DAPHNE ORAM: PIONEIRA ELECTRÓNICA E INVENTORA DO FUTURO
RUI MIGUEL ABREU
2011-05-06
«We also have soundhouses», escreveu, em New Atlantis (1624), o filósofo, ensaísta e cientista Francis Bacon. «We also have soundhouses, where we where we practice and demonstrate all sounds and their generation. We have harmonies which you have not, of quarter sounds and lesser slides of sounds. Divers instruments of music likewise to you unknown, some sweeter than any you have; together with bells and rings that are dainty and sweet. We represent small sounds as great and deep; likewise divers trembling and warblings of sounds, which in their original are entire. We represent and imitate all articulate sounds and letters, and the voices of beasts and birds. We have certain helps which set to the ear to do further the hearing greatly. We have also divers strange and artificial echoes, reflecting the voice many times, and as if it were tossing it; and some that give back the voice louder than it came, some shriller and some deeper; yea, some rendering the voice, differing in the letters or articulate sound from that they receive. We have also means to convey sounds in tubes and pipe». Esta passagem é extraordinária na forma como antecipa o futuro e como descreve práticas que estavam ainda a séculos de serem inventadas. Não é de estranhar, por isso mesmo, que o Radiophonic Workshop a tenha adoptado como lema, quando começou a laborar em finais dos anos 50, no complexo da BBC em Londres.
O Radiophonic Workshop era um colectivo de criadores, músicos, engenheiros e visionários que nos alvores da televisão tiveram a ousadia de, tal como Sir Francis Bacon, imaginar o futuro, pegando na música concreta, despindo-a da sua dimensão mais académica e procurando sintonizar a imaginação com a realidade. Acima, encontram o link para a primeira parte de um extraordinário documentário realizado sobre a BBC a propósito do Radiophonic Workshop. Aí dá-se conta das inventivas práticas que de forma muito assertiva introduziram o futuro em Inglaterra, habituando gerações a sonoridades exoticamente futuristas através da manipulação de sons concretos em fita magnética. No arranque desse colectivo marcou presença a fantástica Daphne Oram, uma de várias mulheres a emprestarem a sua visão ao Radiophonic Workshop: além de Oram, Delia Derbyshire e Maddalena Fagandini serão as mais notórias, mas pelos estúdios de criação musical experimental da BBC passaram igualmente Elizabeth Parker e Glynis Johns, embora mais tardiamente. Daphne começou por ser uma devota da fita magnética - «um dos dispositivos que o século XX oferece ao compositor é o gravador de fita, uma espantosa peça de tecnologia», escrevia Oram em An Individual Note of Music Sound and Electronics (Galliard, 1972) – mas o seu impulso criador obrigou-a a pensar mais longe, levando-a a pensar na criação de sons completamente novos por oposição à manipulação de sons pré-existentes captados em fita magnética.
No final do último ano, a label Young Americans transformou numa luxuosa edição em quadruplo vinil um anterior lançamento em CD da Paradigm Discs (datado de 2007). Oramics é um fabuloso documento da criatividade de Daphne Oram com 44 peças que oscilam entre os 11 segundos e os mais de 13 minutos, visões de um futuro carregado de novos sons, distantes da paleta oferecida pela natureza ou pela orquestra clássica. Esse foi o grande impulso do Radiophonic Workshop e de compositores como a própria Daphne Oram: a criação de novos universos sonoros. Em Oramics viaja-se entre o espaço e a realidade catódica da televisão, cria-se para publicidade (delicioso o jingle publicitário «Lego Builds It») e imaginam-se bandas sonoras para sonhos e pesadelos. Talvez por força da retrovisão explorada pela hauntologia da Ghost Box e da Mordant Music, a verdade é que esta música nunca soou tão fresca e tão presente.
Daphne Oram tem o seu próprio site (http://daphneoram.org/) onde é possível ler sobre a sua vida e ficar a par de iniciativas que celebram o seu espírito e a sua música. O incrível alcance da imaginação de Daphne Oram levou-a a pensar num instrumento de criação puramente electrónica, o complexo sistema Oramics que lhe permitia, literalmente, desenhar som em película de filme, desenhos esses transformados depois em ondas sonoras por um mecanismo criado com a ajuda de engenheiros electrónicos, quando a síntese era ainda um sonho algo distante. Em 1962, a Fundação Calouste Gulbenkian financiou as investigações de Daphne que terminou a sua máquina em 1965.
Como Moog, Buchla ou até Tesla antes deles, Daphne Oram procurou também ultrapassar o seu tempo e obrigar o futuro a tornar-se presente. A sua música era, assim mesmo, uma forma de obrigar o tempo a curvar-se a um desejo, a uma visão. Estes sons, estranhamente familiares, estão mais directamente ligados aos novos futuros imaginados por nomes como Shackleton, Ekoplekz, B roadcast, Focus Group ou até mesmo Portishead do que seria normal pensar-se. O futuro existe, de facto, mas foi necessário alguém ter que o inventar. Daphne Oram foi certamente uma das responsáveis.