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TERRAIN VAGUE – NOTAS DE INVESTIGAÇÃO PARA UMA IDENTIDADE
LUÍS PEDRO SÁ E MELO
Tema cada vez mais recorrente, os dos “vazios urbanos” parece ter tomado conta de uma apaixonada discussão no seio do debate sobre a cidade pós-industrial. Confirma-o o facto deste ser o tema da primeira Trienal de Arquitectura de Lisboa.
Pessoalmente prefiro a expressão “Terrain Vague”, pela sua transversalidade linguística, e pela sua ressonância imagética.
Este texto pretende ser um início de apropriação desses “terrain vague”, e das suas diferentes manifestações. Assim, apesar de não ter como objectivo uma reflexão sobre a trienal, debruçar-nos-emos a título introdutório, com a pertinência óbvia, na definição inscrita no seu texto de apresentação:
“São espaços expectantes, mais ou menos abandonados, mais ou menos delimitados no coração da cidade tradicional, ou mais ou menos indefinidos nas periferias difusas. São manchas de “não-cidade”, espaços ausentes, ignorados ou caídos em desuso, alheios ou sobreviventes a quaisquer sistemas estruturantes do território.”
Salvaguardando as condicionantes peculiares onde esta definição aparece, ela encerra em si uma clareza quase insofismável na constatação física das duas vertentes sobre as quais aqui quero ponderar.
Ao citar este trecho, surge-nos a noção de haver diferentes tipos de “vazios urbanos”, sejam eles consequência de uma urbanização descontínua e heterogénea sobre o território, deixando nos seus interstícios retalhos de uma ruralidade persistente; ou sejam esses vazios os resquícios de uma cidade industrial passada e esquecida nas ruínas de grandes unidades produtivas desactivadas.
Proponho assim um exercício, que de especulativo, tentará lançar nutrientes sobre estas duas variantes: o valor da memória e jogo na construção da identidade dos vazios rurais ainda não ocupados e nas marcas da industrialização passada, respectivamente. Desta ultima associação tentaremos ver se é possível constatar algum comportamento que faça participar o “terrain vague”numa cultura urbana.
Partindo do texto citado, há um aspecto logo à partida confrangedor, a visão fria e distante, de fora para dentro do “terrain vague”. Aparentemente foi posta de lado qualquer possibilidade de haver uma identidade que vá para além desta mancha, quase nódoa, de “não cidade”.
Mas será assim mesmo, nesta definição que encontraremos o verdadeiro valor intrínseco dos “vazios urbanos”?
Para questionar o valor dessa “ausência” voltemo-nos para o interior destes espaços, ponderando sobre se existe em si algum potencial de valor de memória individual e colectiva, de e para a cidade. Quando falo de memória, refiro-me a essa particularidade que une a realidade presente a um passado remoto, rural, através de um tempo impreciso e nebuloso, suscitada por uma qualidade de duas faces, onde a primeira corresponde à memória colectiva e a segunda à memória individual.
Assim sendo, neste enclave, rural, que constitui o “vazio”, é criada uma nova ideia de memória colectiva, longe de uma representatividade ociosa, na medida em que é transitória.
Esta memória revela-se, não como ícone colectivo (identificado, catalogado e divulgado), mas antes como também diz Ignasi de Solà-Morales numa série de “indícios territoriais” (1) que, ao serem descontextualizados em clusters, representam a ausência desse mesmo colectivo.
É por isso que o seu ocaso é, normalmente, a única forma de actuação sobre o “vazio”, uma vez que o reconhecimento dessa ausência colectiva, quando requer uma intervenção, a requer colectivamente, ordenando-a através do mundo das formas, colectivamente reconhecidas, numa consagração da ordem urbana.
Em contra partida, a estranheza que provoca essa ausência colectiva no meio urbano percorre individualmente a memória do sujeito.
Esta memória individual é de extrema importância para o sedentário que entra, percorre, vagueia, no “terrain vague”. E é importante, porque passa a pertencer-lhe a capacidade intelectual de fazer o exercício dessa mesma memória, responsável pelas emoções de reconhecimento e/ou estranheza, só possíveis pela distância física e sobretudo temporal.
Por outro lado, este choque de dessincronia, provocado pela tal memória de um espaço passado no presente, mas cuja representação é a ausência colectiva, um passado com futuro em aberto, não orientado, fonte de possibilidades, de tudo o que podia ter sido mas não foi, vai rasgar, entre os dois tempos, a ordem urbana e o “terrain vague”, permitindo que o usufrutuário, momentaneamente ausente de ordem, e presente na ausência, contemple a cidade de fora para dentro.
Consequência dessa distância, a noção de jogo poder-nos-á esclarecer se, quando falamos de “terrain vague, nos referimos a uma parte integrante da complexa malha urbana, onde a própria cidade, também enquanto identidade colectiva, se circunscreve conjuntamente com o “terrain vague”.
Detenhamo-nos, então, para este conceito de jogo, no período pós-guerra, nomeadamente dentro de uma perspectiva pós-industrial.
Partamos das grandes indústrias desactivadas, que se vêm, desde aí, apresentando como áreas expectantes, na medida em que representam um potencial de especulação imobiliário enorme, mas que por enquanto, na sua grande maioria, são fiéis depositárias das expectativas dos seus usufrutuários e aí se desenrolam, como que manifestos de um provir ambicionado.
