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Em 1941, décadas antes do termo pop music ser assumido como actualmente é, nomenclatura umbrella de um género musical e raiz para a nomenclatura de inúmeros sub-géneros que dele derivam, Theodor Adorno, filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão com extensa obra produzida na primeira metade do século passado sobre estética e filosofia, publica o ensaio “On Popular Music”, aprofundado sob a temática “What Makes Popular Music Popular”. Adorno, um reconhecido pensador e ensaísta partilhando princípios e convicções com os movimentos artísticos modernos do início do século, integrante do colectivo designado por Escola de Frankfurt, dedica-se ao desenvolvimento de teorias críticas da sociedade ocidental moderna, tão orgulhosa de si mesma por ter evoluído para lá de civilizações primitivas e selvagens quão capaz ela própria de se implodir e desmoronar através de guerras mundiais, de nacionalismos e colonialismos, de consumismos massificados. Também reprovador da “indústria cultural”, termo que afirma como uma mera recauchutagem ou embuste da “cultura de massa” corruptora e manipuladora, que visa eliminar as potencialidades da liberdade crítica, da independência de pensamento e da livre consciência; a aniquilação desses valores sociais, vergados aos interesses das pessoas e das instituições opacas, comandantes do mundo, para quem os órgãos de comunicação são a comporta de descarga massificada de meras “utilidades” culturais, fabricadas distintas entre si na aparência mas feitas afinal de farinha proveniente do mesmo saco, cujo propósito único é adormecer, entorpecer, drogar as populações e, sob esse efeito, melhor as comandar.
A tese, a que vale a pena dedicar o olho e a cabeça, é densa e extensa, abrangendo, entre inúmeras formulações, comparações entre as designadas “música popular” e “música séria”, a personalidade divisível e copiável de uma, e como tal, de certa forma, abstracta, face à personalidade impartível e individual, e assim concreta, de outra. Não seguindo este caminho, ou tantos outros contidos no ensaio, há a caracterização da “música popular” feita por Adorno em torno de um seu cunho-chave fundamental e de um fenómeno basilar imposto pelo mercado e a ela associado em que talvez seja interessante pegar: a “standardização”.
Segundo Adorno, a “standardização” da estrutura global de cada música: a “standardização” das secções e dos compassos, a “standardização” do tom, a “standardização” do alcance oitava acima-oitava abaixo; enfim, matéria sem fim para musicólogos e para músicos profissionais que não nos arrogamos ser. E também a “standardização” subjugadora do mercado: os órgãos de comunicação que pegam numa música e a transformam num hit através da sua repetição incessante e massacrante, pretendendo atingir não apenas o sucesso comercial da música mas, efectivamente e a um nível mais profundo, fazer ceder e derrubar qualquer pretensão de diversidade por parte do público, impondo a mesma “música” vezes e vezes sem conta. E ainda a “standardização” temática ou lírica que, muitas vezes, anda em torno de nada, que se mantém à tona da simplicidade e da neutralidade conceptual. Em suma, não há desafios, não há complicações, não há estímulos, nada de realmente singular ou relevante. Um pacote pesado, apresentado sob uma forma pré-organizada e pré-formatada por outrem, deixado no colo do público e impedindo-o de sequer olhar em redor. A “standardização” que não deixa de, aqui e ali, conter uns pozinhos que captam a atenção. Mas nada por aí além, apenas a intenção de criar a ilusão da livre escolha, quando, na verdade, é uma mob-population desabituada de pensar, de criticar, de julgar, de crer e de se afirmar a que se apontam as baterias. Um rebanho sem voz, sem afirmação e sem expressão perante a sociedade, pronto a aceitar a autoridade e a ditadura do mercado, ou outra qualquer, mesmo quando esse lobo vem vestido com pele de cordeiro.
Sem beliscar o trabalho de Adorno, a pop music evoluiu entretanto em todos os seus descendentes, claro está; e neles há material para outras tantas teses sobre reais artistas específicos que andaram e andam por aí a fazer o oposto da “standardização” de Adorno. Isto no que a distinção e relevância musical diz respeito. Felizmente, e talvez devido a esse gatilho que os mantêm despertos, esses mesmos mantêm os olhos e a mente bem abertos e atentos ao mundo em que vivem, e não se coíbem de manifestar-se.
É aqui que entra o norte-americano Gonjasufi e o seu mais recente álbum “Callus”: tudo menos “standard”.
