os desenhos produzidos são magníficos mas revelam uma memória dolorosa de quem os fez. São o testemunho mais ortodoxo que, desde um ponto de vista estritamente marxista, o aluno burguês (a clientela inevitável de um curso de arquitectura nos anos 1960) que estuda para uma profissão burguesa e que aspira à sua participação na luta de classes, tem de passar como exame de sacrifício e, por isso, de comprometimento. São o melhor que, no contexto deste Porto, e deste momento político, um aspirante a arquitecto deve fazer como ritual sacrificial. Todos os testemunhos revelam odiar o processo, por muito que seja o respeito pelas peças produzidas. O primeiro momento mudo é a exposição a uma abertura ao que de fora vinha proposto como uma vanguarda, o impacto da chegada de Jacinto Rodrigues à então ESBAP. As experiências com uma ideia ecológica da arquitectura, o contacto com a “Drop City” e uma sua exposição no Porto numa digressão sobre as arquitecturas radicais nos Estados Unidos, [5] a introdução da auto-construção e do suporte conceptual e académico que Jacinto Rodrigues traz sobre outras abordagens que eram na altura por cá pouco conhecidas, forçam a um choque brutal entre um meio provinciano e uma Escola que propunha a ilustração sofisticada de muitos dos seus membros mas nenhuma mundanidade, porque essa depende da existência de algum sistema e de uma capacidade crítica estabilizada.
O impacto de Jacinto Rodrigues foi bem sentido mas o encaixe na Escola foi mitigado pela dificuldade em lidar com uma diferença radical através de um período longo de tempo. A Escola é uma amálgama pesada, a incorporação é um processo lento. O impacto redunda num momento mudo. Percebemo-lo mas hoje não fala. Esta exposição, evidentemente, devolve um púlpito. O que se quiser com ele fazer é uma questão de reconhecimento, do tempo e das oportunidades, sobretudo do que se possa vir a revelar em obras ou em objectos de pensamento claros e discerníveis que tenham uma sobrevivência para lá do seu contexto específico, do seu momento, do seu nicho.
O segundo momento parlante é a “Organização Insurreccional do Espaço” (1975), um “Touche pas à la Femme Blanche” [6] na Baixa do Porto e é uma proposta extraordinariamente sugestiva, uma topografia ‘natural’ quase pós-catástrofe nos espaços e pelos edifícios do centro da cidade burguesa. O que no filme era uma realidade, o estaleiro que resultou da demolição da zona dos Les Halles parisienses, no Porto era uma ficção que se juntava à proposta política do filme, e à discussão alargada que já cá chegava e que incluía toda a produção intensa do Maio de 68. É um documento de síntese de ‘o que ver no mundo’ que cola o estar na Escola, o estar fora dela e o estar no mundo que está a acontecer. É um documento que assume de forma radical a liberdade de pensar e a liberdade de agir em arquitectura. As propostas para São Vítor (1976) são igualmente problematizadoras, mesmo que não tão espectaculares. São propostas na cidade apesar da cidade e são o terceiro momento parlante. Estas propostas remetem para uma síntese curiosa. Por um lado, um ‘palimpsesto’ de traçados urbanos recuperando a sua ruralidade, as hortas e os passeios urbanos antes da cidade burguesa das vias de deslocação mecânica terem tomado conta do desenho urbano. Por outro, o conteúdo contra-cultural dos ‘domes’ e da autoconstrução como proposta ideológica de cidade, onde se cruzam todos os radicalismos ideológicos que, desde os movimentos alternativos americanos, à ocupação do centro das cidades por comunidades hippies, à utopia albanesa, à maoísta e por aí fora, se reúnem não num manifesto textual mas num desenho de projecto de arquitectura. Concreto, específico, preciso. Alguns dos seus autores estarão presentes no Seminário Internacional de Arquitectura de Santiago de Compostela dirigido por Aldo Rossi em 1976 e podemos imaginar o impacto que uma tal amálgama de coisas distintas tem num tão pequeno grupo de pessoas de um tão periférico lugar.
