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A VIAGEM ARQUITETÓNICA COMO ENCONTRO: DA (RE)DESCOBERTA À (DES)COBERTA DAS ORIGENS
MICHEL ZECA GONZALEZ
Aquirir conhecimento arquitetónico em território europeu, e em especial formação em Portugal, dotou-me de respeito pela História da Arquitetura, no sentido específico das seguintes palavras do critico Jonathan Glancey:
“[…] es la historia de un gran esfuerzo, una de las formas mediante las cuales hemos intentado ordenar y dar sentido a nuestro mundo, un lugar tan fascinante como desordenado, y a la vez proporcionarnos cobijo. Todos vivimos y trabajamos en edificios y, desde los mas humildes a los más sublimes, todos tienen algo, aunque tan solo sea un pequeño detalle.” [1]
Em 2019 decidi regressar a Cuba, meu país natal, para dar início à minha dissertação de mestrado intitulada: “Arquitetura Moderna em Cuba (1947-1965): Ricardo Porro e as Escolas de Belas Artes Cubanas”. Nesta viagem de caracter puramente académico, na qual também (re)descobri parte das minhas origens, encontrei-me com aquilo que em mim, ter-se-ia perdido, pelo facto de ter sido formado num contexto diferente do meu, onde as matérias a tratar são outras. Nesta história, que é também a minha, sigamos, portanto, o ‘pequeno detalhe’.
Por um lado, como estudante europeu confrontava-me com uma abordagem de investigação positivista, na qual o sujeito do conhecimento está apartado do objeto de investigação. Por outro lado, paradoxalmente, tal apartamento informava-me de uma proximidade com outras linguagens; outras matérias não apreensíveis racionalmente, ou seja, já intuía esse Outro-eu, de caráter mais popular, menos informado pela História Dominante da Arquitetura. Afinal de contas ser cubano é ser africano, é ser latino, é ser europeu, e para mim foi importante (re)descobrir que no meu país todos “lo mismo tienen de Congo que de Carabalí”. [2] O que me fez consciencializar que sendo filho de mãe cubana e pai angolano, o meu ADN — o meu corpo, o mesmo que viajou — já me informava desse original (re)encontro com a origem. Então esse (re)descobrir passa a um mais simples (des)cobrir.
Tratando-se de uma investigação em Arquitetura, o detonador foi, portanto, um objeto arquitetónico; uma vez mais, algo aparentemente fora de me mim, contudo, que de mim tudo sabia. A investigação-viagem aproximou-me cada vez mais de mim; ou seja, das minhas origens, Cuba e Angola, a Africa que conheço. Todos os meus interesses e as mais infantis curiosidades nada mais eram que caminhos que se abriam. E, uma obra em especial do arquiteto Ricardo Porro, o primeiro e derradeiro encontro.
Durante toda a minha infância, passada em Cuba, tive o privilégio de ter por perto a cultura africana e as crenças que derivam da mesma, mas pouco me foi explicado, pouco me foi dito, tudo me foi transmitido como algo que sempre existiu e fazia parte de nós, a família. Encontrei na arquitetura cubana e na sua história uma ferramenta para dar início às minhas (re)descobertas. A abordagem sobre as características arquitetónicas que criam o espaço-lugar que aqui apresento é a extensão do pensamento do seu autor, enquanto a minha experiência no lugar.
A Escola de Artes Plásticas de La Habana (1965) foi desenhada pelo arquiteto Ricardo Porro (1925-2014), como lugar de ensino para três disciplinas artísticas: Pintura, Escultura e Gravura. Esta obra teve como premissa enaltecer o valor da cultura afro-cubana, pondo em debate assuntos que escapavam aos interesses da burguesia de então, que não tinham voz na arquitetura cubana, até ao seu surgimento. No seu discorrer sobre a obra, o arquiteto privilegia o pensamento e os costumes do ser negro, e procura dar à arquitetura cubana, algo que representasse todos os cubanos: Uma obra inclusiva.
Adotei a seguinte postura da investigação: Viajei para Havana dispondo apenas de informação sobre os aspetos mais elementares da obra, ainda que já tivesse reunido uma grande parte da bibliografia sobre este estudo de caso. Estava determinado a experienciar o espaço de maneira ingénua; tirar a capa do arquiteto que tudo sabe antes da experiência sensível, e que por isso pouco se surpreende. Deste modo, permiti-me ser informado pelo que já trazia comigo, o meu próprio corpo, por aquilo que não foi por mim pensado. Tratou-se de me deixar levar pela arquitetura, permiti-me experienciar esta obra em tensão co-criativa.
A minha experiência do espaço e registo fotográfico não seguiram a linearidade da investigação teórica realizada até então. No lugar, tudo me aparecia como um excesso; algo benignamente transbordante, que não se permitia conter pela teoria, como se esta obra para ser compreendida demandasse outra postura. Percebi que a arquitetura falava para além dos seus aspetos físicos e soluções técnicas, senti que a obra carregava uma portentosa poética, que nenhum minimalismo formal poderia superar – quando apenas entendido como uma exterioridade sem correspondência com uma interioridade. Esta era uma obra que não falava de ausência e sim da presença exuberante da multiculturalidade. África fez-se ali presente e o meu corpo testemunhava.
