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“No one really thinks about it”. Ninguém pensa que já ninguém se desvia dos miúdos na rua. Eles já não estão lá. Eles andavam por lá, nos passeios, nos jardins, em cada canto e em cada esquina, de cócoras e de mãos sujas de terra, a estender palmo e meio entre os três buracos do jogo do berlinde, ou a rodar piões de madeira e cordão nos círculos desenhados com a biqueira do sapato, ou a propulsionar à força de piparotes do dedo os carrinhos matchbox em autódromos traçados a giz. Jogos de competições e de corridas, sim. Mas acabavam com um abraço, um sorriso e um “até amanhã, à mesma hora, no quintal das traseiras do prédio da minha avó”. Laços de aço. Mas desapareceram, esses miúdos, esses laços. Invadidos, a invasão tecnológica. Hoje andam pelas mesmas ruas, pelos mesmos passeios, pelos mesmos jardins. Mas, individuais, solitários, estupidificados. Sem tirar os olhos do screen do smartphone a jogar pokemon go, aos encontrões uns aos outros. Estúpidos. Caem ao rio ou esbarram no poste. Estúpidos. Hoje estão enterrados nos sofás, lado a lado. Mas não se olham nem se falam. Estúpidos. Capturados por jogos de grafismos que são tão agressores quão agressivos, têm que explodir coisas e pessoas, têm que conquistar, têm que matar. Encarcerados em goggles 3d de tecnologia virtual reality enfiados na cabeça, que os isolam do que e de quem está ao seu redor, com armas destruidoras que, efectivamente, acreditam empunhar. Matar, explodir, e outros verbos e acções que tais. Palavras na boca de miúdos tornadas corriqueiras, substitutas do vocabulário dos outros, daqueles que, antes, com o abafador, se ficavam por abafar o guelas do amigo para a vida que devolviam no dia seguinte. E a língua? E a sintaxe? E a caligrafia? Ninguém pensa na violação constante ao património da língua, da gramática, e da caligrafia. Elas estavam lá, nas cartas escritas à mão e nos postais de viagem com imagens turísticas deitadas no marco do correio do bairro ou do destino visitado, nas agendas a substituir e renovar ano após ano, nos diários onde se deitavam as confissões mais pessoais e sonhadoras. Gravadas por palavras e letras que honravam o património da palavra escrita e falada. Desapareceram, também derrotados. As cartas, os postais, os diários. A língua, a caligrafia. E as emoções e os sentimentos que continham. Vencidos, ultrapassados, substituídos pelo “teclar” ensurdecedor dos touch screen digitalmente silenciosos em sms’s, em whatsapp’s, em ficheiros do office enviados por e-mail, pela versão 8.36 ou outra qualquer do software que é necessário actualizar no laptop e no smartphone a cada três dias porque já foi suplantada por mais um update quando ainda mal respirava. O património da língua aniquilado por espécies de textos. Por degenerações da língua, onde há mais emojis, estrangeirismos nacionalizados e abreviaturas indecifráveis de um vocabulário imperceptível composto por coisas, coisas de três consoantes e nenhuma vogal, do que reais palavras e real comunicação. E as reuniões, os grupos de trabalho, que começavam e terminavam com um aperto de mão trocado entre olhares frontais e pessoais, onde cada participante trabalhava não sem também partilhar o que é enquanto pessoa? Esses, coitados, destronados pelas conference-calls entaladas entre as 11.15 e as 11.25 e uma agenda de pontos engolida em sequência, que não deixa espaço para nada de humano além dela mesma nesses minutos ditatoriais. E a Inteligência Artificial? Fria, digital, feita de cabos e conectores de liga leve de compósitos de carbono e outros elementos da tabela periódica, de placas de hardware, de braços robóticos, de software e de processadores com memória RAM de milhões e milhões, que varrem para a prateleira dos obsoletos pessoas que têm carne em cima dos ossos, pele que transpira, olhos que choram e bocas que riem. E?... E?...