A ideia de fazer a arquitectura ‘falar’ através do carácter, já não só das suas formas mas pelo seu conteúdo conceptual, pelo seu significado, era uma ideia que se veiculava na recuperação que a Tendenza italiana fazia através de Aldo Rossi e de Manfredo Tafuri das obras de Boullée e de Ledoux. É aí que encontramos o segundo momento mudo.
Os desenhos de Eduardo Souto Moura estão na exposição tão mudos como os ‘domes’ geodésicos fullerianos e os fornos solares induzidos por Jacinto Rodrigues. Os ‘domes’ e os fornos têm um impacto imediato e um esquecimento rápido na prática dos futuros arquitectos que os construíram nos jardins das Belas-Artes do Porto. As formas clássicas invertidas dos desenhos de Souto Moura não tiveram nenhum impacto no seu momento e fazem-nos andar ainda hoje à volta daquele mistério de um brigadista do SAAL no projecto de São Vítor passar as horas vagas a compilar, inverter, e combinar formas clássicas como se, no intervalo da participação social activa, se se pudesse pôr em pleno iluminismo a discutir qual o futuro da tradição clássica, como poder ter o que já não existe. Esta mudez é um problema porque se é possível enquadrá-la pelo lado da morfologia, num debate entre as formas da arquitectura e as formas da participação social tal como Rossi, por exemplo, as vinha colocando, como distingui-la conceptualmente, de qualquer dos outros apropriacionismos que por então se faziam? Se se tratava de salvar a arquitectura, como se fazia? Apropriando-se do que era contemporâneo de uma forma mais ou menos conscientemente pop (participando do mundo real), ou fazia-se indo mais além na reapropriação das imagens, à procura do que a história tinha para dar quando as circunstâncias eram semelhantes, participando do mundo disciplinar, formal, da arquitectura? Ser apropriacionista, pop, conceptual ou o que se queira? Ou um apropriacionista duro, da disciplina e da história, um historicista ou um pós-moderno? As formas e os pressupostos são manifestamente diferentes: participar de uma tradição de formas ou de um estar sobre o presente. Mas a atitude era igual, conter e escolher alguma coisa do tudo que passava à volta e, sobretudo, ambas se distanciavam da realidade do brigadista SAAL, a do realismo do presente e da história real para o presente futuro, esse que está a ser demarcado no debate ideológico.
Os dois momentos mudos são-no porque o impacto de Jacinto Rodrigues na Escola fala muito de um momento e deixa-nos pouco para dele falar agora. É datado. Está num sítio que se reencontrará quando as circunstâncias e os contextos voltarem a ser semelhantes àqueles. Os desenhos de Souto Moura são efectivamente mudos no seu tempo e aparecem apenas depois dos seus primeiros projectos como testemunho de uma singularidade. Mas têm um eco que sobreviveu a uma sua qualquer contextualização e que é ainda hoje difícil de lidar. E o que dizer do quarto momento parlante, o Centro Comunitário do Trabalhador de Edgar Castro (1978)? É um projecto que parece ser uma síntese de tudo e está ao mesmo tempo afastado de tudo. Parece ser uma quadratura do círculo e é-o formalmente. É um projecto extraordinário. Souto Moura virá a aproximar-se dele mais tarde quando se apercebe do poder de tudo conter numa forma que tem todas as possibilidades porque ela é, em si mesma, essencial. Ver este projecto de Edgar Castro é um privilégio e deixa a curiosidade de antever o que dele poderá ser possível construir a partir deste momento em que foi exposto.
