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ARTES PERFORMATIVAS


LODO

ANDRÉ FONTES

2021-04-30



 

® Inês Condeço

 

Antes do dilúvio, a Almirante Reis estava a tornar-se importante. Primeiramente, por causa do preço dos quartos: do Martim Moniz a Arroios, quartos minúsculos a trezentos euros atraiam licenciados prestes a estrearem-se nos maus empregos. Em segundo lugar, os bares. O Desterro, a Crew Assan, a Casa Independente e o Anjos 70, conjuntamente com uma série de associações recreativas, casas de kebabs e residências estudantis, impunham-se como uma resposta exótica à folia cansada do Bairro e do Cais. Espaços onde o indie, o activismo de esquerda e a electrónica experimental reuniam uma juventude suja e culta; uma juventude que transpirava pelos fins de semana em orgias de cerveja barata e quetamina. E com isso a Avenida seduziu, como seria de esperar, a medianíssima riqueza dos assalariados com mais de quarenta; famintos por atear a noite com as chamas da segunda juventude (tão necessária após o primeiro divórcio). Deste ébrio e suado encontro de circunstâncias chegou-nos o Lodo.

  


Lodo – que já foi Caronte – é um ente literário. Músico, por engenho do acaso, apresenta-nos a sua voz e texto em dois EPs no Bandcamp – Monróvia e Pedro e o Lodo –; participando, também, em diversas colaborações soltas, entre essas o EP de originais do produtor portuense ELÓI: Orgânico Urbano. O que Lodo faz e é não se presta à definição segura. Mas o nosso primeiro contacto com ele – que, como todos os primeiros contactos, deverá ser superficial – poderá invocar tácitas semelhanças com um rapper. Mas será mesmo um rapper?

A: És mesmo um rapper?

L: Eu tenho para mim que as pessoas vão sempre dizer aquilo que quiserem sobre o assunto. Mas eu próprio não me definiria como tal. Seria mais justo definir-me como escritor; e sobretudo seria mais justo ter o à-vontade para definir-me como eu quiser na altura em que desenvolvo um projecto. A nível musical, tenho a noção de que muitas das coisas que eu tenho feito entram dentro desse estilo, do rap; até porque trabalho com productores que fazem música electrónica de uma forma geral, e que em particular estão mais associados a fazer beats. Mas acho que seria um bocadinho limitador chamar-me de rapper.

 


Lodo provém de um colectivo de artistas marginais (a maioria deles músicos) que se determina pela estrita ética da originalidade: os Colónia Calúnia. Impulsionada pelo produtor VULTO. (ou Pedro, o Mau), os Colónia têm vindo a associar músicos independentes em torno de sons pouco ortodoxos; não colhendo beats do R&B, mas do rock progressivo e do krautrock. As origens dos Colónia são pouco óbvias. Trata-se, a fim de contas, de um colectivo de artistas sem biografia; mas podemos situar em 2016 o princípio da coisa. Foi com um EP chamado Café, produzido por VULTO. e cantado por L-ALI, que o colectivo se estreou. Denunciando um rompimento com o que caracteristicamente se chama hip-hop tuga, Café soa-nos a uma caminhada trôpega até à instalação de um amigo nos Anjos; o que ironicamente define bastante bem aquela que parece ser a direcção estética do colectivo: um ganzado vai-e-vem entre as ruas e as galerias de arte. Enfim, defina-os ou não, o resultado foi sem dúvida fresco, e principiou a contínua associação de VULTO. a outros nomes do subterrâneo: Jota, Secta, Tilt, Lodo…

 

 

O encontro de VULTO. com Lodo foi prosaico. Trabalhavam no mesmo bar. Ambos talentosos e cultos e precipitados na fatalística condição de funcionário à qual todo artista português deve habituar-se. Imagino que entre os vinhos que serviram tenham trocado ideias; e imagino que Lodo tenha lido textos dos quais VULTO. gostou imenso; porque em 2017, sob o nome de Caronte, Lodo estreou-se como associado de VULTO. através da faixa «Miguel».