Finalmente, peguemos então no conceito de jogo, tal como o define Johan Huizinga no livro “Homo Ludens” (2), ainda no período de entre guerras:
“…uma actividade que se desenvolve dentro de certos limites de tempo e de espaço, numa ordem visível, de acordo com regras livrementes aceites, e que se situa fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. “ (3).
Com esta definição, Huizinga dá-nos três coordenadas que regem o conceito de jogo: liberdade de ter “regras autónomas e livremente aceites”, anormalidade, na medida em que não se enquadra dentro da “esfera da necessidade ou da utilidade material”, e limite, no confinamento “dentro de certos limites de tempo e de espaço”.
Se olharmos para a primeira noção, a ideia de limite parecer-nos apreendida, desde o texto introdutório da trienal.
Já a vocação do jogo para a anormalidade, leva-nos à dimensão de “mundano”, na medida em que segue paralela à corrente vivência urbana, comummente aceite, e estratificada segundo uma série de regras, e compromissos sociais de troca, mais ou menos intuídos e pré estabelecidos em cânones não questionados nem questionáveis pela maioria dos habitantes.
Assim, anormalidade é como uma passagem para o exterior do “real”, mas dentro de um quadro mundano mais lato.
Essa passagem faz-se como uma actividade temporária, dotada de uma ordem própria, à margem da satisfação imediata das necessidades e dos desejos da dita vida “normal”, é o enquadramento em que inicialmente colocamos o habitante do “terrain vague”, o “que vagueia; errante; vagabundo”.
O jogo e o “terrain vague” parecem estreitamente ligados, visto não haver em ambos “qualquer interesse material, e da qual não advém lucro” (4), assim como “promove a formação de agrupamentos sociais que tendem a rodear-se de secretismo e a sublinhar a sua diferença em relação ao mundo exterior, por meio de disfarces ou por qualquer outro processo” (5).
Senão, vejamos as duas imagens duma desactivada área industrial na cidade do Porto, como um de muitos e diversos exemplos de uma consequência pós-industrial, onde se verifica isto que tenho vindo a expôr.
Se, por um lado, existe um jogo-competição na forma como são expostas as suas manifestações, assinadas sob pseudónimos praticamente só perceptíveis a quem pertence a esse grupo social restrito, por outro constata-se uma competição por um melhor e mais expressivo graffitti, que representa, no seu tema alusões claras à cidade, ao meio de onde se ausentaram momentaneamente.
Finalmente, podemos corroborar a ideia de que “uma vez jogado, permanece como uma nova criação da mente, um tesouro guardado pela memória” (6), memória essa, sobre um colectivo, tornando-se assim parte da cidade; individual na sua expressão e liberdade, é transmitido e torna-se numa tradição de um lazer no “terrain vague”.
E é desta forma que o “terrain vague” se constitui numa primeira instância, como uma interrupção, um interlúdio no quotidiano. O “terrain vague” pós-industrial faz-se sobre as ruínas dessas grandes unidades desactivadas, como que representando um grito de liberdade da estrutura produtiva em que as cidades se tornaram.
Poderemos adiantar-nos mais, ainda, e considerar que falamos de hiatos dentro da cidade que hoje existem como manifestações diárias de um objectivo, onde ainda não terá sido cumprido, na sobreposição à falência da optimização segundo propósitos produtivos, a putativa emergência dentro da cidade, fragmentada ou não, de uma sociedade onde o ócio, a lentidão e o prazer concorram de igual ponto de partida com o trabalho e a velocidade crescente da produção.
Nesta medida, encontramos o “terrain vague” como uma espécie de “outro” da cidade onde se luta, através do distanciamento, contra um processo de apropriação acrítico, de esvaziamento do sujeito na esfera dos objectos.
O “terrain vague”, como sugeria Ignasi de Solà Morales, tem a capacidade de colocar o indivíduo num espaço cujo modo de percepção vai passar além dos limites desse mesmo espaço, que é a cidade enquanto máquina produtiva.
E como afirma Huizinga sobre o jogo, este “ornamenta a vida, confere-lhe outra dimensão e, nesse sentido, constitui uma necessidade, tanto para o indivíduo – como função da vida – como para a sociedade, em função do sentido que possui, do significado, do seu valor expressivo, das suas associações espirituais e sociais, em suma, enquanto função cultural” (7).
Assim, e do modo como o “terrain vague” representa a fuga e uma oportunidade de alternância, de distância para a contemplação, leva-me a crer que este é, tem de ser, parte integrante da cidade.
“Terrain vague” detém essa capacidade de, ao deslocar o seu habitante, poder desdobrá-lo em si, no outro que contempla, mantendo uma importante função cultural da cidade.
Notas:
(1) Ignasi de SOLÀ-MORALES – “Terrain Vague” in Territórios. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002
(2) (4) (5) (6) (7) Johan HUIZINGA – Homo Ludens. Lisboa: Edições 70, 2003.
(3) Johan HUIZINGA – Homo Ludens. segundo George STEINER – “Introdução” in Homo Ludens. Lisboa: Edições 70, 2003
Luís Pedro Sá e Melo, arquitecto
Doutorando pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura da Universidad de Valladolid