A conclusão de tudo isto é mais interessante do que cada um dos três momentos que se apresentam nestas três exposições e muito mais do que a soma deles. Eduardo Fernandes, no debate que encerrou o “Lado B” em Guimarães, referia o processo conceptual dos arquitectos da Escola do Porto como um processo sistemático de decisões. Ao escolher-se um caminho, abandona-se o outro sempre que se está numa encruzilhada e aí faz sentido um lado A e um lado B. Mas há uma memória e há uma história e esta mapeia e cartografa um território onde estão inscritos caminhos numa topografia complexa e é essa inscrição que cabe agora analisar e entender. Nesse interessante debate de encerramento, Jorge Figueira referia a existência de um elefante na sala de exposição que era a presença/ausência de Jacinto Rodrigues como um pólo que pudesse aglutinar esse lado B. Mas são muitos os pólos que puderam ao longo do tempo aglutinar narrativas sobre a Escola: Viana de Lima, José Carlos Loureiro, Octávio Lixa Filgueiras, Agostinho Ricca, Jacinto Rodrigues, Nuno Portas. Há muitos pólos e propostas diferentes, mesmo as que não vêm de arquitectos como António Quadros e Alberto Carneiro, artistas e docentes que construíram faces distintas deste objecto polifacético que é a Escola, sempre que a ela queiramos voltar e reanalisar sem a simplificação das narrativas fáceis. Mas é essa a tarefa da Escola hoje: olhar para o mapa onde estão inscritos os caminhos que foram traçados e onde vemos hoje com alguma distância a sua nitidez, pela maior ou menor frequência com que foram percorridos, os que se tornaram mais ou menos profundos pela quantidade de pés que por eles caminhou. Mas é importante perceber que caminhos abertos, por pouco pisados que tenham sido, poderão ser sempre percorridos de novo. Estão lá, disponíveis.
O elefante na sala do “Lado B” de Guimarães não é Jacinto Rodrigues. São os desenhos de Eduardo Souto Moura, são eles que perturbam uma narrativa estável da Escola. O “Lado B” seria um acontecimento simpático, mas irrelevante se Souto Moura não lá estivesse. O elefante nas salas de Serralves é Siza e o Bairro da Bouça. O SAAL seria mais puro e mais heróico sem essa discussão sobre uma obra de arquitectura e um projecto para além do contexto ideológico da sua possibilidade inicial. Siza é um elefante nas salas da Fundação EDP porque Alcino Soutinho escolheu um seu espaço e uma sua figuração do mundo sem se dedicar a um exercício de proximidade com o seu colega e amigo, o que é muito mais do que fazem hoje boa parte dos professores da Escola na proximidade dos caminhos que Souto Moura escolheu. Se a Escola quer ser uma coisa tem de aprender a sê-la e para o fazer tem de lidar com os elefantes que vivem nela. Cada vez que dizemos: ‘a Escola é Fernando Távora’, ou ‘a Escola é Alcino Soutinho’, estamos perto da realidade mas reduzimos as possibilidades do que ela pode ainda vir a ser. Se quisermos fazer da singularidade do SAAL uma aglutinação, uma frente, uma unidade, estaremos a definir-lhe um espaço a construir a partir de um momento singular e extraordinário em todos os sentidos e que não tem continuidade em nenhum dos seus protagonistas. Uma liturgia, se assim o quisermos definir. Se quisermos ainda encontrar na Escola um objecto polifacético, temos de lidar com a escala de cada uma das suas faces sem ceder ao desejo de as deformar pela popularidade ou pelo interesse que os seus elefantes fazem despertar por algumas delas. Há que perceber que um sólido é movido pela proporção gerada pela sua geometria interior e que uma geometria é uma lógica.