Logo a abrir, a faixa “Your Maker” não deixa espaço para dúvidas do que Gonjasufi tem para dizer: “Is anyone else tired / From working on a slave ship?”. Borrifando-se para dinheiro, fama, estatuto ou sucesso, e olhando de lado com desilusão para muitos artistas do hip-hop actual cujas letras, longe do activismo político e social da origem, se limitam a qualquer coisa estéril e fútil, ou seja lá o que for, como “Look at my car and my gold neckchain and my tattoos and my sneakers and my… and my… and how much more money I have than you” e essas cenas assim, “Callus” é uma panela escaldante de denúncias ferventes perante o vertiginoso descalabro social e cultural da América actual. E não só da América, acrescentamos. Sem serem nenhuma novidade, nunca são em demasia afirmar e reafirmar: a intolerância social, os distúrbios civis, as tensões racistas, a hipocrisia religiosa, a violação dos direitos, as falsas moralidades, o empobrecimento espiritual, o esclavagismo económico, a corrupção institucionalizada, o isolamento e individualismo sociais. Todos os frustrantes sentimentos de falta de esperança, de confiança e de segurança – a falta de futuro de uma sociedade doente em desmembramento – a que, para piorar, a decadência e a catástrofe da podridão da classe política não dão resposta. Nas suas palavras: “America needs to fucking hear.”
Como se não bastasse, e em linha com Adorno, a Gonjasufi basta assistir aos noticiários ou a muito do entretenimento – os porta-vozes, sargentos-praças dos reais comandantes do mundo – para se julgar perante um reality-show onde a verdade foi dissolvida na acidez do controlo interesseiro, e o ódio, a morte, o massacre e a miséria são cultivados, tornados tão vulgares no dia-a-dia, acabam por se enroupar de banalidade e normalidade na mente de um público que já não se choca e quer consumir sangue dos outros.
Mas há mais em “Callus”. Mantendo-se no extremo oposto da “standardização” lírica esvaziada da “música popular” de Adorno em que o conteúdo colectivo e comunitário do álbum já o coloca, há uma faceta pessoal e emocional. Mas não se esperem banalidades românticas nem luzes de esperanças ao fundo de um túnel escuro – Gonjasufi não anda pelas tabelas top20 de uma pop magazine ou algo assim. “Callus” não demora mais que uns segundos para deixar bem claro que nada nele é fácil. Mas, sem pretensões falsas e ocas de excentricidade pela excentricidade. Para um artista, será um daqueles discos que é necessário fazer, mais do que se pensa fazer – uma regurgitação emocional catártica, involuntária e inevitável, que escapa ao controlo do criador e, sem contemplações, se impõe perante ele próprio. Um daqueles discos que fazem estremecer, musicalmente agradável ou não – o que interessa?; chegamos a afirmar – e também aí reside o seu inegável valor.
É uma canalização dos mais feios traumas, misérias e tormentos internos – uma espiral descendente feita de traições do seu tour-manager e da sua agência de booking que o levou à bancarrota e a decidir abandonar a música, o abundante alimento de qualquer substância tóxica a que deitava mãos durante anos e anos e que o deixou à beira de uma overdose quase fatal, a discriminação social que começa na sua barba e nos seus dreadlocks e que, numa tarde passada na praia, o levou à prisão, os graves pertúrbios mentais de bi-polaridade, isto e mais e tudo junto num caldeirão explosivo de depressão, de raivas, de auto-confiança destruída, em que o dia seguinte não era mais que uma mancha negra num muro depressivo inconquistável – “Once in a while I crack” em “Maniac Depressant”.
Gonjasufi, de nome próprio Sumach Valentine, mais tarde transformado em Sumach Ecks, esvazia-se por inteiro para exorcizar todos os demónios. Mas essa exorcização não visa um final feliz após descer ao abismo e regressar; ou melhor, não visa um final feliz só porque sim, se esse final feliz não aderir ao mundo real. Pelo contrário, “Callus” é uma radiografia na sua forma mais crua do mundo exterior e do mundo interior vistos pelos olhos de Gonjasufi, do mundo como ele é, sem maquilhagens nem operações plásticas. Mesmo que a música seja claustrofóbica, desesperante, retorcida, arrepiante, psicótica, como é em “Callus”. Mesmo que passível de não receber os aplausos comerciais mais entusiásticos, mais facilmente gerados pela música que cede na genuinidade e na honestidade artística para colher favores nas bocas do mundo. Mas, tantas vezes, são estes álbuns, os difíceis, que ficam na memória e a que se regressa amanhã, daqui a anos.