É a trans-humanização. A transformação das condições fundamentais que nos distingue como humanos através da tecnologia. É a desumanização. A ditadura da tecnologia sobre o humanismo. A ausência de qualquer ligação social, cultural, emocional e biológica para a qual, aos olhos de alguns, porventura de muitos, se caminha conscientemente. Ou, diríamos, se caminha, perigosamente, inconscientemente. Reflexões e conceitos do já desaparecido filósofo, escritor e professor de futurologia Fereidoun Esfandiary, naturalizado americano e de raízes iranianas, cujo corpo se encontra actualmente crio-preservado, também conhecido por FM-2030. Nome de série, como um código de barras ou algo semelhante, adoptado pelo próprio convictamente para realçar a sua causa trans-humanista. Um nostálgico saudoso de um futuro que está ainda por chegar. Um pensador deambulante nos terrenos das possibilidades para a raça humana uma vez transposta tecnologicamente a sua forma orgânica e biológica para um qualquer outro formato. Um defensor de que, na década de 2030, por via da extinção da diversidade das raças, das culturas, das identidades, seremos todos iguais ao mesmo, iguais a todos. Um defensor de que, por via do progresso tecnológico, viveremos como imortais, para sempre libertados das nossas restrições biológicas. Um opositor da diversidade humana e da sua natureza inerente biológica e, por consequência, diversa, um combatente dos diferentes colectivos e sociedades humanas que se distinguem pelas suas raças, pelas suas heranças culturais, pelas suas crenças religiosas, pelos seus hábitos sociais, pelas suas identidades nacionais e históricas, e pelas limitações biológicas inerentes à sua condição humana.
“Post Plague”, lançado em 17 de Junho pela canadiana Telephone Explosion e no resto do mercado pela Felte Records, o mais recente álbum do trio Odonis Odonis originário de Toronto, liderado por Constantin Tzenos, a quem se juntam Jarod Gibson e Denholm Whale, nasce inspirado no pensamento trans-humanista de FM-2030.
Mas, em oposição ao culto da ficção científica que, muitas vezes tomando a pele de mero entretenimento cinematográfico, em vídeo-jogos, ou em outros registos, e vai, sub-repticiamente, gradualmente, entranhando e banalizando a des-humanização promovida pela inteligência artificial, pela realidade virtual, pela invenção científica que fecha os olhos à ética, “Post Plague” propõe-se ir mais além. Odonis Odonis expõem e exploram, de forma conceptual, o desenvolvimento tecnológico desenfreado e não-regulado, e os temíveis lugares para onde nos pode levar e que podem não compensar as vantagens que essa evolução possa trazer. A outra face da moeda. Já nos entra pelos olhos dentro, e pode vir a ser paranoicamente estarrecedora. Numa era actual de constantes e avassaladores conflitos, colisões, divergências de uma realidade, que parecia virtual há uns segundos atrás, se aproxima vertiginosamente de dias que nos são ainda desconhecidos ou que conhecemos em atraso face a ela, OO perguntam-se o que significará ser humano uma vez percorridos os vários caminhos e atingidos os vários desfechos hipotéticos que se afiguram em 2030, de hoje a cem anos, ou nos próximos cinco minutos, se o património humano e ético não for respeitado e defendido. “Post Plague” é um alerta para a progressiva amputação da condição e da natureza humanas que nos faz perder algo fundamental, profundo e irrecuperável, é um aviso de que é necessário parar para pensar, é um apelo à resiliência que impeça o apocalipse antropológico. É urgente tomar medidas.
A história é ampla e conduz a uma reflexão que tem tanto de catastrófico quanto de maravilhoso. O primeiro capítulo é “Vanta Black”; não como a primeira faixa da tacklist, mas a primeira a ser disponibilizada pela banda como apresentação do álbum. “Let’s get ready / For modern life / Let me take a minute / Take some time and think about it”. Vantablack é um ladrão de luz. É uma substância composta por microscópicos tubos de carbono alinhados verticalmente lado a lado. A luz incide e é reflectida de tubo em tubo no interior desta floresta artificial e diabólica, o maior grau negro conhecido. Mas fica aprisionada sem ser devolvida ao olho humano. É a escuridão.
”That’s How It Goes” é uma das primeiras faixas a ter sido composta para o álbum e segue o mesmo caminho contra-cultura e denunciador da vitória da tecnologia sobre o que é natural e humano com o decurso do tempo: “… / Crawling / Further down that hole”. O niilismo positivo de OO, que critica e denuncia, mas que quer construir. Dedo acusador em riste e apontado à ausência de emoções e sentimentos, quando o que vale é a conquista material e a conquista da imortalidade: “… / You want control / When it all comes down / Your house gets bigger / Your heart grows cold / Your world gets sicker / That’s how it goes.” Há algo de aceitação do futuro, mas não à custa de qualquer preço.
“Needs” não dá tréguas. “They say go to the throat / …/ Design / Complete / Evolve / Repeat / I´ve got my needs”. A destruição do sentido de comunidade. Passo esmagador após passo esmagador, é fácil pisar os outros à distância e por detrás do escudo de um écran de computador, o egoísmo e o individualismo da ânsia de controlo, de poder e de sucesso.
