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NEWS FROM VENICE
MARIA MANUEL BARREIROS
La Biennale di Venezia, 14.ª Mostra Internazionale di Architettura
Passando alguns dias em Veneza percebe-se que a Bienal de Arquitectura, este ano com a curadoria de Rem Koolhaas e o mote Fundamentals, é o tema de conversa mais comum entre profissionais e curiosos. Todos querem ver o que Koolhaas preparou desta vez, ao mesmo tempo que quase ninguém quer dar o braço a torcer perante um dos arquitectos mais controversos da época. Para quem já viu, as opiniões divergem. A verdade é que de Koolhaas esperamos sempre um excesso de informação, quase mesmo ao nível da saturação, carregado de miríades de relações e conexões nem sempre compreensíveis.
Giardini - Elements of Architecture
A maioria das discussões referem-se à exposição patente no pavilhão central do Giardini que, pela primeira vez, apresenta um único tema que preenche todas as salas do pavilhão. Ao contrário das edições anteriores, em que vários arquitectos eram convidados a responder às proposições do curador, Elements of Architecture é construída com os resultados de investigações realizadas, durante dois anos, por estudantes da Harvard University Graduate School of Design, conduzidos por Rem Koolhaas e Stephan Trüby, com o apoio da AMO. Para cada elemento — tecto, janela, corredor, chão, varanda, fachada, lareira, parede, casa de banho, escada rolante, elevador, escadas, rampa, telhado e porta — é apresentado um rol de informação variada que cruza arquivos de coleccionadores privados, acervos de institutos académicos, lugares comuns e investigações em curso. Curiosidades, factos históricos e cronológicos, informação técnica e manuais de uso misturam-se com modelos, protótipos, colecções de elementos à escala real, desenhos, fotografias, instalações e dispositivos digitais. A hierarquia de cada elemento, a sua importância política, cultural e social, a evolução digital associada a uns e a obsolescência de outros, toda e qualquer consideração sobre cada um dos elementos tem presença na exposição.
Orquestrada segundo o modo de apresentação habitual das publicações do OMA e da AMO — plena de colagens, sobreposições, hipertextos, ironia e saturação de informação — nem todos os aspectos apresentados sobre cada elemento possuem a mesma densidade científica ou interesse académico, o que no entanto não se traduz directamente numa maior ou menor relevância dos mesmos. Elements of Architecture é, de certa forma, tanto no projecto curatorial como nos livros [1] que a acompanham (um por cada elemento), um género de armário de curiosidades, como os que se espalharam por toda a Europa durante a segunda metade do século XVI. Estes armários (do original cabinet of curiosities, que no século XVI ainda significava uma divisão e não um mero armário) serviam como um repositório de objectos naturais e/ou artificiais, cuja definição e categorização não seria ainda precisa, representando por isso uma intersecção entre o mundo da ciência e o dos mitos e crenças. Além de uma celebração do acto de coleccionar, estes armários tinham uma intenção não somente educativa mas também estética.
Elements of Architecture pode assim ser compreendida como um repositório, neste caso de objectos somente artificiais, cuja selecção, mais do que definição e categorização, não se resume à análise de uma linha actual ou possível da prática profissional, mas é múltipla, tanto inclusiva como exclusiva, encontrando-se objectos tanto sintéticos como prolixos. É uma celebração do acto de acumular (e produzir) realizado pela profissão. Com uma intenção estética e francamente educativa, a exposição parece ser, pela primeira vez, mais atractiva e assimilável por um público mais generalizado. Ao mesmo tempo, a propositada saturação de informação permite que nem tudo consiga ser apreendido, deixando o caminho aberto para os interesses pessoais e a análise subjectiva de cada espectador. A ironia da exposição apresenta-se nesta ideia que revela a ausência de uma demarcação estrita no modo actual de produzir arquitectura, a ausência da identificação de arquitectos específicos, a ausência de gramáticas concretas e, sobretudo, a ausência de uma definição fechada para cada um dos elementos que a compõem.
Arsenale - Monditalia
No Arsenale a maioria do espaço é reservado, também pela primeira vez, a um único tema, tornando-se o país de acolhimento o mote para a exposição Monditalia, com a curadoria de Ippolito Pestellini Laparelli. Partindo da interpretação da Tabula Peutingeriana, uma representação linear do Império Romano e da sua influência geográfica, Monditalia é construída como um mapa panorâmico de Itália e das suas zonas de influência, reflectindo ao mesmo tempo um panorama da Europa actual.