Encarando de frente as fealdades desses mundos, o exterior e o interior, Gonjasufi quer, acima de tudo, conhecê-las, reconhecê-las e aceitá-las. Não lhe passa pela cabeça deixar-se derrotar por elas. Tal como não lhe passa pela cabeça ultrapassá-las sem voltar a olhar para elas. Antes acolhê-las e processá-las. Quer curar-se dessas fealdades, mas uma cura que não seja ilusória, e sê-lo-ia, se perseguisse a miragem de uma reconstituição fiel dos mundos anteriores a essas fealdades, mera falsidade. “Callus” é um processo de cicatrização de feridas sociais, psicológias e emocionais. Cicatrizes que deixam marcas, sim. Chegam a ser bonitas, na pele e no coração. Sinais inevitáveis das experiências e observações traumáticas já passadas. Deixam calos, tecido psicológico e emocional endurecido formado sobre as feridas e que reforça a camada protectora. Apenas há que cuidar que essa protecção reforçada às feridas e às fealdades não diminua as necessárias consciência e sensibilidade às mesmas que importa preservar.
Após MU.ZZ.LE, o seu segundo álbum editado em 2012, e a digressão que culminou na faca cravada nas costas pela sua equipa e o levou à bancarrota, Gonjasufi desaparece e isola-se do mundo na sua casa nos arredores de Joshua Tree, em pleno Mojave Desert, cidade que adopta como residência após abandonar a cidade natal San Diego e o ensino de ioga, perturbado e em busca da tranquilidade e da quietude que a aridez e a amplidão do deserto lhe proporcionam, necessárias à recuperação desse e dos restantes traumas passados. Desencantado com a indústria da música, nem sequer dá sinal de vida à sua editora, a britânica Warp Records, é a família e o ioga que o sustentam durante o período sabático. Enfia-se na cave e vai fazendo música, mas sem planos, para si apenas. É onde encontra sentido. É onde vai reforçando a sua pele e criando os seus calos. Podia ter sido o princípio do fim de mais um talento fora do rebanho, cuspido pelo mercado de consumo da “cultura de massa” avesso à singularidade e à diferença. Mas passam uns meses e o telefone toca. É Jay-Z. Ou melhor, é a Warp: Jay-Z gostaria de remixar a faixa “Nikels and Dimes” de MU.ZZ.LE para incluir em “Magna Carta Holy Grail”. Gonjasufi vai-se animando, vai tirando a faca das costas e vai metendo-a nos dentes – “Callus” sai de quatro penosos anos passados na cave de sua casa. É sangue, suor e lágrimas.
Mais que um álbum, “Callus” é uma “coisa”. Gonjasufi descarna-se até ao osso, descasca-se até ao âmago, só perante si mesmo, uns palmos abaixo da terra. Um martírio, que maravilha para a criatividade. Em 19 de Agosto passado, dezanove faixas de uma emoção pessoal extrema, de uma beleza bizarra e amarga, tão raivosas e agrestes quão cândidas e honestas, vêem a luz do dia. É incondicional e intransigente, sem remorsos em tornar-se, por vezes, realmente desagradável aos ouvidos. Mas, numa dualidade absolutamente própria, é uma valiosa afirmação de arrojada independência pessoal e artística.
Algumas das faixas são muito curtas, um ou dois minutos, talvez o espelho de Gonjasufi a apanhar do chão os cacos de si mesmo ao longo de quatro anos. Fragmentos de um álbum intenso e nada fácil, o reflexo brutal e descomprometido de um processo pessoal e de uma mensagem social que quase o leva ao colapso sombrio da demência mental. Uma atmosfera sonora áspera, estéril e opressiva, como o deserto, que nos desafia e confronta, apesar de, ao mesmo tempo, nos comover e cativar na beleza e na pureza despojadas e emotivas de alguém que se senta no alto de uma pedra sob o sol e o pó a contemplar o horizonte enquanto, remexendo a cabeça e o coração de cima abaixo, desesperadamente os tenta arrumar.
Um verdadeiro contador psicadélico de histórias deixa-nos, no mínimo, abanados, e é precisamente isso que Gonjasufi faz musicalmente. De forma tão ampla e desconexa quão, afinal, inspirada e coerente, o eclético “Callus” aglomera uma palette vasta de influências musicais que passam pelo caminho de Benjasufi: o hip-hop e DJing multifacetados da cena underground da sua San Diego impulsionado pelos grandes amigos Flying Lotus e Orko Eloheim, este rei do open mic rapping & spoken poetry nos anos ’90 na cidade, e a sua crew The Master of Universe que Sumach também integra, o west-coast hip-hop da baía de S. Francisco por onde Sumachs passa algum tempo também, o psych-pop do Médio Oriente e o jazz do corno de África etíope que o amigo de longa data, DJ e produtor William Bensussen, aka The Gaslamp Killler – vale a pena a visita – lhe apresenta, a folk natal dos países de origem dos seus pais – uma mãe mexicana e um pai americano-etíope – que também o põem a ouvir o jazz e soul americanos de Marvin Gaye ou Benny King enquanto cresce. E agora junte-se-lhe o noise-rock, o post-rock, o industrial, o electro-pop alternativo, etc.. Enfim, perguntamo-nos se interessa categorizar. Se sim, então apenas na categoria única e original: a categoria Benjasufi.