“Live a life / Of solitude / … / Lie / To my face / It’s time / I walk away / From your game”. Em “Game” vislumbra as relações pessoais, ou melhor, a solidão e o isolamento nos tempos das relações pessoais on-line, das relações virtuais em que não se olha, não se toca, não se ouve e não se cheira, só se clicka. Mas traz esperança no espírito humano, que consegue ainda tomar consciência de que é altura de abandonar esse jogo.
Há ainda a desilusão. A desilusão que apenas existe quando há expectativas. O sentimento de traição das expectativas criadas quanto ao futuro faz com que, nesse momento em que se toma consciência da traição, esse future deixe de existir. “From now on I can’t afford it / From now on I can’t ignore it / Betray / Betrayed / … / The Future / No Future”. “Betrayal”, sobre aqueles que, supostamente, mobilizados por convicções comunitárias, deveriam guiar a sociedade, mas traem a sua palavra e o seu compromisso em favor das suas ambições pessoais, substituindo a esperança e expectativa das promessas anunciadas aos outros de um futuro bom por nada, pelo vazio, pelo caos.
Não é por acaso que “Lust” encerra o álbum. “I just want some lust / To knock me off of my feet / Till your heart beat stops / I wanna feel it beat”. Consumado o desastre do domínio tecnológico que aniquila qualquer vestígio de sentimento e emoção humanos num futuro, felizmente, ainda hipotético, é o resgate da humanidade no lamento da sua perda, desejando algo emocional e carnal – e há humanidade nesse lamento. Resta saber quando será tarde demais.
Paradoxalmente, o território musical de “Post Plague” é todo ele tecnologia. Sem vénias diminuidoras da sua personalidade e individualidade musical, o primeiro contacto com “Post Plague” invoca-nos, por momentos, referências e inspirações em Nine Inch Nails ou, mais distantes, Depeche Mode ou New Order, entre outros. Curiosamente, estes últimos contemporâneos de um tempo em que, apesar da tecnologia aplicada à sua música, podíamos encontrar miúdos na rua a brincar ao berlinde e ao pião.
“Post Plague” é uma marreta de decibéis implacável e bombardeadora nos ouvidos. Uma combinação frenética e desvairada de elementos sonoros que surgem, que se escondem, que se transformam, imprevisível a cada momento. São dois anos de reflexão, exploração e descoberta de fórmulas musicais. São dois anos de cuidada composição e produção, atenta aos detalhes que transformam “Post Plague” num álbum, ainda que difícil, relevante, consistente e personalizado.
Como cientistas alternativos e alucinados num laboratório experimental que, doentiamente meticulosos, calculam e inventam novos compostos, OO pegam em tubos de ensaio e misturam um pouco de muito. Num revivalismo futurista dos anos ’80 de identidade sombria e gótica, não poupam no peso rítmico e robótico dos teclados e do baixo sintetizados do synth-pop e do new-wave, carregam nas percussões e nos beats pesados e enérgicos do electro e do techno, juntam umas gotas compactas e abstractas de sons e efeitos experimentais do noise e do industrial e outras das guitarras ferozes e ruidosas do post-punk e do garage-rock. Sobre os arranjos musicais e o estado emocional caótico, convicto de que o desastre está ao virar da esquina, Tzenos não hesita, faz destacar a sua voz e coloca os seus versos minimalistas, quase lacónicos, que, nessa síntese de poucas palavras que muito dizem, na verdade realçam a gravidade dos conceitos e as suas implicações e as suas consequências. Tudo junto, misturado e aquecido até ferver em temperatura ácida e escaldante, sem deixar de lado a natureza melódica, da bancada química saem dez faixas intensas, poderosas e saturadas de música científica que rebentam o palco e o cenário onde o status-quo tecnológico avança, e deixam um rasto profético, demolidor em horror e catástrofe, de que é necessário tomar consciência e evitar.
“Post Plague” é a afirmação de ideias políticas e sociais cépticas face à realidade, é o escoamento emocional de ansiedades, de frustrações e de receios, numa era em que o debate de ideias e os valores emocionais pode não ser suficiente para derrubar a ditadura tecnológica. Não ambiciona nem se arroga fornecer respostas mas, esperançado e positivo, convoca à responsabilidade que anda a par da liberdade.