A exposição coordena 41 casos de estudo e 82 filmes italianos, dispostos de Sul a Norte, do Norte de África aos Alpes. As relações político-económicas e a herança cultural europeia nas antigas colónias, a definição de fronteiras, a vaga de imigração clandestina africana, o Mediterrâneo, o multiculturalismo, as redes de mobilidade, as infraestruturas, a dispersão territorial e a sua indefinição, a paisagem, a política, o espaço da democracia e a sua representação, a criação da identidade nacional, a preservação, a história, o efémero, os edifícios abandonados, a especulação, a corrupção, a produção industrial, a logística, a electrónica, o digital, a inovação, o hedonismo, a sexualidade, a religião, os valores, o turismo, o lazer, o trabalho, a educação, a cultura, etc. — são muitos dos temas abordados pelos 41 casos de estudo, que se reflectem como preocupações recorrentes ao longo da história nos 82 filmes seleccionados e como problemáticas transversais a todo o projecto europeu.
A Tabula Peutingeriana é a única representação conhecida do cursus publicus, o percurso de transporte e correio ao serviço do Império Romano. Composta por 12 partes de 34cm de altura por 59 a 65cm de largura cada, as partes organizam-se num mapa linear com um total de 6,82m em toda a sua extensão. O mapa retrata a área de influência do Império Romano — desde a África do Norte, passando pela Europa até ao Médio Oriente, Pérsia e Índia, e serviria como um guia para o viajante, revelando-lhe onde podia ir, que estrada percorrer, por que ponto se referenciar, onde repousar e por onde prosseguir.
Se a Tabula Peutingeriana representa um panorama aparentemente coerente, sobretudo claro e legível, do Império Romano e das suas principais vias de comunicação, sugerindo itinerários possíveis, Monditalia não consegue uma coerência na relação entre temas, nem uma legibilidade do discurso. Construída à volta de diversos trabalhos de investigação, parece por vezes centrar-se mais em preocupações e interesses individuais, do que num panorama coeso relativo à disciplina. Uma coisa é notória: o abandono do interesse pelo edifício numa Itália que historicamente é referenciada pelos seus grandes edifícios públicos e desenho do espaço urbano, para uma Itália contemporânea, espelho de um mundo global, onde a disciplina se expande em considerações de ordem social, cultural e política, como de resto se tem verificado por toda a Europa.
Pavilhões Nacionais — Absorbing Modernity, 1914-2014
Pela primeira vez, os comissários de cada uma das 66 participações nacionais foram desafiados a responder a um único tema, lançado por Rem Koolhaas e Stephan Petermann. Absorbing Modernity, 1914-2014 pedia a cada um dos países participantes uma reflexão sobre as repercussões, os momentos chave e os eventos que marcaram a modernização do país nos últimos 100 anos. No entanto, dado o carácter abrangente da proposição e o largo espaço temporal, o conjunto das participações nacionais manteve, ainda assim, uma saudável variedade e falta de coerência. Se tal impede uma reflexão analítica da proposição, por outro lado fomenta a variedade de escolhas curatoriais, reflexões e seus formatos. É interessante ver o catálogo [2] desta 14.ª edição onde, com o apoio de uma cronologia, os vários países são posicionados através de imagens e datas cruciais para a sua história moderna, criando uma malha de relações históricas e temporais entre as várias participações.
Nenhuma participação apresenta o trabalho de um arquitecto específico. As escolhas recaem antes sobre a representação de um edifício significativo, de uma operação urbanística ou de uma corrente de pensamento. Se alguns países europeus apresentam a Segunda Guerra Mundial como charneira da sua história moderna, outros reportam ainda o campo fértil das antigas colónias. Da América do Sul chegam-nos os reflexos das políticas socialistas, quase sempre associados ao betão como matéria de eleição na definição de uma identidade nacional. Nos países árabes dá-se início ao estudo da produção moderna que entrou pela mão dos ocidentais, a par e passo com a exploração petrolífera. Algumas participações, poucas, transportam a reflexão até à actualidade.
