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As expectativas de um road movie não são muito diferentes das expectativas de uma road trip. Sejam duas horas ou duas semanas, uma viagem é uma viagem.
As expectativas de um nómada relativamente à estrada são muito diferentes de as de um mero turista. Para um será uma vida, para outro será um episódio mais ou menos engraçado para contar aos amigos quando chegar a casa. Uma viagem não é só uma viagem.
Chloe Zhao apresenta-nos uma magnífica Frances McDormand na estrada norte-americana. Uma nova visita ao caminho do deserto desde The Rider, que Zhao faz em busca do realismo bruto da precariedade da vida de classe média nos Estados Unidos. O material é bom: depois de décadas a trabalhar, a descontar para a Segurança Social e a tentar poupar, milhares de americanos vêem-se incapazes de se sustentar, numa altura pós-2008. Muitos destes americanos decidem vender o que lhes resta, comprar uma roulotte ou uma carrinha e seguir para a vida na estrada. Na viagem encontram trabalhos físicos que pagam o suficiente para manter a carrinha e comprar comida. Assim faz Fern, a personagem de McDormand: começa por trabalhar na Amazon, segue para uma pedreira, para uma fábrica de batatas, para um restaurante de fast food, para as limpezas de um acampamento. Fern, tal como os muitos nómadas boomers que partilham consigo o cenário, está em idade de reforma, não tem filhos, é viúva e as suas poupanças não são o suficiente para manter uma vida sedentária. Mas, para lá disto, nos motores da sua carrinha vemos os seus traços de obstinação, resiliência, coragem e algum desespero. Assim é ser nómada. Assim é a matéria-prima de Nomadland. Para lá dos moralismos imediatos que se podem concluir da narrativa, a matéria-prima de Nomadland ainda é verde para tantos prémios. O subtítulo do filme “Sobreviver na América do Século XXI” é um título que tomei como descritivo, embora creia que Zhao, infelizmente, o tenha escolhido por razões morais. Se assim for, será uma injustiça.
De tudo o que a imagética norte-americana nos ensinou, tira-se a grande lição de que a estrada é um elemento de fé. É uma imagética de expansão e não de lugar, como seria um estilo mais europeu. A extensão da estrada é tanta quanto a extensão das alternativas. Hoje no Arizona, amanhã na Califórnia e daqui a uma semana na Carolina do Norte não é uma mera imagem pop, é uma assinatura cultural profundíssima que emerge de uma simples contingência geográfica. Na cena do churrasco, o cunhado de Fern, um agente imobiliário, diz-lhe que nem todos podem dar-se ao luxo de se fazerem à estrada, como se de um passeio caprichoso ao estilo de um hippie mimado dos anos 60 se tratasse. Fern apressa-se a perguntar-lhe, indignada, se é isso que ele realmente pensa do seu estilo de vida e da motivação para o mesmo. A irmã de Fern logo tenta apaziguar a tensão do momento com uma das falas mais importantes do filme que Zhao poderia ou deveria ter usado como lite motif de toda a longa: “What the nomads are doing is not that different than what the pioneers did.” A vida está numa relação orgânica com a imensidão da paisagem desde há séculos. Foi esta relação tão imediata com o espaço que levou os pioneiros para a viagem, tal como levou os Hell’s Angels, Mark Twain, Hunter S.Thompson, Jack Kerouac, Peter Fonda e, claro, os nómadas. Embora esta ideia possa estar na mente de Chloe Zhao, a sua transformação para o cinema não é assim tão orgânica. Por um lado, os imensos close ups a Fern (claramente destruída pela morte do seu marido) carregam um moralismo desnecessário e desconectado com muitos dos diálogos e monólogos que são esperançosos e, apesar de tristes, resolvidos; falas de pessoas que tomaram a escolha de não viver uma velhice dependente, sedentária e fechada. Os cortes do texto e das rugas de um nómada despojado para overviews da paisagem desértica tão característica dos Estados Unidos causa também confusão. Fern mostra-nos a tristeza da perda de um amor, mas não a tristeza da transformação da sua vida estável e sedentária para a vida de errante pela paisagem belíssima, plástica e infinita dos Estados Unidos.
Da mesma forma, nenhuma das restantes personagens (nómadas reais) nos mostram na sua expressão corporal ou verbal qualquer lamento pela vida que fazem em viagem. Todos os nómadas que nos são apresentados fizeram as pazes com os seus demónios através da estabilização pela impermanência. A fé destes nómadas não é a de um cristão que vive na dependência de um futuro melhor, mas uma fé no processo que é a viagem, a comunhão com a mudança e com a morte, como a de um budista. Está para se saber se isto é entendido pela realizadora. Por outro lado, a imagem é pouco americana para uma história que o é em abundância: parece ligeiramente desfocada, de cor desmaiada e indiferente aos contrastes de luz e sombra que o Sol do Midwest oferece ao amarelo do chão e à silhueta dos cactos. Onde está a felicidade de um nómada? Onde está a excitação do viajante que se recusa a assentar? Embora seja clara a precariedade que representa viver numa carrinha ao longo do deserto, de costa a costa, pelos extensíssimos Estados Unidos da América, “sobreviver” não é um verbo que faça justiça àquilo que os nómadas de Nomadland transmitem. Não há nada a ser moralizado porque o que há são pessoas que, dentro das suas condições, tomaram um rumo em consciência. Nada há de sobrevivência aqui, mas de vida, apenas.
Desde fotógrafos como William Egglestone e Stephen Shore, a filmes como Thelma and Louise, Easy Rider ou Paris, Texas, a América é um imenso edifício de cores berrantes, de euforia, de Kodachrome e de leve mas permanente melancolia. As cores “explodidas”, os contrastes e a tristeza que se compadece com um hambúrguer, uns whiskys e uma viagem até algures onde haja uma cama mais confortável e uma companhia casual, são a sinfonia americana por excelência: um blues negro tocado por uma big band branca.
Tudo está sempre a mudar porque tudo está vivo, especialmente quando se é nómada. O mundo é enorme e as possibilidades infinitas. Nomadland pode ficar guardado no arquivo de Chloe Zhao para voltar, dentro de uns anos, com mais resolução, entendimento e robustez, sem que, com isto, se neguem as precariedades, a pobreza e a tristeza da perda. Se há coisa que a América nos ensinou é que sentimentos contrastantes podem viver juntos numa viagem que é isso mesmo: uma viagem. Para mim, tal como para Fern e para todos os que sonham com o devorar de quilómetros, uma viagem nunca será só uma viagem.
Catarina Tello de Castro
Licenciada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Católica Portuguesa. Integra o grupo PRAXIS do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e foi fundadora e coordenadora do Núcleo de Estudos Políticos da Universidade de Lisboa. Participou como oradora ou moderadora em eventos de Filosofia em Portugal, Itália, Irlanda e Brasil. Para além dos seus interesses académicos na área da Filosofia, dedica o seu tempo à ilustração e ao cinema.