Não menos paradoxalmente, os três membros de OO são confessadamente atraídos por todo o fenómeno tecnológico e científico, real ou ficcionado. “Fearless”, a faixa de abertura do álbum, ilustra o momento singular, anunciado e defendido por alguns isentos de dúvidas e de medos, em que a perfeição tecnológica da inteligência artificial se sobreponha à consciência e à biologia humanas: “Conscious / Barely conscious / Fully conscious / … / Painless / Weightless / Thankless / Fearless”. O gatilho para todo o álbum está nas palavras de FM-2030: "So long as we are confined to these biological makeups, there will always be inequality, human tragedy, and human suffering.". Mas é precisamente nessa busca pela perfeição da qual o sofrimento e a tragédia foram expurgados que pode residir a extinção da própria condição humana, que deve incluir essas imperfeições e tantas outras – eis a questão provocadora que OO levantam ao longo do resto do álbum.
No seu todo, o álbum varia em contrastes de tonalidade, de ritmo e de atmosfera musical. Assume a sua marca principal na maior parte das faixas, a severidade impiedosa e agressiva, como que a imposição de uma casca áspera e espessa necessária para defesa em tempos agrestes, ainda que sem elevar o noise ruidoso a exageros explosivos; quando à beira da erupção, OO sabem quando recuar e equilibrar as coisas com alguma suavidade e serenidade: um contraste dual que se alimenta e se realça a si mesmo.
Contrastes a que, aliás, OO não são estranhos: “Post Plague” representa um significativo desvio face aos trabalhos anteriores. Em 2010, Tzenos mergulha no punk-rock alternativo dos anos ’80 e, multi-instrumentalista, grava uma série de demos ao longo de alguns meses. Juntam-se Jarod Gibson na bateria e Denholm Whale no baixo. A estreia surge em Novembro de 2011 com o álbum “Hollandaze” a que se segue o EP “Better” em Abril de 2013: um noise-rock agressivo e industrial que usa e abusa dos efeitos dos pedais, espremendo das guitarras, do baixo e da bateria todo o ruído que conseguiam; deu para meter o pé na porta desse mercado. Revelando a sua inclinação para não seguir trajectos lineares, um ano mais tarde surge o segundo LP “Hard Boiled Soft Boiled” – como o nome indica, duas metades distintas; a primeira ainda em linha com a sonoridade anterior, enquanto as arestas sonoras da segunda se suavizam com base num post-punk menos abrasivo.
Mas a reinvenção é radical em “Post Plague”, e basta uma visita aos álbuns anteriores para a constatar evidente. Dir-se-ia uma manipulação genética voluntária. Programação, sintetizadores, samplers dominam e fazem as guitarras praticamente desaparecer, só se lhes notando a presença em acordes e riffs pré-gravados e transformados em samples filtrados muito mais discretos; a bateria é substituída por caixas de ritmos electrónicas – toda a ideia é contenção, refinamento e simplificação sustentados na electrónica, ainda que o nível de decibéis continue bem elevado. Mantendo a densidade que os caracteriza mas a quem trocam a identidade sonora, “Post Plague” é musicalmente mais acessível que os seus antecessores. OO assumem conscientes a provável desilusão de alguns fãs do seu som anterior, mas não pretendem abafar o seu impulso e intuição criativos e evolutivos em função das expectativas dos outros, e ainda se arriscam a ver novos seguidores juntar-se às suas fileiras.
Globalmente, “Post Plague” é agradavelmente desconfortável. Um álbum provocador e desorientador, que não encanta musicalmente no primeiro contacto, e dificilmente encanta nos contactos posteriores, que exige. Mas nem todo o valor reside nesse encanto que aflora à superfície das coisas. Marca uma presença longe da banalidade a que não é possível permanecer indiferente e traz recompensas se lhe dado tempo e espaço. As referências musicais dos anos ’80 são trazidas para os dias de hoje pelo conjunto das dez faixas que afirmam singularidade, diversidade e exalam poder e energia. E vale pela mensagem, a inquietude e vulnerabilidade humanas face aos desafios a que se expõe, a denúncia e consciência dos riscos inerentes. E à música, enquanto forma de expressão artística, cabe também a mensagem e o conteúdo. Para onde “Post Plague” levará Odonis Odonis? É difícil antever, mas seguiremos com interesse os resultados desta e das suas futuras mutações.
Tracklist Post Plague:
1. Fearless
2. Needs
3. That’s How It Goes
4. Nervous
5. BLTZ
6. Pencils
7. Game
8. Vanta Black
9. Betrayal
10. Lust