A participação alemã — Bungalow Germania — reconstrói no interior do pavilhão expositivo alemão o Kanzlerbungalow à escala 1:1. O pavilhão alemão na Bienal, originalmente realizado pelo arquitecto veneziano Daniele Donghi, foi adquirido em 1938 pelo governo alemão que ordenou, seguindo ordens de Hitler, à altura chanceler alemão, uma renovação do mesmo pelo arquitecto Ernst Haiger. Foram removidas as colunas jónicas e adicionados os monumentais pilares quadrados ao gosto do fascismo italiano e alemão. Parte de uma política que visava demonstrar o poder alemão no estrangeiro, a alteração permitiu aumentar o efeito impositivo do edifício e a força do poder a ele associado. Por outro lado, o Kanzlerbungalow foi comissionado pela República Federal da Alemanha e realizado pelo arquitecto Sep Ruf em 1964. O Kanzlerbungalow serviu como casa oficial de sucessivos chanceleres alemães, onde estes viviam e recebiam os seus convidados na antiga capital de Bona. Em 1999, Bona deixou de ser capital, dando lugar a Berlim como capital da Alemanha unificada. [3] O Kanzlerbungalow inseria-se no centro de um parque, à semelhança do Giardini — no caso do pavilhão —, e enfrentando a grande mancha de água do Rio Reno, à semelhança da Lagoa de Veneza. Com um diverso carácter formal, organização e materialidade, ambos os edifícios representaram o estado alemão nos últimos 100 anos. O seu confronto revela as intensas alterações políticas do país, pondo em conflito a crise da arquitectura como representação.
O pavilhão francês — La modernité, promesse ou menace? — propõe uma reflexão entre a promessa modernista e a distopia a ela associada. Da sedutora maquete da Villa Arpel, do filme Mon Oncle (1958) de Jacques Tati, passando pela pré-fabricação, até ao grand-ensemble de Drancy, a exposição revela as ansiedades surgidas do confronto do movimento moderno com as reformas sociais francesas: desde a difícil adaptação do Monsieur Hulot, da monotonia da pré-fabricação, até à facilidade com que uma solução para a escassez de habitação rapidamente se torna num campo de concentração.
Para o pavilhão chileno — Monolith Controversies —, vencedor do Leão de Prata, entra-se por uma sala de paredes rosa e decoração profusa. Na sala seguinte um painel pré-fabricado de betão ocupa o espaço, e uma descrição exaustiva dos vários tipos de painel desenvolvidos — com janela, porta, brise-soleil, etc. — e as combinações que a sua assemblagem permite são enumeradas. Apercebemo-nos aí que a sala anterior, de dimensões precisas, é parte de uma casa chilena construída com estes painéis. De origem soviética, este sistema construtivo permitiu a construção de mais de 170 milhões de apartamentos em todo o mundo de 1945 a 1985. No Chile significaram o sucesso do programa de habitação social instaurado por Salvador Allende durante o seu governo da Unidad Popular e adquiriram significado como tradução estética de duas ideologias políticas opostas: se Allende assinou o seu nome no betão ainda húmido, Pinochet pintou-o cobrindo a antiga assinatura, e nele colocou um altar da Virgem com o menino.
O Reino do Bahraim — Fundamentalists and Other Arab Modernisms — apresenta uma selecção de 100 projectos construídos, ao longo de 100 anos, em 22 países do mundo árabe. Dividindo-se geograficamente pelo Magreb Árabe, a África Árabe Oriental, o Egipto, os países árabes do Levante, o Iraque, a Península Arábica e o Bahrain, as obras seleccionadas foram publicadas em livro [4] para o qual contribuem ainda artigos, de cada uma das equipas de investigação, sobre cada uma das áreas geográficas. O modernismo é compreendido nestes países como algo vindo de fora que coincidiu com a criação de um projecto político e cultural transnacional e com a criação das nações-estado árabes. Realizado pelo Arab Center for Architecture, este trabalho (realizado pela primeira vez) contribui para a documentação do património árabe moderno permitindo a análise, através da arquitectura, das dissonâncias e proximidades do variado mundo árabe numa época de grande indefinição política, cultural e religiosa.
O Leão de Ouro foi atribuído ao pavilhão da República da Coreia — Crow’s Eye View: the Korean Peninsula — que é mais interessante pela premissa a que se propõe do que pelo projecto expositivo em si. Numa tentativa de perceber a visão de conjunto — a vista de pássaro da cultura arquitectónica de uma península dividida em dois países —, os curadores reuniram os dados possíveis e acessíveis à construção desta comparação. Assim como é impossível ter uma visão singular e universal da arquitectura, parece ser também impossível, por enquanto, ter essa visão sobre as duas Coreias.