 

 

Durante o sismo,
ainda cismo,
desfeito em cataclismo,
permite-me a pergunta
se não for autismo,
explica:
eras o anti-depressivo
do meu gene recessivo
mas falhaste em viciar.
Filme de domingo à tarde,

foste tempo para passar.
Só tempo para passar.

 

«Miguel» apresenta-nos Caronte num retumbar depressivo e arrastado. A letra convida-nos a considerar tristemente a osmose conjugal, demarcando não só a atitude narrativa de Caronte, como também o seu pessimismo. Caronte, o Barqueiro, foi a primeira pele de Lodo; inspirado na figura greco-clássica do mesmo nome. Transportando na sua barca as almas dos defuntos, sorvendo-lhes as histórias – ou os vícios, mais precisamente – sem quaisquer juízos morais, Caronte navega do ponto A ao ponto B, rotineiramente.

A: Caronte é um pessimista, não é?
L: Sim, é um pessimista. Acho que não há grande volta a dar; mesmo do ponto de vista de construção da personagem. Imagina-te no cenário em que transportas realmente as almas e no qual há um desinteresse… Há um desinteresse porque há um trabalho a fazer. E há também uma tentativa por parte pessoas de obterem explicações: «Para onde é que me levas? Para onde é que me levas?»; «Olha, passou-se isto: não tenho culpa». Portanto, a imaginação leva-me por aí… É uma tentativa de justificação do que as pessoas fizeram, apanhada pelo ouvido desinteressado de quem está só ali a fazer um trabalho, e que se calhar vai ouvindo e incorporando as suas próprias justificações nessas histórias alheias. Mas ele próprio, o Caronte, mantém-se como um narrador ausente.

E sob um característico pessimismo, Caronte assinou um EP: Monróvia. Colaboração com VULTO., este primeiro EP foi a demonstração de que o hip-hop pode ainda renovar-se em atitudes inesperadas (podemos considerar que o hip-hop americano se tem renovado nos últimos anos; mas não considero inesperada a fusão do trap com umas politiquices queixosas). O som de Monróvia é fumegado e negro, edificando paisagens para histórias de tom confessional. VULTO. adapta-se ao propósito de nos fazer imaginar Caronte remando para o Hades, envolto numa escuridão, escutando com desinteresse glacial as confissões dos desgraçados (mas identificando-se com elas, talvez).

 

 

Escrevam na minha lápide
que eu morri de crise apática.
Amarelo na tez,
emotividade hepática


A: Como escritor, sobre o que é que te interessa falar?
L: Sobre a ansiedade, sobre o amor… Tudo o que as minhas vivências permitem abordar. Gosto de temas com que toda a gente se pode identificar. De um ponto de vista geracional, a ansiedade é um deles: a procura de evolução constante, a ideia de que somos um produto incompleto… Obviamente, o ego e as considerações do ego são um tema muito bom de abordar, porque não dependemos de mais ninguém para construir uma opinião sobre nós. A nossa opinião é influenciada pelos outros, mas nunca é uma condição essencial para nos podermos avaliar. Portanto, tudo o que envolva pensar em mim próprio sem interferência alheia é sempre um bom tema.
A: Voltando ao pessimismo. Demasiadas vezes, vi pessimistas a tratar a visão negra das coisas como forma de sabedoria. Não vi isso em Caronte. Porquê?
L: O pessimismo como forma de sabedoria… Identifico-me, mas fujo disso. Tenho muito poucas certezas, e não sei muito bem para onde vou. E acho que isso é uma síndrome comum a toda a nossa geração.
A: Sim… Até porque há uma grande ansiedade por identidade.
L: Exactamente. E a ansiedade é um tema transversal no meu trabalho.