A verdade é que, por entre as dezanove faixas de “Callus”, deambulam, numa combinação lo-fi lenta mas escaldante, inúmeras texturas sonoras electrónicas torcidas e retorcidas. Baixos pesados e baterias ferozes andam em alucinantes círculos incandescentes tão aleatórios quão repetitivos, os solos de guitarra amargurados e abrasivos trazidos por Pearl Thomson, membro dos The Cure, estão na linha da frente, acamados por camadas diversas de teclados sintetizados que pairam e flutuam enquanto envenenam lentamente, ocasionalmente surgem uns apontamentos clássicos e acústicos de pianos e violinos, e outros psych de cítara, mais uma série de efeitos sonoros de produção electrónica. Tudo entrincheirado em efeitos de reverb, noise e outros que tais. Se ainda não suficiente, Gonjasufi opta por captar e gravar tudo em micros e registos analógicos. Dessa forma, consegue captar ainda melhor a sujidade do ambiente da sua cave real e psicológica a altas horas da madrugada: a luz cega, o silêncio isolador, o ar empoeirado, tudo é capturado e impregnado na fita, ampliando a sujidade do seu próprio momento. Como essa cave real e psicológica, tudo é sombrio e claustrofóbico. É assombroso.
E, caso ninguém tenha visto o apocalipse ao virar da esquina que Gonjasufi vê, rapidamente acorda assim que ele abre a garganta e faz ecoar a sua voz torturada, a figura de proa sónica do álbum. Quase sem cantar, ele murmura, geme, fala e urra. A voz está calejada, também. Mantras rituais alucinados arrancados de umas profundezas situadas para lá do inferno. Apelos sufocantes já de si desesperados, tornados ainda mais desesperados por toda a distorção e reverberação introduzida. Muitas vezes a letra, reduzida, lacónica e circular, é imperceptível, aspecto talvez propositado para ampliar a atmosfera emocional. Na maioria dos casos, Gonjasufi expressa a sua mensagem em frases à moda punchline: em “Shakin Parasites”, “I was never meant to be this fucked up”; em “The Conspiracy”, “Forget your story and fake glory / Get your devils off me”, e por aí vai.
Nem tudo é negro, contudo. No final das contas, o que Gonjasufi pretende, para si e para a comunidade, é o confronto, o conhecimento e a tomada de consciência das dores respectivas, as individuais e as colectivas, sem o que o indivíduo e a sociedade não progridem, e abrem espaço para os vírus e cancros num mundo que, por agora, vê em auto-destruição alargando fossos individuais, sociais e culturais. Num mundo ideal, seria uma reacção em cadeia, começando em cada um e alastrando para o colectivo por via da compreensão comum. Voz de artista.
Após o longa-duração de estreia “A Sufi and a Killer” em 2010, que lhe granjeou reconhecimento artístico generalizado e, por exemplo, a valiosa chancela de Mary Anne Hobbs, o sucedâneo “MU.ZZ.LE” de 2012, e alguns EP’s, eis o enigmático e místico Gonjasufi recuperado naquele que se pode considerar o seu álbum mais ousado e audaz de entre os três. A sonoridade é ainda mais personalizada e distinta, o processo é exposto e vulnerável, a mensagem é profunda e relevante. Enquanto outros vão atrás das tendências, “Callus” é um álbum que nos exige uma camada bem resistente e espessa para ser ouvido, como os calos. Mas é, sem dúvida, um álbum estimulante e original, que deixa a sua própria marca na memória, se aceites os termos artísticos de Gonjasufi.
“Callus” tracklist:
1. Your Maker
2. Maniac Depressant
3. Afrikan Spaceship
4. Carolyn Shadows
5. Ole Man Sufferah
6. Greasemonkey
7. The Kill
8. Prints Of Sin
9. Krishna Punk
10. Elephant Man
11. The Conspiracy
12. Poltergeist
13. Vinaigrette
14. Devils
15. Surfinfinity
16. When I Die
17. The Jinx
18. Shakin Parasites
19. Last Nightmare