A participar pela primeira vez e com um dos mais bem conseguidos projectos expositivos, a Indonésia — Craftmanship: material consciousness — apresenta uma reflexão sobre os materiais que constroem a história da arquitectura tradicional e moderna do país. Em seis telas de vidro, numa sala a meia luz, são projectados seis vídeos sobre seis materiais distintos: madeira, pedra, tijolo, betão, metal, bamboo, e a arte construtiva a eles associada. Distinguindo a sua maleabilidade e adaptabilidade, os materiais e respectivas técnicas são apresentados como instrumento de compreensão da arquitectura e da sua adaptação à mudança.
Por último, o pavilhão japonês — In the Real World — configura uma das participações mais interessantes. A exposição é um amontoado de material — desenhos, colecções, fotografias, modelos e entrevistas — sobre várias e possíveis revisões do modernismo. Após a afirmação económica do Japão em 1968 e a exposição mundial de Osaka em 1970, o Japão reafirmou a sua condição de potência perante o Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial. Simultaneamente, tornaram-se visíveis os problemas trazidos pela modernização: a poluição, a dependência de combustíveis fósseis, o consumismo, a mobilidade e a densidade populacional, entre outros. A exposição é composta pelas experiências, descobertas e investigações realizadas por jovens profissionais de áreas distintas, que saíram para o mundo real procurando e propondo alternativas à modernização.
Representação Portuguesa — News from Portugal, Homeland
A representação nacional, com a curadoria de Pedro Campos Costa, é também este ano assunto de conversa. A participação é feita pela publicação de um jornal, em três edições, durante os seis meses da Bienal. Focando-se na temática da habitação, sujeito principal da experiência modernista em Portugal, o jornal reportará ainda o desenvolvimento de seis projectos por seis grupos de arquitectos portugueses, em seis cidades diferentes e que lidam com seis diferentes modos de habitar.
Entre os arquitectos nacionais, a representação portuguesa desta edição é assunto de discussão e animosidade. Será o formato escolhido adequado para a representação nacional? A escolha prende-se com motivos económicos ou com o aproximar de uma geração de profissionais com pouca obra construída? Qual a relevância e difusão dos seis projectos associados às três edições do jornal realizados em território nacional? No entanto, a maior discussão entre os profissionais portugueses continua a ser uma não produtiva dor de cotovelo entre a produção dos mais velhos e a capacidade difusora e multidisciplinar dos mais novos.
Se os temas e conteúdos são interessantes, o jornal perde a sua presença ao confundir-se com os milhares de catálogos e folhetos recolhidos ao longo da visita pelas restantes representações nacionais. Para uma temática do género, a falta de capacidade de síntese e a ilegibilidade da transmissão, nomeadamente nos projectos habitacionais publicados, desmotiva o leitor comum. Tantos dados e factos, história, políticas e possibilidades deveriam ser mais simplesmente elaboradas evitando lugares comuns e revelando análises mais sintéticas do problema entre mãos: o excesso de edificado, a escassez de políticas públicas de aquisição de imóveis e seu arrendamento, a complicada estrutura legal, a recente e crescente importância da reabilitação, o turismo e a desertificação, entre outros, são temas por si só bastante densos. Mas o que parece tirar presença à participação nacional é a ausência de eventos que marquem o lançamento das várias publicações, a discussão pública dos temas lançados (em Veneza) e a apresentação pública dos projectos que se têm desenvolvido ou que podem ainda ser realizados como estratégias de resolução dos vários problemas relacionados com a habitação em Portugal.
Mas, de facto, vale a pena dar valor às discussões que estão a ser levantadas, aos dados que estão a ser recolhidos e aos formatos de uma discussão pública que tenta ser mais alargada e abrangente. Ainda há muito por fazer.
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Maria Manuel Barreiros
(Coimbra, 1986) Arquitecta, formada pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra, onde concluíu em 2010 o Mestrado Integrado em Arquitectura com a dissertação Lugares Radicais – O lúdico e o experimental na arquitectura e no urbanismo europeu, 1950-2010. Editora e redactora da revista NU de 2005 a 2008, e pontualmente em 2013 na edição comemorativa do 10º aniversário da revista. Colaborou com a Bak Gordon Arquitectos de 2011 a 2014, e mais recentemente com a Pedra Líquida - Arquitectura + Engenharia.
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NOTAS
[1] Rem Koolhaas, Elements, Veneza: Marsilio Editori, 2014.
[2] Biennale di Venezia, Fundamentals Catalogue, Veneza: Marsilio Editori, 2014.
[3] Quinn Latimer, Your bungalow is my pavilion (This room is an island) [folha de sala], 2014.
[4] George Arbid, Fundamentalists and other Arab modernisms, Aosta: Musumeci S.p.A, 2014.
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[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]