Como artista de palco, Caronte estrou-se no Damas. Conta-se que foi uma belíssima noite de estreia. Tendo sido apresentado por VULTO., após os sets dos mais antigos membros dos Colónia, Caronte cantou «Miguel» e fundiu-se com o eflúvio de suor e cerveja como se sempre tivesse feito parte dele. Nessa noite, não estive presente; mas lembro-me bastante bem do meu primeiro contacto com Caronte. Foi no Anjos 70. Nas noites de deambulação, o Anjos 70 nunca era o princípio ou o fim da linha. Demasiado cheio ou vazio: é assim que me lembro do sítio. Na noite de Caronte, não estava nem cheio nem vazio. E, surpreendentemente, não cheirava sequer a suor. O público, maioritariamente formado por hipsters cheirosos que admiram os Capitão Fausto, torneava Caronte e VULTO. com tímidos tombos de cabeça. E enquanto Caronte se arrastava pelas sombrias melopeias, VULTO. gritava: «HIP-HOP TUGA!». Um amigo que levei comigo não ficou especialmente impressionado com os gritos de VULTO., e encontrou neles um cinismo esteticamente inapropriado; um cinismo que – como quase todos os cinismos – não acrescenta nada e ainda tira alguma coisa. Concordo com esse meu amigo; os gritos de VULTO. foram anticlimáticos. Mas denunciaram uma atitude defensiva que me interessou, porque me pareceu em parte justificada: aquele não era o público de Caronte, e a acústica do Anjos 70 não fazia jus à sua voz. Do cinismo de VULTO. surdia o reconhecimento de que ele e Caronte estavam deslocados, ali dispostos no centro de uma sala de jantar vintage como entretenimento para encontros de Tinder (contra o ego de VULTO., os fãs dos Capitão Fausto pareciam de facto muito entretidos por aquele hip-hop tuga tão mais intelectual do que o de Sam the Kid; e, pondo-me no lugar deles, Caronte parecia quase um Halloween branco que trocava a Póvoa de Santo Adrião pela Almirante Reis). É verdade que o concerto não foi bom, mas foi sem dúvida interessante; tendo-me apresentado a Caronte e à atitude refrescante dos Colónia.

 

 

 

A: Tu emerges dos Colónia Calúnia, colectivo impulsionado pelo VULTO.. Eu sei que o colectivo dispensa etiquetas, mas como reúne artistas com uma nova atitude estética tão demarcada, será injusto chamar-lhe uma «nova cena musical»?
L: É uma pergunta complicada… Mas pronto, falando por mim, diria que o colectivo é o lugar onde podemos estar confortáveis para sermos o mais experimentais possível, sem grandes exigências por parte de ninguém.
A: Portanto, o experimentalismo é um valor entre os músicos associados?
L: Penso que sim. É a tentativa de todos fazerem o que lhes apetece fazer sem outro objectivo que não o de fazer algo novo e desafiante.
A: Parece que um conjunto de artistas construiu um país emancipado, e que convidam o público a visitá-lo sem irem ao encontro dele.
L: Acho que isso é acertado.

Experimentalismo, cooperativismo e uma aversão às definições que encerram músicos em estilos: os ethos criativos dos Colónia parecem-nos fixos, e paradoxalmente fixos. Mas o mesmo terá acontecido com o punk, com o grunge, e com todos as respostas do curso dialético da Arte – na recusa em serem isto ou aquilo, definiram-se. Nesse sentido, a atitude dos Colónia pode bem definir-se como antítese da procura por notoriedade. Contrariamente às centenas de bandas do indie, os Colónia não ambicionam noites no Musicbox, nem lives no Instagram; o desejo deles é trabalhar, somente trabalhar, e com isso alcançar uma qualquer beatitude criativa que poderá, ou não, ser reconhecida. Respeito-os imenso por isso; pois poucas coisas deveriam entristecer-nos tanto como a indigna autopromoção que hoje obriga os artistas a pensarem como marketeers. E, curiosamente, tivesse Caronte pensado como um marketeer, teria feito os possíveis para se promover através da colaboração com ELÓI. Orgânico Urbano, de 2020, serve-nos para destacar a versatilidade de Caronte em plataformas sónicas mais tradicionais – mais próximas do blues, do jazz, do funk –, fazendo-se soar exactamente a um rapper. Tenhamos em conta faixas como «Siddhartha» ou «Terror, e se a nossa imaginação nos trouxer Caronte ao palco do Musicbox, não nos consideremos, por isso, irrealistas (e longe de mim dizer com isto que ELÓI é pop; também ele está associado ao subterrâneo de VULTO., mas parece ter ideias próprias no que respeita às paisagens dos beats).