Voltando ao título do texto (alterando a ordem dos termos aí escritos), a Escola é um tesouro, uma coisa que se guarda e protege. O que é o contrário de conhecer ou de partilhar. É um mito, uma coisa em que vamos acreditando e a que continuamos a aderir, mesmo que não a conheçamos com precisão. É um mistério, uma coisa que parte de um facto conhecido com que se conviveu, e convive, e que se começou a desenhar com narrativas estranhas a nós, a partir dos relatos desencontrados do seu início, onde fomos encontrando as narrativas que sobre ela se começaram a gerar desde quem a via de fora, de Vittorio Gregotti ou de Kenneth Frampton, e que traziam palavras e conceitos que passaram a ser a nossa identidade lá fora, sempre que era necessário comunicar o que se achava que a Escola era cá dentro. Estas três exposições são importantes. É importante conhecer de forma abrangente a obra de Alcino Soutinho como é importante conhecer a de outros arquitectos que formam uma totalidade complexa e interessante que é de facto a Escola. As exposições de Serralves e do CIAJG vêm acompanhadas de catálogos que, para além do evento ele próprio, projectam espaços de reflexão fundamentais para esta espécie de cartografia de identidade a partir de dentro com as palavras e os conceitos que formos capazes de gerar.
A Escola do Porto é o momento mais importante da História da Arquitectura em Portugal, mas agora há que fazer mais do que fez D. Manuel I na embaixada ao Papa Leão X quando o elefante albino Hanno foi oferecido como amostra da riqueza e mundanidade do Reino, morrendo dois anos depois e sepultado no Cortile del Belvedere em Roma. Há uma mundividência que teima sempre em ficar de fora. Para estas figuras, estes elefantes, há que ter uma escala e um habitat, uma compreensão e um testemunho, uma incorporação. Um saber conviver a partir das narrativas e das Histórias que devemos conseguir produzir sobre o que somos, não apesar de, mas com Siza e Souto Moura. Ter uma rede, uma estrutura. Senão serão como Hanno, o elefante albino e “coisas assim, já sabemos, não acabam cá, escapam-se-nos.”
[Esta é a segunda parte de um artigo que reflecte criticamente sobre três exposições. A primeira parte foi publicada na edição de Fevereiro de 2015 da Artecapital]
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Bruno Baldaia
(Coimbra, 1971) Arquitecto (1997, FAUP), doutorando no Grupo Habitar do Departamento de Proyectos Arquitectónicos da ETSAB-UPC onde desenvolve a dissertação de tese doutoral com o tema “El sucio y el limpio, estética y arquitectura en la Europa Occidental de la Post-Guerra”. Assistente Convidado no curso de Arquitectura da ARCA-EUAC. Crítico de arquitectura com textos publicados em Portugal, França e México.
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NOTAS
[1] A exposição “Escola do Porto: Lado B, 1968-1978 (Uma História Oral)”, comissariada por Pedro Bandeira, esteve patente no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, Guimarães, de 25 de Outubro de 2014 a 11 de Janeiro de 2015.
[2] A exposição “Alcino Soutinho – Realismo Confortável”, comissariada por Roberto Cremascoli, esteve patente na Fundação EDP, Porto, de 31 de Outubro a 28 de Dezembro de 2014.
[3] A exposição “O Processo SAAL: Arquitectura e Participação 1974-1976”, comissariada por Delfim Sardo e organizada pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS) em colaboração com o Canadian Centre for Architecture de Montréal, Canadá, esteve patente no MACS, Porto, de 31 de Outubro de 2014 a 1 de Fevereiro de 2015.
[4] Ver “Tesouro, mistério ou mito? A Escola do Porto em três exposições (Parte I/II)”: http://www.artecapital.net/arq_des-116
[5] A exposição “Architecures Marginales aux États-Unis”, produzida pelo Centre de Création Industrielle e pelo Centre National d’Art Georges Pompidou, esteve exposta na Escola de Belas-Artes do Porto em 1976.
[6] “Touche pas à la femme blanche” é um filme de Marco Ferreri de 1974 que representa uma reconstituição da batalha de Little Big Horn nas ruínas das Halles de Paris. O filme faz um paralelo entre o genocídio dos índios americanos e a expulsão das classes populares dos centros para as periferias das cidades como consequência das demolições de grandes zonas urbanas para a edificação de novas operações imobiliárias. Les Halles foram durante bastante tempo um símbolo dessas operações.
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[o autor escreve de acordo com a antiga ortografia]