Ao estabelecer as bases para dar início à investigação do estudo de caso, inicia-se um diálogo interior entre a minha experiência espacial e a descoberta teórica, onde as minhas questões começam a ter resposta, descobri que como mencionei anteriormente, neste lugar trabalham-se os valores da herança afro-cubana: Da Terra, o tijolo material-terra, transforma-se em pele negra, assumindo-se a sua cor natural, sem artifícios. Do mesmo modo, Ricardo Porro reverte o artificial preexistente campo de golf burguês, transformando a topografia suave do terreno no andar sensual da mulher cubana, exaltando-a.
Diferentemente do que sucede na Arquitetura Moderna – capítulo incontornável das História Dominante da Arquitetura – não existe um embasamento, antes, uma continuidade entre os dois corpos; ou seja, nada interfere entre a Terra e corpo arquitetónico.
Porquê todo este Erotismo? Ao contrário do que acontecia na arquitetura, a música e a poesia popular cubana dos anos 40 e 50, não careciam de autores afro-cubanos, estes tanto nas suas músicas como na sua poesia utilizavam o erotismo constantemente. Na rumba a dança entre o homem e a mulher encena a sedução e a conquista entre ambos; é uma dança totalmente lasciva. Ricardo Porro como arquiteto entendeu que na sua obra também poderia tratar estes assuntos, tornados matérias-primas da sua arquitetura.
“The implication of Eros in primitive religions is much greater than the male-female relationship. It is also the way of planting the earth, which is transcribed as a coitus between man and the earth: a whole profund meaning emerged from the crucible of this notion of Eros. This is the sense I wanted to give to the School of Plastic Arts.” [3]
Trabalhar como matéria a terra e a própria paisagem em si, completa o ciclo de uma arquitetura que surge do seu próprio solo, o solo cubano. Esta demora no pensar a relação com a Terra, lembrando que este é um projeto de 1965, não manifestará, de um modo geral, uma postura contemporânea, atendendo à emergente preocupação com o reconfigurar da nossa relação com a Terra?
O percorrer da obra – os seus caminhos e espaços de permanência – é em si mesmo a (re)descoberta dos ritmos afro-cubanos. Confirmei com o meu corpo, que a obra é formada por sucessivas sequências; cadências que se sentem na pele, espaços sonoros, de variadíssimas evocações, por vezes turbulentos como o toque/som do tambor, capazes de despertar no nosso interior um estado performativo, numa descoberta constante. Este é um espaço que cheio de metáforas e significados, capaz de transformar qualquer (pre)conceito.
Como muitos cubanos sai do meu país para ter acesso, adquirir ferramentas, e conhecimento que de alguma forma poderiam exceder os limites impostos no mesmo. Estudar arquitetura era um deles, a viagem – de ida e volta – tornou-se deste modo um primeiro construir: Construir um território triangular imaginário Cuba, Angola, Portugal – desenhado pela minha singularidade, até então, inexistente, como se fosse possível fazer do meu ADN um material de construção. Consciente, contudo, que o meu próprio ADN é, por seu turno, uma construção dos meus ancestrais. É neste ponto, que a minha singularidade se encontra com muitas outras singularidades, passadas e futuras.
Michel Zeca Gonzalez
Nasceu em Cienfuegos, Cuba, em 1995, e tem raízes em Angola. Mestre em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa (2013-2019). Entre 2014-2018 colaborou com o coletivo de artistas e arquitetos Os Espacialistas, onde participou em diversos projetos e exposições, desenvolvendo um especial interesse por explorar os limites da profissão. Desde 2016 colabora na revista arqa (Arquitetura e Arte), como fotografo. Em 2018, cofundou DEL MEDIO atelier, sedeado em Lisboa, atelier criativo multidisciplinar, que estabelece a sua atividade entre Cuba, Portugal e Angola.
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Notas
[1] Jonathan Glancy, História de la Arquitectura, Barcelona, Blume, 2001, p. 7.
[2] Expressão popular utilizada em Cuba para aludir ao fato de que todos temos traços da raça negra, pois tanto os congoleses quanto os carabalí são negros. Os congoleses correspondem a um grupo étnico originário do antigo reino do Congo, que, juntamente com Angola, introduziram em Cuba as fundações dos complexos religiosos de "Palo Monte", também chamados de "Palo Congo”. A etnia carabalí pertence à Costa de Calabar, no sul da Nigéria, de onde partiram milhares de escravos no final do século XVIII e primeira metade do século XIX.
[3] Ricardo Porro, Ricardo Porro Architekt. Paris, Verlag Ritter Klagenfurt; L`institut Français dÀrchitecture, 1994, p. 59.