 

 

Foi em 2021 que Caronte virou Lodo. Se considerássemos a mudança de personagem como recusa em perseguir as sonoridades confortáveis de Orgânico Urbano, Lodo justificar-se-ia por uma fidelidade ao underground. E isso seria de facto uma atitude poética, uma atitude que poderíamos até chamar de «romântica»; mas as origens de Lodo foram, no fundo, mais orgânicas, mais instintivas – foram exigidas pela criação, não pelo criador.

L: Então, eu percebo que a dada altura estou a escrever coisas diferentes. E que estou também à procura de coisas diferentes. Ou seja, é importantíssimo para mim sentir que estou a progredir a nível lírico. Começo a ler outras coisas, a ouvir música nova, e apercebo-me que é muito espontâneo, o processo de atribuição de nome a essa personagem. É fruto de me ter apercebido que, à medida que fui fazendo coisas novas, já não correspondia à crueza dos primeiros trabalhos, àquele pessimismo tão exacerbado. Inclusivamente, se é que se pode dizer, à verdura dos primeiros trabalhos. Há coisas que eu ainda considero muito boas hoje, obviamente. Mas acho que no Lodo as coisas já representam uma fase artística diferente. Então, rebaptizei-me para ter em consideração essa evolução.

 

 

 

No EP Pedro e o Lodo, onde as sonoridades de VULTO. surgem assinadas pelo nome «Pedro, o Mau», o pessimismo assume-se como realidade de segundo plano. Lodo é mais leve do que Caronte. Na primeira faixa, «Ditas Cujas», há um narrador que considera a precariedade romântica sob a óptica da responsabilidade pessoal – «Tenho o que mereço, pois tenho/ Uma estranha» –; e o som, traduzindo o tom emocional das palavras, não se faz pesar; antes pelo contrário: é colorido, melódico, e, apesar de melancólico, reproduz uma terna aceitação do sofrimento como condição necessária à felicidade humana. Digamos que, de Caronte a Lodo, está como que uma transição de Schopenhauer a Nietzsche. Tanto no som como nas letras, a mudança de atitude e cenário sorri-nos. O que há de mau na vida deixa de nos soar a tristeza; e se Caronte nos levava às deambulações nocturnas por uma Almirante Reis ébria, Lodo convida-nos às auroras sóbrias nos miradouros desta Lisboa vazia, despida do fausto turístico e hedonista que a destacou na passada década.

A entrevista fez-me compreender perfeitamente a transição de Caronte para Lodo. Mas não poderia findá-la sem coçar uma última comichão: porquê a insistência no valor do novo? A direcção de Caronte parecia-me ascendente; mesmo que significasse uma certa repetitividade, não é óbvio, para mim, o porquê de isso ter de ser mau. É certo que a nossa sensibilidade artística dos últimos cem anos tem sobreposto a novidade a todos os outros valores; e com isso, parece-me, tem-se ganho tanto quanto se tem perdido. Se em tempos a busca pela novidade foi deliberada, hoje parece-me francamente convencional. E daí a pergunta:

A: Porquê uma insistência no valor do novo?
L: No meu trabalho ou no dos outros?
A: No teu.
L: Bem… Porque a premissa de ser um artista é ter algo a acrescentar.

A resposta satisfez-me, e eu calei-me.

 




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