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DANIEL MOURA BORGES


 

 

 

Imagine o leitor ou a leitora uma cidade sem desigualdades sociais, sem quaisquer tensões ou conflitos a moldar a sua forma. Que forma teria essa cidade? Seria o “paraíso suburbano americano” de casas com quintal e vedação branca? Ou o ideal da cidade cosmopolita sem tensões culturais, um sistema poroso de vivências culturais? Estaria organizada por superquarteirões como Barcelona? Teria habitação social, transportes públicos, grandes parques e restaurantes, bares e cafés à farta? Como é que estaria estruturada e planeada?

É possível que tenha alguma dificuldade em responder a esta pergunta, mesmo quando a resposta parece evidente. Parece óbvio que uma cidade sem desigualdades sociais não precise de habitação social ou não esteja construida sobre a estrutura da periferia, onde habitam as camadas mais pobres que apesar de não viverem na cidade, lá vão trabalhar. Mas quando se põe a questão “Então quem viveria na periferia?” a resposta complica-se.

É que as cidades são como são porque têm um contexto, uma história e limitações geográficas. Mas acima de tudo porque a cidade é por excelência um instrumento de organização da sociedade e dentro dela se reproduzem as relações de forças sociais latentes na sociedade. Nela se materializam as tensões sociais que caraterizam as mais diversas sociedades. Nas ruas, praças, edifícios, lojas, centros comerciais ou espaços de lazer, as escolhas de planeamento urbano moldam a forma como as relações de forças e as desigualdades sociais interagem dentro da cidade. A habitação social é arrastada para as margens da cidade como a pobreza é arrastada para as franjas da sociedade. As infraestruturas servem como fronteiras simbólicas e físicas para a exclusão social e para a divisão racial. [1] 

A grande tensão que atormenta a cidade é a tensão entre o público e o privado. Entre o acesso livre e o acesso restrito. Entre os interesses da vida pública e os interesses da vida privada. É uma tensão mediada nas sociedades capitalistas avançadas pelo fio invisível do mercado livre, que vai tecendo sobre a cidade uma hierarquia fraturante. A quem tem dinheiro cabe a tomada de decisões sobre o espaço público, que se traduz na sua privatização. A quem não tem dinheiro cabe a sobrevivência no espaço moldado por outros. O poder público, mantendo ainda algum controlo sobre o espaço público, segue uma lógica de concessão e privatização para cortar despesas e aumentar lucros. Os espaços abertos ao público por excelência tornam-se progressivamente propriedade privada: centros comerciais, cafés e restaurantes, enquanto que os espaços verdadeiramente públicos são esquecidos e subfinanciados. Até praças e parques começam a ser alvo de disputa para a privatização. [2]

O mercado livre molda a cidade à procura do lucro. A grande motivação do capital é multiplicar-se, transformando nessa ânsia os espaços da cidade. As rendas sobem, os estabelecimentos locais perdem as margens de lucro e são forçados a sair para que entrem as grandes cadeias com políticas de precarização dos trabalhadores e uma capacidade líquida suficiente para fazer render os espaços populares e mais caros da cidade. Os espaços que não dêem lucro são vistos como um desperdício ou uma oportunidade de criar um novo local de consumo, que atraia novos clientes e crie uma nova experiência efervescente para públicos turistas ou com grande capital. 

O direito à habitação é suplantado pelo direito ao consumo. A gentrificação liderada pelo mercado vai expulsando as pessoas do centro das cidades, que já não são lugares para ser vividos, mas antes experienciados. Não importa que lá não viva ninguém se a experiência de consumo for popular e desejada. Quem quer viver na cidade é escorraçado para as zonas periféricas até que estas se tornem elas próprias gentrificadas e então é expulso outra vez. Quem governa vê neste processo um impulsionamento da economia e não um ataque ao direito à habitação, falhando em perceber que a geração de capital não funciona na sua redistribuição mas sim na sua concentração.

A cidade enquanto produto consumível é sujeita à disneyficação. A racionalização do processo de planeamento urbano funciona para criar uma experiência que é tematizada e onde há uma separação entre a produção e o consumo. [3] A cidade torna-se numa disneylândia. Isto é, a cidade é criada como uma experiência a ser consumida, um parque de diversões temático onde todos se podem divertir e esquecer os males do mundo. A cidade disneyficada não pode ser vista como um lugar onde as pessoas trabalham e vivem ou onde há desigualdades, conflitos e tensões. O turismo concretiza essa visão na medida em que produz sujeitos disponíveis a consumir essa experiencia e a ocupar o espaço habitável da cidade.

A ordem social da cidade disneyficada é sempre regulada. A experiência presupõe um grau de segurança e conforto que só pode ser obtido com o controlo total da ordem social nos espaços de consumo. [4] As zonas de economia turística diurna e noturna passam a ser espaços regulados por seguranças e autoridades que garantem a ordem a toda a hora, para que o consumo nunca seja posto em risco. São desencorajadas as atividades contraculturais, as economias informais e os espaços realmente subversivos que contrariem a lógica da cidade neoliberal. A ordem social não só é assegurada nas ruas como é projetada nos espaços privados abertos ao público através da imposição de normas sociais. Como nos devemos comportar, estar ou ser em público é regulado pelos estabelecimentos onde socializamos. 

Na disneylândia urbana não há trabalhadores, só consumidores. É esse o resultado da separação entre produção e consumo. O mercado não encara o indivíduo enquanto membro de uma sociedade alargada e heterogénea mas meramente enquanto consumidor. A sua identidade é composta pelos lugares que frequenta, as lojas onde compra roupa, os sítios onde come, os sítios onde escolhe sair à noite. O importante é que o sujeito que experiencia a cidade neoliberal consuma o máximo que consiga para que a economia continue a crescer. Sem o consumo, a cidade disneyficada não consegue oferecer nada aos seus habitantes nem aos turistas que tanto deseja.

A disneyficação oculta, desloca e aprofunda as tensões sociais. Ao tornar a cidade numa experiência consumível, o mercado oculta a pobreza, a precariedade e o conflito inerentes à modernidade tardia. A tensão não é consumível e por isso é deslocada para as periferias, onde o planeamento urbano neoliberal trata de criar fronteiras e obstáculos para que a exclusão social se manifeste. A uma viagem de comboio de distância está um mundo e uma realidade social completamente diferente e isolada, para que o estimado consumidor não corra o risco de entrar “no bairro errado”. O afastamento dos problemas sociais não os resolve, aliás, aprofunda-os. Aumenta a desigualdade social e promove a guetificação urbana.

A resistência à lógica neoliberal da cidade deve ser feita contra o consumo. Lutar para que hajam bancos de jardim públicos — como aconteceu no Porto — ou para que hajam espaços comunitários baseados na solidariedade — como acontece por todo o país — não é insignificante. A possibilidade de criar espaços associativos, cooperativos e sociais onde valorizemos a comunidade é a possibilidade de inverter o modelo do consumismo. Lutar para que o espaço não seja mediado pelo consumo é essencial para construir um modelo de cidade diferente da cidade disneyficada.

Para criar comunidade precisamos de espaço comum. Ao invés do espaço público, que é o espaço cuja propriedade é pública ou que é privado mas aberto ao público, o espaço comum [5] deve ser um espaço ao qual atribuimos o significado de comunidade, no qual partilhamos experiências e socializamos pela vontade de socializar, de crescer e de construir um espaço do qual façamos parte e para o qual possamos contribuir. Construir novas formas de socializar também passa por repensar o espaço da habitação, o local de trabalho, o transporte público e os espaços de convívio atuais, com alterações que os desliguem do consumo enquanto fim.

As escolhas de planeamento urbano são fundamentais para criar espaço comum. Aprendamos com o projeto SAAL: um mero lance de escadas pode funcionar como espaço de assembleias vibrantes e que celebrem a vida em comunidade. Se o planeamento urbano consegue individualizar e privatizar a cidade, ele consegue também certamente criar laços de convívio baseados na comunidade e não no consumo. Basta que haja um banco para as pessoas se sentarem a conversar, basta que haja um parque público para que possamos usufruir de espaços de convívio comuns sem ter de consumir.

 

 

Notas:

[1] Emily Badger e Darla Cameron, “How railroads, highways and other man-made lines racially divide America’s cities”, in The Washington Post, 2015

[2] Mariana Correia Pinto, “Dos bancos às soleiras das portas: a importância de nos sentarmos nas cidades”, in Público, 2023.

[3] Stacy Warren, “Disneyfication of the metropolis: popular resistance in Seattle”, in Journal of Urban Affairs 1 Vol. 76/NO.217994, p.92.

[4] Alan Bryman, “The disneyzation of society”. in The Sociological Review 1999-feb vol. 47 iss. 1. p. 27.

[5] Stavos Stavrides, Espaço Comum, Lisboa, Orfeu Negro, 2021. 

 

 

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Daniel Moura Borges Licenciado em Ciências da Comunicação e mestrando em Sociologia pela Universidade Nova de Lisboa. 23 anos. A estudar a precariedade na economia social.